Ao fim de quase
dois meses de confinamento, os sinais de cansaço com a situação surgem para
todos, não há mesmo hipóteses de não surgirem. Começam, talvez, pelo cansaço
que provocam os ecrãs: o do computador e o do televisor. O assunto da pandemia
tornou-se uma constante, os telejornais de todos os canais repetem o mesmo
diariamente, durante horas, até à exaustão. Toda a realidade para além do
COVID-19 parece ter-se evaporado. No que diz respeito a jornais nacionais e
revistas, passa-se exactamente o mesmo. Notícias, investigação jornalística,
comentários, tudo se refere ao virus, de uma forma ou de outra. Como resultado,
os jornais lêem-se tão rápido que nem se dá conta. De uma forma ainda mais
acentuada do que habitualmente. Quando se começa a ler algum comentador ou
mesmo jornalista em concreto, não há qualquer surpresa nos escritos dos
diversos autores; por vezes ficamos com a sensação de que qualquer pessoa
poderia estar na pele deles e escrever por eles exactamente aquilo que
escrevem. A vida normal parece longe, tal como o sol da praia, o som das ondas
do mar e as actividades ao ar livre. Surgem saudades súbitas de vivências
antigas com filhos e até com netos que, de súbito, parecem ainda mais afastadas
no tempo e quase impossíveis de terem sido vividas.
Alguma sanidade
mental vem da leitura de livros que se rebelam contra a leitura transversal e
que obrigam mesmo, uma e outra vez, a voltar ao início do parágrafo para
entender o que está escrito. Mais ainda do que em qualquer outra altura, ler
livros é passaporte, não só para conhecer melhor o mundo, mas para levar a
trabalhar «as pequenas células cinzentas», como dizia Poirot, havendo muito
mais para ler do que «A Peste» de Camus, embora este livro possa ser um bom
ponto de partida.
Mas nem só quem
está confinado está sujeito ao cansaço da situação. A duração da crise
sanitária vai-se prolongar por uma crise económica que se prevê ainda mais
duradoura. E a capacidade de resposta exige muito de quem tem responsabilidades
políticas. Só esse cansaço pode justificar actuações e afirmações com que os
mais altos responsáveis políticos têm brindado os cidadãos deste país. De outra
forma, como justificar que o Presidente da República se ponha a falar de milagres
portugueses a propósito do estado de emergência, que o Primeiro-Ministro fale
de bazucas e fisgas enquanto ansiosamente pede à União Europeia que nos dê dinheiro
para enfrentar a crise económica, que o Presidente da Assembleia da República
fale em mascarados ou que o Presidente do maior partido da oposição, o PSD, escreva
aos militantes do seu partido ordenando que não fragilizem o Governo com as
suas críticas?
Os sentimentos
de uma sociedade, se se pode considerar que existem, e eu estou convencido de que
existem, não serão a soma dos sentimentos momentaneamente manifestados por cada
um dos cidadãos. Serão algo de muito mais profundo e evoluem de uma forma,
digamos invisível, tal como as vagas marítimas que não se vêem e que só se
manifestam com força brutal quando encontram a costa.
Os portugueses sofreram um doloroso processo de recuperação económica de
2011 a 2014. Terem que passar por outra crise económica tão pouco tempo depois
poderá provocar traumas colectivos com consequências difíceis de imaginar. Acresce
que os portugueses não terão ainda consciência de que, nos últimos 25 anos,
recebemos da União Europeia 9 milhões de euros por dia. Todos esses dias. E,
apesar disso, se a mesma União não nos acudir financeiramente, não
conseguiremos enfrentar a crise que agora está a começar, sem consequências
gravíssimas. Como a nossa dívida pública é enorme, de 118% do PIB, pedimos
dinheiro, se possível mesmo a fundo perdido, e agimos como se alguém tivesse a
obrigação de o fazer. Talvez seja mesmo o receio das consequências sociais de
todo este contexto que leva os nossos responsáveis políticos máximos a adoptarem
linguagens que em tempos normais seriam dificilmente aceitáveis. Mas a verdade
é que não estamos a atravessar tempos normais. E eles, mais do que ninguém, têm
consciência disso.Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 27 de Abril de 2020
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