segunda-feira, 27 de abril de 2020

CONFINAMENTO


Ao fim de quase dois meses de confinamento, os sinais de cansaço com a situação surgem para todos, não há mesmo hipóteses de não surgirem. Começam, talvez, pelo cansaço que provocam os ecrãs: o do computador e o do televisor. O assunto da pandemia tornou-se uma constante, os telejornais de todos os canais repetem o mesmo diariamente, durante horas, até à exaustão. Toda a realidade para além do COVID-19 parece ter-se evaporado. No que diz respeito a jornais nacionais e revistas, passa-se exactamente o mesmo. Notícias, investigação jornalística, comentários, tudo se refere ao virus, de uma forma ou de outra. Como resultado, os jornais lêem-se tão rápido que nem se dá conta. De uma forma ainda mais acentuada do que habitualmente. Quando se começa a ler algum comentador ou mesmo jornalista em concreto, não há qualquer surpresa nos escritos dos diversos autores; por vezes ficamos com a sensação de que qualquer pessoa poderia estar na pele deles e escrever por eles exactamente aquilo que escrevem. A vida normal parece longe, tal como o sol da praia, o som das ondas do mar e as actividades ao ar livre. Surgem saudades súbitas de vivências antigas com filhos e até com netos que, de súbito, parecem ainda mais afastadas no tempo e quase impossíveis de terem sido vividas.
Alguma sanidade mental vem da leitura de livros que se rebelam contra a leitura transversal e que obrigam mesmo, uma e outra vez, a voltar ao início do parágrafo para entender o que está escrito. Mais ainda do que em qualquer outra altura, ler livros é passaporte, não só para conhecer melhor o mundo, mas para levar a trabalhar «as pequenas células cinzentas», como dizia Poirot, havendo muito mais para ler do que «A Peste» de Camus, embora este livro possa ser um bom ponto de partida.
Mas nem só quem está confinado está sujeito ao cansaço da situação. A duração da crise sanitária vai-se prolongar por uma crise económica que se prevê ainda mais duradoura. E a capacidade de resposta exige muito de quem tem responsabilidades políticas. Só esse cansaço pode justificar actuações e afirmações com que os mais altos responsáveis políticos têm brindado os cidadãos deste país. De outra forma, como justificar que o Presidente da República se ponha a falar de milagres portugueses a propósito do estado de emergência, que o Primeiro-Ministro fale de bazucas e fisgas enquanto ansiosamente pede à União Europeia que nos dê dinheiro para enfrentar a crise económica, que o Presidente da Assembleia da República fale em mascarados ou que o Presidente do maior partido da oposição, o PSD, escreva aos militantes do seu partido ordenando que não fragilizem o Governo com as suas críticas?
Os sentimentos de uma sociedade, se se pode considerar que existem, e eu estou convencido de que existem, não serão a soma dos sentimentos momentaneamente manifestados por cada um dos cidadãos. Serão algo de muito mais profundo e evoluem de uma forma, digamos invisível, tal como as vagas marítimas que não se vêem e que só se manifestam com força brutal quando encontram a costa.
Os portugueses sofreram um doloroso processo de recuperação económica de 2011 a 2014. Terem que passar por outra crise económica tão pouco tempo depois poderá provocar traumas colectivos com consequências difíceis de imaginar. Acresce que os portugueses não terão ainda consciência de que, nos últimos 25 anos, recebemos da União Europeia 9 milhões de euros por dia. Todos esses dias. E, apesar disso, se a mesma União não nos acudir financeiramente, não conseguiremos enfrentar a crise que agora está a começar, sem consequências gravíssimas. Como a nossa dívida pública é enorme, de 118% do PIB, pedimos dinheiro, se possível mesmo a fundo perdido, e agimos como se alguém tivesse a obrigação de o fazer. Talvez seja mesmo o receio das consequências sociais de todo este contexto que leva os nossos responsáveis políticos máximos a adoptarem linguagens que em tempos normais seriam dificilmente aceitáveis. Mas a verdade é que não estamos a atravessar tempos normais. E eles, mais do que ninguém, têm consciência disso.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 27 de Abril de 2020

Sem comentários: