Na altura dos
ataques terroristas ao “Charlie Hebdo”, em Paris, escrevi nesta página o
seguinte: «No Panteão de Paris repousam os restos mortais de Voltaire, o grande
iluminista e lutador pela Liberdade que introduziu em França a tolerância
religiosa e a liberdade de imprensa. Dele foi dito que a melhor maneira de
definir o seu espírito seria: "Posso não concordar com nenhuma palavra do
que você disse, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo".
Não passaram
muitos anos até a barbárie surgir de novo nas ruas de Paris, agora por outros
motivos, mas com a mesma parede de fundo: a incapacidade de perceber a
História, o desrespeito pela Liberdade e o atavismo da intolerância. No fundo,
o ódio à Cultura que espreita sempre por trás dos extremismos. Se mais não
fosse preciso, a profanação da estátua de Voltaire, em frente ao Louvre do outro
lado do Sena, mostra até que ponto as manifestações ditas anti-racistas que
grassam pelo Ocidente são atravessadas por desconhecimento da História e visam reescrever
a História sujeitando factos do passado à visão de hoje.
A origem dos
actuais movimentos de manifestantes teve início no homicídio nos EUA de um
homem de cor preta, levado a cabo por um polícia e visto por todos na televisão
perante a passividade de outros polícias que nada fizeram para impedir a morte
daquele homem. Nada mais justo do que promover manifestações de protesto contra
este facto que, infelizmente, é apenas mais uma morte levada a cabo em acções
policiais naquele país, uma de entre dezenas de milhares que sucedem todos os
anos, independentemente da cor da pele das pessoas.
A partir daí
surgiram manifestações anti-racistas por todos os EUA, que rapidamente se
transformaram num movimento contra as estátuas de personalidades homenageadas
por este ou aquele motivo. A razão imediata apresentada tem a ver com ligações
ao antigo colonialismo ou a escravatura, surgindo os designados
“afro-americanos” como vítimas actuais do que se passou há séculos. Quando vejo
isto na televisão não posso deixar de me recordar que todos os que se
manifestam são descendentes de pessoas que, de uma maneira ou de outra, foram
viver para a América. Porque americanos a sério só conheço os índios, que lá
viviam antes de os europeus terem começado a emigrar para o continente
americano e se terem dedicado a praticamente dizimar quem lá vivia antes. Todos
os americanos, excepto os poucos índios sobreviventes, são descendentes de
emigrados na América sejam europeus, asiáticos ou africanos, não havendo
euro-americanos, asiático-americanos ou afro-americanos.
O movimento
passou depois para a Europa onde as manifestações anti-racistas foram
claramente manipuladas politicamente, como foi visível em Portugal. E, claro,
perante a actual ignorância histórica generalizada, até a estátua do Padre
António Vieira em Lisboa foi vítima de vandalização.
Penso estar
correcto ao pensar que é raro haver hoje no Ocidente quem ainda defenda a
escravatura ou mesmo o racismo, sendo que mesmo este termo, presente até na
nossa Constituição, está desactualizado porque, de acordo com a ciência, a
espécie humana não tem raças. Quanto à escravatura constitui uma nódoa antiga
na História da Humanidade mas é preciso dizer que foi no Ocidente que primeiro
foi extinta, subsistindo ainda vergonhosamente noutras zonas como África e
Ásia.
Assistimos
hoje à substituição de ideologias que provaram historicamente dar mau resultado
por um conjunto de ideias sociais atraentes para muita juventude por colocarem
em causa uma sociedade que vêem estar cheia de injustiças. Não se trata de uma
ideologia, mas de uma anti-ideologia, porque não propõe objectivos nem caminhos
para os atingir, assumindo apenas críticas fortes ao existente, mas não só,
também ao que se passou na História. Em vez de se assumir tudo o que se passou
de bom ou de mau como fazendo parte do passado de que se tiram lições, parece
surgir a necessidade de fazer alguém pagar, hoje, pelo que eventuais
antepassados praticaram.
Precisamente por não se tratar de uma ideologia, é
muito difícil contrapor sem se cair no erro de defender um passado indefensável
aos olhos actuais, nem de tratar a situação como mero caso de polícia. A falta
de Cultura e inerente falta de respeito por um passado comum é consequência de falta
de políticas culturais e, acima de tudo educacionais, que forneçam aos cidadãos
ferramentas intelectuais que lhes permitam compreender o mundo e perceber onde
estão as verdadeiras injustiças actuais para verdadeiramente as combater.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 29 de Junho de 2020
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