segunda-feira, 29 de junho de 2020

A ESTÁTUA DE VOLTAIRE


Na altura dos ataques terroristas ao “Charlie Hebdo”, em Paris, escrevi nesta página o seguinte: «No Panteão de Paris repousam os restos mortais de Voltaire, o grande iluminista e lutador pela Liberdade que introduziu em França a tolerância religiosa e a liberdade de imprensa. Dele foi dito que a melhor maneira de definir o seu espírito seria: "Posso não concordar com nenhuma palavra do que você disse, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo".
Não passaram muitos anos até a barbárie surgir de novo nas ruas de Paris, agora por outros motivos, mas com a mesma parede de fundo: a incapacidade de perceber a História, o desrespeito pela Liberdade e o atavismo da intolerância. No fundo, o ódio à Cultura que espreita sempre por trás dos extremismos. Se mais não fosse preciso, a profanação da estátua de Voltaire, em frente ao Louvre do outro lado do Sena, mostra até que ponto as manifestações ditas anti-racistas que grassam pelo Ocidente são atravessadas por desconhecimento da História e visam reescrever a História sujeitando factos do passado à visão de hoje.
A origem dos actuais movimentos de manifestantes teve início no homicídio nos EUA de um homem de cor preta, levado a cabo por um polícia e visto por todos na televisão perante a passividade de outros polícias que nada fizeram para impedir a morte daquele homem. Nada mais justo do que promover manifestações de protesto contra este facto que, infelizmente, é apenas mais uma morte levada a cabo em acções policiais naquele país, uma de entre dezenas de milhares que sucedem todos os anos, independentemente da cor da pele das pessoas.
A partir daí surgiram manifestações anti-racistas por todos os EUA, que rapidamente se transformaram num movimento contra as estátuas de personalidades homenageadas por este ou aquele motivo. A razão imediata apresentada tem a ver com ligações ao antigo colonialismo ou a escravatura, surgindo os designados “afro-americanos” como vítimas actuais do que se passou há séculos. Quando vejo isto na televisão não posso deixar de me recordar que todos os que se manifestam são descendentes de pessoas que, de uma maneira ou de outra, foram viver para a América. Porque americanos a sério só conheço os índios, que lá viviam antes de os europeus terem começado a emigrar para o continente americano e se terem dedicado a praticamente dizimar quem lá vivia antes. Todos os americanos, excepto os poucos índios sobreviventes, são descendentes de emigrados na América sejam europeus, asiáticos ou africanos, não havendo euro-americanos, asiático-americanos ou afro-americanos.
O movimento passou depois para a Europa onde as manifestações anti-racistas foram claramente manipuladas politicamente, como foi visível em Portugal. E, claro, perante a actual ignorância histórica generalizada, até a estátua do Padre António Vieira em Lisboa foi vítima de vandalização.
Penso estar correcto ao pensar que é raro haver hoje no Ocidente quem ainda defenda a escravatura ou mesmo o racismo, sendo que mesmo este termo, presente até na nossa Constituição, está desactualizado porque, de acordo com a ciência, a espécie humana não tem raças. Quanto à escravatura constitui uma nódoa antiga na História da Humanidade mas é preciso dizer que foi no Ocidente que primeiro foi extinta, subsistindo ainda vergonhosamente noutras zonas como África e Ásia.

Assistimos hoje à substituição de ideologias que provaram historicamente dar mau resultado por um conjunto de ideias sociais atraentes para muita juventude por colocarem em causa uma sociedade que vêem estar cheia de injustiças. Não se trata de uma ideologia, mas de uma anti-ideologia, porque não propõe objectivos nem caminhos para os atingir, assumindo apenas críticas fortes ao existente, mas não só, também ao que se passou na História. Em vez de se assumir tudo o que se passou de bom ou de mau como fazendo parte do passado de que se tiram lições, parece surgir a necessidade de fazer alguém pagar, hoje, pelo que eventuais antepassados praticaram.
Precisamente por não se tratar de uma ideologia, é muito difícil contrapor sem se cair no erro de defender um passado indefensável aos olhos actuais, nem de tratar a situação como mero caso de polícia. A falta de Cultura e inerente falta de respeito por um passado comum é consequência de falta de políticas culturais e, acima de tudo educacionais, que forneçam aos cidadãos ferramentas intelectuais que lhes permitam compreender o mundo e perceber onde estão as verdadeiras injustiças actuais para verdadeiramente as combater.
 
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 29 de Junho de 2020

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