Não deverá haver, na História da Humanidade, muitos exemplos da
capacidade do cérebro humano ultrapassar as limitações físicas do corpo que
habita da forma genial como o fez Beethoven.
Quando a sua Nona Sinfonia foi apresentada em 1824, no Teatro
da Corte Imperial de Viena, Beethoven estava completamente surdo, ao ponto de
não ouvir os aplausos estrondosos de um público entusiasmado pela novidade da
música que tinha acabado de ouvir pela primeira vez, pelo seu absoluto
brilhantismo mas também, certamente, pela oportunidade de ali homenagear o
compositor amado. Conta-se que, tendo sido convidado a permanecer ao lado do
maestro durante o concerto, um dos cantores teve mesmo que o virar para a
assistência para se aperceber da reacção do público.
Dotado de um espírito forte, famoso pelos seus acessos de
cólera mas também pelo seu sentido de humor, se há característica que se pode
atribuir-lhe é o seu amor à Liberdade. Entusiasmado pelos valores difundidos
pela Revolução Francesa, dedicou a Napoleão a sua revolucionária Terceira Sinfonia.
O que não foi perene foi a sua dedicatória, que raspou na partitura original,
ao saber que o destinatário se tinha declarado Imperador, afirmando: «Afinal
trata-se de um homem vulgar! Agora vai pisar todos os direitos humanos e
obedecer apenas à sua ambição; vai querer ser superior a todos os outros e
tornar-se um tirano». A terceira sinfonia seria para sempre chamada «Heroica»
em vez de «Sinfonia Bonaparte».
Quando compôs a «Heroica» em 1804, aos 34 anos de idade,
Beethoven sofria já de surdez avançada que de forma crescente o ia impedindo de
ouvir aquilo a que se dedicava de forma apaixonada, a Música, ouvindo apenas
aquilo a que Romain Rolland chamou o «canto interior». A partir de 1815 já só
conseguia mesmo comunicar com os amigos através de escrita e, até ao fim da
vida, a música existiria cada vez mais apenas no seu cérebro para ser passada
pela sua caneta ao papel. A importância histórica da terceira sinfonia advém
também de, para muitos, marcar a passagem definitiva do classicismo para um
romantismo que abre as portas a toda uma nova época da História da Música dando
largas à emotividade e libertação dos sentimentos.
Muitos autores se debruçaram sobre a vida de Beethoven e a sua
obra, destacando aqui o acima referido Romain Rolland que, no princípio do
século XX, dele escreveu uma biografia e o teve como inspiração para o seu
monumental romance «Jean Christophe» que lhe valeu o Nobel da Literatura.
Ainda hoje a interpretação e gravação da integral das suas nove
sinfonias constitui um ponto culminante da carreira de qualquer orquestra ou
maestro. A influência destas obras na História da Música é de tal ordem que
muitos compositores, depois de Beethoven, se recusaram a escrever mais de nove
sinfonias, como sinal de respeito perante o grande mestre; as quatro primeiras
notas da Quinta Sinfonia são, talvez, o trecho musical mais conhecido da
História da Música, apesar de tão curto. São todas tão impressivas e diferentes
entre si que dão a qualquer pessoa a possibilidade de gostar mais de uma ou
outra permitindo-me a mim, apenas amante da música, dizer que gosto
particularmente da Sétima e da Nona. Cresci a ouvir as interpretações das
sinfonias de Beethoven por Karajan, tendo criado a ideia de que se tratava de
uma música por vezes um pouco pesada; depois conheci as interpretações de Claudio
Abbado com uma sensibilidade muito própria e belíssima e, finalmente, de Simon
Rattler que me ofereceu toda uma nova perspectiva de Beethoven, provando a
riqueza e profundidade da sua música inimitável.
Para além da monumental obra que se estende por diversas formas
musicais, Beethoven marcou também a História da Cultura, ao ser o primeiro músico
a viver da publicação das suas obras, não se sujeitando a ter mecenas de quem
dependesse financeiramente e de algum modo pudessem tentar limitar a sua
criação. De entretenimento privado de aristocratas, a apresentação das obras
musicais foi paulatinamente passando para salas de concertos e foram surgindo
as orquestras profissionais, o que permitiu a popularização e democratização desta
forma artística.
Celebrando-se no ano que passa os 250 anos do nascimento de Ludwig van
Beethoven, apenas posso deixar um desafio aos nossos leitores: se já conhecem a
sua música, revisitem-na com novos intérpretes que os há excelentes; se não
conhecem, vão ouvi-la em discos ou, de preferência, ao vivo, em concertos.Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 8 de Junho de 2020
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