segunda-feira, 29 de março de 2021

Masculinismo/feminismo

 


Se há uma mudança substancial que se está neste preciso momento a verificar na sociedade portuguesa, e que hoje já é possível mensurar, é o papel das mulheres. Todos sabemos que essa mudança se iniciou com uma primeira consciencialização da sua situação por parte das mulheres no início do Séc. XX tendo o feminismo tido um papel importante na mudança. Nos anos 60 deu-se um passo essencial com a vulgarização da utilização de novos e eficazes métodos contraceptivos, nomeadamente a pílula, que permitiu às mulheres definirem a sua maternidade, escolhendo ter ou não filhos e quando. Abriu-se assim às mulheres o mundo laboral em quase igualdade com os homens, sendo que esse «quase» tem sido objecto de tentativas de anulação através de leis de protecção às mulheres na maternidade. E, com o objectivo de assegurar a igualdade plena, nos nossos dias a legislação laboral já proíbe que haja pagamento diferenciado a homens e mulheres, para o mesmo trabalho.

Fruto dessa evolução, a situação é hoje completamente diferente de há escassas dezenas de anos. Às profissões em que tradicionalmente havia mais mulheres do que homens, como no ensino ou na enfermagem, juntam-se agora outras profissões de grande relevância social: médicas-56%, magistradas-62% e advogadas-55%. Dado que das universidades saem mais mulheres diplomadas (58%) do que homens, é perfeitamente lógico que dentro de pouco tempo os cargos de chefia nos sectores público e privado sejam maioritariamente ocupados por mulheres. Aliás, se formos ver os ganhos médios mensais de homens e mulheres no sector público, verificamos que o das mulheres é de €1.184 e o dos homens de €1.057. Isto significa claramente que as mulheres que trabalham no Estado têm mais formação do que os homens, que ocuparão cargos de menor qualificação e mais braçais. Só por curiosidade, e para comparação, em termos gerais os homens têm em Portugal um ganho médio de €1.039 e as mulheres de €888,60.


Estas mudanças não se deram, nem estão a dar, sem choques na sociedade, em particular com muitos homens ainda culturalmente dominados por um machismo retrógrado ou mesmo por um marialvismo incutido na educação durante séculos que se pode bem sintetizar num conselho que as próprias mães davam aos filhos homens na sua juventude: «namora-as a todas, mas não cases com nenhuma».

Regressando às estatísticas, não posso deixar de referir alguns dados que nos devem fazer pensar e chamar para os caminhos que ainda falta percorrer: a taxa de alcoolismo é maior entre homens, a taxa de suicídio é maior entre homens, há mais sem-abrigo homens que mulheres, a taxa de abandono escolar precoce foi, em Portugal, em 2020, mais do dobro entre rapazes do que entre raparigas. Será difícil não concluir que, pelo menos em parte, as alterações sociais têm muita dificuldade em ser compreendidas ou integradas por parte do lado masculino da sociedade.

E é por isso que chamo «masculinismo» à nova atitude dos homens perante as alterações profundas da sociedade, nomeadamente nas relações entre homens e mulheres. Relação essa que deve ser de igualdade de oportunidades e de deveres, em respeito pelas circunstâncias comuns mas também pelas particularidades que estabelecem as diferenças. Daí que o masculinismo e o feminismo devam caminhar lado a lado e não em sentidos opostos. Como já escrevi anteriormente, homens e mulheres são as duas faces de uma mesma moeda. São o resultado de milhões de anos de desenvolvimento natural e têm diferenças essenciais e inultrapassáveis a nível genético, isto é, no mais íntimo do ser, que se manifestam nos mais diversos aspectos do corpo e mesmo do comportamento, que se conjugam numa complementaridade natural mas complexa. Aspectos sociais que são vulgarmente apontados como importantes não passam disso mesmo: aspectos exteriores herdados de modas e hábitos sem qualquer importância fundamental. Por exemplo, ouço muito dizer que as mulheres progrediram quando puderam passar a usar calças em vez de saias e é verdade, já que é um vestuário que permite maior liberdade de movimentos. Já quando ouço dizer que os homens também progrediriam se usassem saias lembro que nada proíbe que o façam e que há locais onde os homens as usam tradicionalmente, por exemplo na Escócia só que, na realidade, tal uso é mais uma manifestação de virilidade ostensiva, quando não mesmo algo violenta, do que outra coisa. Virilidade que, evidentemente, faz parte da sexualidade masculina e que pode e deve ser salutar e não animalesca porque, lá está, a humanidade é resultado de milhões de anos de evolução, distinguindo-se também aqui do resto do reino animal.


Na realidade os novos papéis da mulher a ser considerada, respeitada e amada pelo homem como completa e inteira, no corpo e personalidade, implicam toda uma nova e diferente construção do relacionamento masculino /feminino numa base de partilha e respeito mútuos. Os homens deverão, contudo, ser defendidos de se cair num extremo que baila já em alguns meios feministas, no qual os homens perderiam a paternidade passando a ser apenas produtores e fornecedores de gâmetas a recolher/comprar num qualquer banco de sémen. Assim se substituiria o amor pelo comércio. Masculinismo, precisa-se mesmo, também.
 
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 29 de Março de 2021
Fotos recolhidas na internet

MAL GERAL

 Como povo costuma dizer, «então é assim»:

O presidente da República promulga uma lei aprovada na AR por todos os partidos excepto o PS, que estipula apoios COVID que foram prometidos pelo PS mas não incluídos no Orçamento de Estado. Todos mal na fotografia. Todos, com PR e PM à cabeça.




domingo, 28 de março de 2021

CARGA FISCAL RECORD

 A notícia diz que é ao contrário do esperado pelo governo. Mas  é a triste realidade que temos.

 

 
 
 
 

 

terça-feira, 23 de março de 2021

segunda-feira, 22 de março de 2021

O vasto mundo das grandes pintoras portuguesas


Há uma semana celebrou-se o dia internacional da Mulher. Marca histórica da afirmação das mulheres cujas obras, durante séculos, e em particular no domínio artístico, foram desconsideradas de uma forma inadmissível havendo, por exemplo, muitas mulheres compositoras e pintoras que ainda hoje são pouco conhecidas da população em geral. Mais do que andar para aí a obrigar a alterar linguagens, parece-me muito mais importante relevar a obra de mulheres que marcaram a sociedade e a tornaram melhor, pela sua Arte. Ao longo dos anos tenho abordado nestas linhas a vida e obra de algumas grandes artistas que se dedicaram à pintura de uma forma excepcional. Recordo, nomeadamente, as crónicas dedicadas a duas artistas excepcionais no domínio da pintura: Josefa de Óbidos e Artemisia Gentileschi, a primeira nascida em Espanha, tendo vivido quase toda a sua vida em Portugal e a última italiana, ambas do  Sec. XVII.

De entre as mulheres portuguesas pintoras do nosso tempo, algumas há que se tornaram figuras incontornáveis da Cultura portuguesa. Cito apenas algumas dessas grandes pintoras, todas elas personagens fascinantes, sabendo que de fora desta lista ficarão injustamente muitas outras.

Maluda, nascida na antiga Índia portuguesa e que nos deixou com o final do Sec. XX, abordou nas suas pinturas retratos, paisagens urbanas e elementos arquitectónicos, de que as suas janelas são justamente famosas. O trabalho artístico de Maluda é grandemente admirado, havendo reproduções das suas «janelas» pelo mundo inteiro, e foi também reconhecido pelo Estado português, que lhe atribuiu a Ordem do Infante Henrique.

Sarah Affonso foi aluna de Columbano na Escola de Belas Artes de Lisboa e, na década de 1920, esteve por duas vezes em Paris onde expôs, tendo regressado a Lisboa integrando-se com êxito no movimento modernista, de que foi figura de proa. Em 1934 casou com Almada Negreiros e, se nos primeiros anos de casamento produziu alguma da sua obra mais importante, a partir de certa altura praticamente abandonou a pintura. Em 1981 recebeu a Ordem Militar de Sant’Iago da Espada.


Maria Helena Vieira da Silva foi, muito justamente, considerada uma das maiores pintoras do sec. XX, a nível mundial. Nascida em Lisboa em 1908, estudou na Academia de Belas Artes de Lisboa tendo, a partir dos anos 20, partido para Paris onde continuou os seus estudos artísticos integrando-se nos meios modernistas da capital francesa onde passou a viver permanentemente após o seu casamento com o pintor húngaro Árpád Szenes. Após o final da II Grande Guerra, regressaram a Paris, de onde tinham saído com o advento do Nazismo, onde desenvolveram as suas actividades artísticas. Vieira da Silva teve uma carreira artística notabilíssima reconhecida, em França onde se tornou Dama da Ordem Nacional da Legião de Honra em 1979, e depois do 25 de Abril em Portugal, tendo-lhe sido atribuídas as condecorações da Grã-Cruz da  Ordem Militar de Sant'Iago da Espada e a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade.Tendo falecido em 1992, em Lisboa merece ser visitado o Museu da Fundação Árpád Szenes-Vieira da Silva às Amoreiras.

Graça Morais é uma pintora nascida em 1948 em Trás-os-Montes, tendo estudado pintura na Escola Superior de Belas Artes do Porto. Entre 1976 e 78 viveu em Paris, como bolseira da   Fundação Calouste Gulbenkian. A sua produção artística tem sido muito intensa e de uma qualidade reconhecida em Portugal e no estrangeiro – Brasil, Estados Unidos, Espanha. França, China/Macau, entre outros países, tendo participado em inúmeras mostras e exposições colectivas e individuais. Em 1997 foi editado o livro «Graça Morais», com textos de  Vasco Graça Moura e Sílvia Chico. Foi distinguida com o grau Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique.

Paula Rego dispensa apresentações sendo, desde há bastantes anos, considerada como uma das maiores pintoras da actualidade. Nascida em Lisboa em 1935, em 1952 partiu para Londres, onde estudou na Slade School of Fine Art escola onde, na década de 80, passou a ser professora convidada. A sua entrada para as colecções do Tate Museum marcou decisivamente o seu lugar na pintura, tornando as suas obras que nunca deixam de provocar emoções fortes em quem as vê, famosas e consideradas em todo o mundo. Paula Rego viu a ser obra ser homenageada um pouco por todo o lado, salientando-se a Grã-Cruz da Ordem de Sant'Iago da Espada e a nomeação «Dame Commander of the Order of the British Empire»  pela sua contribuição para as Artes pela Rainha Isabel II. Em Cascais foi construída a Casa das História para albergar parte da sua obra e ali poder ser apreciada por todos.

Muitas outras pintoras portuguesas merecem lugar de destaque, devendo-se nomear Joana do Salitre no sec. XVIII, Josefa Greno no sec. XIX, Mily Possoz, Ilda David ou Ana Vidigal na actualidade.


Há, no entanto, outra grande pintora portuguesa que não posso deixar de aqui salientar. Aurélia de Sousa estudou na Academia de Belas Artes do Porto, tendo participado em numerosas exposições. Estudou seguidamente em Paris e desenvolveu um estilo próprio, naturalista e realista, mas com influências impressionistas que a colocam entre os melhores artistas da pintura portugueses do seu tempo. Faleceu em 1922 apenas com 55 anos de idade. O seu auto-retrato com capa vermelha, em exposição no Museu Nacional Soares dos Reis, é razão mais do que suficiente para uma viagem ao Porto

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 22 de Março de 2021 

Fotos retiradas da Internet

quinta-feira, 18 de março de 2021

PATENTES DE VACINAS

 

 As vacinas para o COVID-19 foram desenvolvidas muito mais rapidamente do que é normal.

Ao contrário do que também é normal, as empresas farmacêuticas  receberam contribuições financeiras muito elevadas de governos e organizações não lucrativas.

Exemplos tirados da imprensa (Jornal de Notícias):

No total, os governos contribuíram com 7 mil milhões de euros, as organizações não lucrativas dispenderam 1,6 mil milhões de euros e as farmacêuticas gastaram 2,8 mil milhões de euros, segundo a empresa de análise de dados científicos Airfinity, citada pela BBC.

Por exemplo, a vacina da Pfizer/BioNTech, que já começou a ser administrada no Reino Unido, de um total de 443 milhões de euros, recebeu 218 milhões de governos e 109 milhões de investidores privados.

A Moderna, que investiu 647 milhões de euros, recebeu 654 milhões em apoios públicos.

E a vacina da Oxford/AstraZeneca, de um total de 1,8 mil milhões de euros, recebeu 1,2 mil milhões de governos e 545 milhões de organizações não lucrativas.

 As patentes têm que existir, caso contrário na próxima pandemia não haverá corrida à produção de vacinas. Mas, neste caso, têm que ter os financiamentos públicos em causa.

 

Chinesices

 Notícia do Guardian:

China to only allow foreign visitors who have had Chinese-made vaccine 

  Pergunto eu: e se os outros países fabricantes de vacinas fizerem o mesmo?

quarta-feira, 17 de março de 2021

ASSOCIAÇÕES DISCRETAS

 Não têm mais nada em que pensar, pois não? Já agora, o que é uma associação discreta? E, por outro lado, a Constituição não garante o direito à associação de cidadãos?

 


 

segunda-feira, 15 de março de 2021

Pandemia e solidão

 


É sabido que, para alguém se tentar passar despercebido ou mesmo se esconder, a melhor maneira de o conseguir é no meio de uma multidão em vez de um lugar deserto. Progressivamente, ao longo dos últimos anos, a internet veio acolher milhões e milhões de pessoas nas chamadas redes sociais, de onde é cada vez mais difícil fugir dada a sua capacidade de substituir os meios de comunicação clássicos e a possibilidade que oferece a toda a gente de participar comentando ou criticando aquilo que vê. Isto é feito sem filtros, o que transmite a sensação, apenas aparente, de participar em algo de concreto. Podemos mesmo afirmar que a multidão está hoje nas redes sociais, com consequências sérias para a sociedade a vários níveis e também para cada indivíduo por si mesmo que, tantas vezes, acredita no anonimato da sua participação nas redes e em passar despercebido. Na realidade, ao navegar vai cedendo dados para um mar de informação comprada e vendida por valores verdadeiramente colossais que está a retirar às televisões, às rádios e à imprensa escrita a publicidade de que sempre viveram, com a agravante de que a maior parte da informação que circula não é paga a quem a produz.

Contudo, esta nova multidão cibernética é, em grande parte, composta por pessoas que, quando desligam o computador ou o telemóvel, se vêem na sua realidade tantas vezes pautada por uma enorme solidão. A internet tomou conta da sua vida, quer para a informação ou para o lazer quer, sobretudo, para os contactos e relações inter-pessoais. A realidade do dia-a-dia transformou-se numa infindável sucessão de sessões de recepção de dados, sem dádiva de nada, sem partilha de nada de concreto.

A pandemia que atravessamos veio acentuar esta situação que já vinha em crescendo, de uma forma impressionante, alastrando-a a novos estratos sociais e etários. O tele-trabalho confina trabalhadores em casa, ligados com a empresa através do comutador; desde a falta de contacto humano com colegas ao abuso de horas de serviço em que horários diários e até fins-de-semana se diluem no dia dos trabalhadores, até à circunstância de se ter os filhos em casa, eventualmente com aulas pela internet, tudo contribui para um desfazer da vida «normal» e para uma situação de isolamento do exterior.

As famílias ficaram separadas. Avós não visitam filhos e quase não acompanham o crescimento dos netos que, por sua vez, crescem sem aquele equilíbrio educacional que os avós sempre proporcionam. As habituais visitas entre famílias amigas há mais de um ano que estão suspensas, fazendo-se o relacionamento por telefone ou, no melhor dos casos, por tele-conferência. Aquelas conversas e mesmo discussões que são a base da construção de amizades, solidariedades e mesmo de cumplicidades deixaram de existir.


Crianças e adultos «ligados» à net durante a maior parte do dia não fazem o necessário exercício físico, não praticam um inter-relacionamento emotivo pessoal que lhes permita um equilíbrio psicológico. São solitários em construção, se não o são já mesmo.

É sempre perigoso e delicado fazer generalizações, mas penso não ser abusivo se disser que os portugueses são usualmente tidos como sendo de uma grande afabilidade não sendo contudo, muito alegres e expansivos, como outros povos vizinhos. Não é, certamente, por acaso que o fado é a nossa música mais característica. É por isso que um ano inteiro de confinamento obrigatório em cima das nossas características próprias não pode deixar de vir a deixar sequelas na nossa sociedade, precisamente num país que, antes da pandemia, já era conhecido por ser dos que mais anti-depressivos consumia por habitante. Um exemplo de abuso notório no tratamento do que se passa é a notícia em letras garrafais de há poucos dias dando nota de que a GNR tinha acabado com um convívio ilegal de jovens na Mata do Bussaco: vai-se a ver e tratava-se de um encontro de cinco jovens naquele local ao ar livre. Será que o comando local da GNR não tinha mais nada que fazer do que alardear uma situação daquelas?


A solidão provocada terá, contudo, implicações muito mais sérias naqueles que têm as suas personalidades em construção, isto é, nas crianças e jovens. Não vejo preocupações com isso, mas é a razão pela qual as escolas devem (têm de) ser libertadas, em definitivo, o mais urgentemente possível para retomarem a educação. Para tal, será necessário que se adoptem medidas sanitárias concretas e caras para com as comunidades educativas? Pois que se tomem e com a maior urgência!

Sobre os perigos da actual situação, relembro o filósofo Carl Jung: «A solidão é perigosa e viciante. Quando você se dá conta da paz que existe nela, não quer mais lidar com as pessoas».
 
Texto publicado originalmente no Diário de Coimbra
Fotos recolhidas na Net; se tiverem direitos de autor, agradeço que me informem para serem retiradas

segunda-feira, 8 de março de 2021

Música para a ansiedade

 


Que o Papa Francisco é uma personagem brilhante do nosso tempo, aliando uma inteligência arguta a uma simplicidade desarmante é algo que todos percebemos desde que ocupou a cadeira pontifícia, como Bispo de Roma. Há poucos dias mostrou-nos mais uma sua faceta com a seguinte frase: "A minha ansiedade está bastante controlada. Quando me deparo com uma situação ou tenho de enfrentar um problema que me causa ansiedade, eu ataco-a. Tenho vários métodos para o fazer. Um deles é ouvir Bach". Sendo como é, no seu caso sem qualquer dúvida, um homem de Fé, o Papa Francisco tem certamente a felicidade de ter no seu coração e no cérebro as ligações divinas que lhe permitirão encontrar meios para encarar os problemas que todos os dias se lhe depararão e que grandes serão alguns deles, dada a dimensão da casa que governa. E, no entanto, tem a humildade de reconhecer que um dos métodos para enfrentar as dificuldades é inteiramente humano, recorrendo à satisfação que a beleza da arte transmite, no caso a música de um homem, que por acaso até era protestante, mas que dizia que compunha para maior glória de Deus.

Homem esse, do mais comum que se possa imaginar que, como se costuma dizer, tinha uma catrefada de filhos, que gostava de comer e beber bem e que, muito simplesmente, vivia de compor música para acompanhar as celebrações do Domingo seguinte ou da festa litúrgica importante que se seguia. E é assim que temos as suas Cantatas, Missas e as suas Paixões, mas também os Concertos de Brandeburgo as Sonatas e Partitas, para além de muitas outras obras que o seu cérebro produzia em catadupa, para além de ele próprio as interpretar de forma virtuosa em diversos instrumentos. Agradeçamos ao compositor Felix Mendelssohn que iniciou no século XIX a recuperação da música de Bach então praticamente esquecida, para ser hoje tão amada e considerada no mundo inteiro que o compositor deixou de ser apenas representante do período Barroco para ser um dos maiores, se não o maior, da História da Música.


E não é que, sendo eu o mais comum e mais anónimo dos homens me acontece encontrar aqui um ponto de contacto com o Papa Francisco? Também eu, quando alguma ansiedade me ataca tenho o hábito, já antigo, de ouvir Bach. Adianto mesmo quais as obras do grande compositor da época barroca que uso com esse fim: a cantata BWV 106, dita Actus Tragicus ou, quando o tempo abunda mais, a Paixão Segundo S. Mateus. Já agora, partilho haver outro compositor, mais moderno, que se juntou a Bach naquele papel de ansiolítico auditivo privado que é Mahler em várias das suas composições, nomeadamente a Quarta Sinfonia e alguns Lieder maravilhosos, em particular, por Jessie Norman ou Dieter Fischer Dieskau. Dieskau, cuja audição me faz sempre recordar o excelente amigo que já não está entre nós, o Eng. Azevedo Gomes, com quem mantinha as mais amistosas discussões sobre qual a mais perfeita Paixão de Bach, sendo que ele preferia a segundo S. João, por mais intimista.

Por que caminhos nos leva a música, mesmo que seja apenas falar sobre ela sem a ouvir, embora o esteja a fazer neste momento, através de um dos novos meios que vieram transformar por completo a forma como a ouvimos. O “streaming” através dos vários fornecedores do mercado que hoje já oferecem uma qualidade de som apreciável, bem como a possibilidade de ouvir emissoras de rádio pela internet, permite-nos libertar daquilo de que gostamos menos, através da audição de emissões especializadas nos mais variados tipos de música ou mesmo em compositores ou intérpretes específicos. No caso concreto, delicio-me com Glenn Gould e a sua interpretação ao piano das Variações Goldberg, lá está, de Bach, sem ter que me maçar a trocar de CD no aparelho, já que se controla tudo pelo écran do telemóvel que, neste caso sim, se pode chamar verdadeiramente inteligente.


Há muito tempo que se diz que ouvir 5 minutos de Mozart de manhã é a melhor garantia de um dia feliz. Neste caso simples tratar-se-ia de uma terapêutica preventiva, mas muitos cientistas já mostraram que a Música pode mesmo ter fins terapêuticos, desde o princípio até ao fim da vida, nas mais diversas condições. A musicoterapia pode ser usada nos cuidados paliativos ao promover o relaxamento e ajudando a diminuir a dor, podendo ainda ser benéfica na reabilitação da motricidade e em outros contextos que necessitem de apoio emocional. O conhecimento, ainda que empírico, dos efeitos benéficos da música em contexto de saúde não é uma novidade dos nossos dias A tradição hebraica diz que David tocou harpa para livrar o rei Saul do um espírito e os gregos, certamente não por acaso, tinham Apolo como deus da música e da medicina.

A Música é muitas vezes classificada como a arte suprema. Mas, a verdade é que, tal como outras formas de arte, desde a Literatura à Pintura e à Escultura, a sua fruição associa completamente a razão e a emoção, os dois lados da moeda que, de acordo com o cientista António Damásio caracterizam e explicam verdadeiramente a inteligência humana.
 
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 8 de Março de 2021