A nossa vida é caracterizada por fases calmas, mas também por momentos tempestuosos como as águas do mar tocadas pelo vento e ainda bem, se assim não fosse provavelmente não valeria a pena ser vivida. Mas, por vezes, a agitação das águas excede os limites do suportável e precisamos de uma acção de as acalme, tal como antigamente os marinheiros na tempestade atiravam azeite à água para acalmar a superfície. E esse é um papel que só os verdadeiros amigos estão em condições de cumprir, com dádiva e sem exigências em troca.
Tenho para mim que a capacidade de criar verdadeiras amizades é um dos aspectos essenciais da personalidade, que tem raízes na socialização desde criança e, essencialmente, dos bancos da escola. Daí o meu carinho para com as amizades que tenho desde essa altura da vida, que mantenho até hoje. Nos últimos tempos tenho sido testemunha do valor dessas velhas amizades, por boas e também tristes razões, que a vida não é só composta por momentos felizes e a morte faz obrigatoriamente parte dela, mais cedo ou mais tarde. Mas reencontrar amigos de infância que já não se viam há cinquenta anos, dar um abraço sentido e iniciar conversa como se se estivesse a continuar uma do dia anterior, é consequência de já se ter vivido todo esse tempo mas, sobretudo, sinal de que há sentimentos que nunca morrem. Nada disto será novidade para quem nasceu nos anos 50, 60 ou mesmo 70, sendo certamente o que escrevo partilhado pela imensa maioria desses leitores.
No entanto, os tempos que hoje vivemos vieram trazer novos significados à palavra amizade, mais exactamente ao termo «amigo». Por razões de estratégia comercial as redes sociais adoptaram o termo «amigo» em vez de utente ou mesmo de cliente, criando toda uma nova perspectiva de relacionamento pessoal, principalmente para quem cresce e desenvolve a sua personalidade dentro deste novo ambiente social. Amigo passa a ser quem faz parte uma lista de contactos na internet e não quem connosco partilhou sonhos e ilusões em conversas, olhares tantas vezes silenciosos mas tão significativos como aquelas. Algo que depende de contacto físico directo e não da presença num écran de computador, tablet ou telemóvel. Ainda por cima, os «amigos» são-no frequentemente por razões de educação ou simples cortesia, resultado de aceitação de pedidos de amizade através de «amigos de amigos» que não se conhecem de lado nenhum. Funciona aqui uma espécie de protocolo não escrito, que proporciona até o surgimento de perfis falsos que, através da utilização perfeitamente abusiva de um termo tão simpático como «amigo» é, tantas vezes, gerador dos mais diversos conflitos sociais.
Os telemóveis vieram substituir as agendas de papel onde tradicionalmente se apontavam os mais diversos compromissos, incluindo as datas de aniversário de pessoas amigas ou efemérides a recordar ou celebrar. Tratou-se de um avanço que evitava o trabalho anual de passar manualmente informação da agenda do ano velho para a do novo. Também aqui as redes sociais meteram a mão, ao apropriarem-se das agendas, fornecendo o serviço, à primeira vista simpático e prestimoso de informar «urbi et orbi» sobre as datas dos aniversários dos seus utentes. Como resultado, a maioria das pessoas passou a participar num rebanho de «parabenizadores» diários, tanto maior quanto mais alargado for o seu leque de «amigos» que chega frequentemente aos vários milhares. Resultado oposto é o de que, quem não autoriza que a data do seu aniversário seja pública na rede social, praticamente deixa de receber felicitações nessa data.
Estranhos tempos estes para a manifestação de amizade em que a simples lembrança dos aniversários é deixada ao cuidado das redes sociais, com o facebook à cabeça. Quem não se sujeita à tirania das redes sociais rapidamente passa à situação de ignorado social, quase pária, situação tanto mais bizarra quanto anos de convívio pessoal pareciam terem construído amizades que se poderia imaginar não soçobrarem aos negócios de compra e venda de informação sobre os hábitos e gostos dos utentes. A internet veio facilitar os contactos pessoais e de negócios a um nível global, algo inédito e positivo na história do mundo. A possibilidade de transmitir informação ou de fazer telefonemas com vídeo em tempo real é algo de um valor incalculável para a Humanidade. Mas não nos podemos deixar manipular pessoalmente por tudo aquilo com que nos acenam porque, como no mundo físico, também no mundo cibernético nem tudo o que reluz é ouro.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 21 de Junho de 2021
Imagens retiradas da internet
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