Mesmo entre países, há companhias que se preferia não ter. Portugal surgiu recentemente numa listagem acompanhado pelos seguintes países europeus: Eslováquia, Eslovénia, República Checa, Polónia, Hungria, Sérvia e Montenegro. Estranha companhia, dir-se-á. E concordo inteiramente. Trata-se dos países europeus (e só escolhi estes de uma listagem muito maior a nível mundial) que desceram de categoria no índice de classificação dos regimes políticos constante do relatório de 2021 do “V-Dem Institute” da Universidade de Gotemburgo, sendo o nível superior o de «democracia liberal» e o índice mais baixo o de «autocracia fechada», que corresponde aos regimes autocráticos que nem sequer realizam eleições. No caso de Portugal o presente relatório desceu a classificação de «democracia liberal» para «democracia eleitoral», surgindo como mais o desfavorável de entre os diversos componentes observados o relativo à componente de participação.
Todos estes “rankings” valem o que valem, como se costuma dizer, mas são importantes por manifestarem pontos de vista independentes e exteriores e essencialmente por permitirem análise de factores muito concretos a que, a certa altura, não damos importância por se nos tornarem demasiado familiares.
Em Democracia, tão importantes como os resultados que ditam quais as forças políticas que irão governar um país, são os processos que lhes dão origem. Isto para além de procedimentos que colocam eleições em causa como manipulação de cadernos eleitorais ou impedimentos ilegítimos de participação nas eleições. Todos sabemos disso. Refiro-me antes a procedimentos permitidos pela Lei, mas que levam os cidadãos a não participar nos actos eleitorais. Por exemplo, os processos de escolha dos candidatos pelos directórios partidários, sem participação dos próprios militantes dos partidos. Ou a impossibilidade de escolha dos deputados pelos eleitores, já que só lhes é permitido escolher por pacotes de nomes, isto é, listas fechadas de candidatos. Ou o facto de os regimentos dos grupos parlamentares dos partidos na Assembleia da República coarctarem a liberdade de voto dos deputados.
Na realidade,
o sentimento de que a Democracia se transformou numa partidocracia em que as
direcções partidárias aos diversos níveis se substituem progressivamente às
vontades dos cidadãos está cada vez mais difundido. Os partidos, ao longo dos
anos, foram adoptando aquilo a que antigamente, e numa determinada área
política, era o procedimento a que se dava o nome de «centralismo democrático»
e que mais não foi sempre do que a maneira de impor a vontade do directório.
Por outro lado, a apropriação do Estado pelos partidos no poder torna-se cada vez mais óbvia e muitas vezes impeditiva do normal funcionamento da sociedade e da economia. A nomeação de militantes ex-governantes para organismos de regulação económica de cuja independência depende o normal funcionamento dos mais diversos sectores só vem acentuar o sentimento de que os partidos metem a mão em tudo, mesmo no que não deviam. As recentes transferências do ex-ministro das Finanças para Governador do Banco de Portugal e da deputada e ex-ministra dos Portos para presidente da Autoridade da Mobilidade e dos Transportes são apenas os exemplos mais recentes, e inaceitáveis, disso mesmo.
O resultado destas práticas é o progressivo afastamento dos cidadãos da vida pública, que tem duas consequências imediatas, além do enfraquecimento das instituições públicas: a abstenção e o acolhimento de propostas populistas.
Quanto aos populismos, não vale a pena salientar muito esse aspecto que está à vista de todos e falar deles só lhes dá palco. Já a abstenção eleitoral é algo de que nenhum partido gosta que se fale, mas é a resposta popular mais forte à falta de respeito pelos cidadãos e suas vontades. De uma abstenção de 8,5% nas eleições da «festa da democracia» em 1975, passou-se para 33,8% em 1995 e nas últimas eleições legislativas em 2019, já foi a «força política» mais votada: 51,4%. O PS que originou o governo que saiu destas eleições, o actual, teve 36,34% dos votos expressos, mas relativamente aos inscritos, só foi escolha de 17,6% dos cidadãos. Esta é a sua verdadeira representatividade. Todavia, isso não impede que governe sozinho como se dispusesse de uma maioria absoluta e que tome conta de todo o aparelho de Estado como se fosse sua propriedade. Tudo isto com a mais completa passividade ou mesmo conivência das oposições que se preocupam mais com a comida dos animais domésticos, com a liberalização do uso das drogas, ou com os vencimentos deste ou daquele nomeado pelo Governo, passando ao lado do verdadeiro problema, que é a governamentalização do que devia ser nacional.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 14 de Junho de 2021.
Imagens retiradas da Internet.
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