segunda-feira, 2 de agosto de 2021

HEROÍNAS VERDADEIRAS

 


Lembro-me bem do espanto colectivo que aquela menina de 14 anos provocou por todo o mundo através da transmissão directa pelas televisões, entre nós e infelizmente ainda a preto e branco, a partir de Montreal no Canadá aquando dos Jogos Olímpicos de 1976. A ginasta romena Nadia Comăneci atingia a perfeição na sua actuação nas barras assimétricas, sendo a primeira da história dos jogos a obter a nota 10. Não se ficando por aí, a ginasta acabou por conquistar três medalhas de ouro e ainda mais seis notas 10 durante aqueles jogos, tendo estado presente nas seis finais em que tal era possível.

A sua execução dos exercícios, em particular na trave, era demonstrativa de uma forma absolutamente natural de se mover no aparelho que tanto medo provoca aos atletas vulgares, algo que com Nadia pura e simplesmente não acontecia. Essa atitude foi uma constante em toda a sua carreira de ginasta, desde a idade de seis anos em que chamou a atenção pelo seu completo à-vontade sobre os aparelhos. Durante a sua carreira como atleta olímpica, Nadia Comăneci conquistou nove medalhas incluindo cinco de ouro, além de quatro medalhas mundiais e doze europeias. Recordo ainda esses jogos de Montreal quando o nosso grande Carlos Lopes, dando tudo o que tinha, perdeu nos últimos metros a final dos 10.000 metros contra Lasse Viren, para vir a vencer a maratona, oito anos mais tarde, em Los Angeles para orgulho e entusiasmo de todos os portugueses.


Já não tenho uma memória tão vívida da actuação de outra grande ginasta, a soviética Olga Korbut, nos Jogos Olímpicos de Munique em 1972, talvez porque esses jogos ficaram impressivamente marcados pelo massacre levado a cabo por terroristas palestinianos sobre atletas israelitas. Mas nesses jogos e apenas com 17 anos, um pouco mais de 1,5m e 40 kg de peso, Olga Korbut deu nas vistas pelas suas extraordinárias actuações acrobáticas, recebendo três medalhas de ouro e a prata nas barras assimétricas. Há mesmo dois movimentos na ginástica acrobática inventados por Olga Korbut e que por isso levam o seu nome, um nas barras assimétricas e outro na trave. Também Korbut manifestava uma total naturalidade em cima dos aparelhos enquanto executava movimentos de extraordinária dificuldade e enorme perigo, tanto maior quanto mais espectaculares e motivadores de entusiasmo do público. Nesses jogos de Munique, um extraordinário atleta português, Fernando Mamede, mostrava quanto a condição mental pode afectar as prestações físicas, não sendo capaz de ultrapassar o stress que sempre acompanha a competição desportiva a alto nível, não o deixando obter as suas marcas habituais de treinos. Como prova da sua real categoria, ficou o recorde mundial dos 10.000 m obtido em Estocolmo em 1984.


Em Julho de 2021 realizaram-se finalmente em Tóquio os Jogos Olímpicos que deveriam ter tido lugar no ano anterior, adiados por causa da pandemia COVID-19. E, na equipa norte-americana de ginástica artística está incluída Simone Biles, já consagrada como a melhor ginasta de sempre. Biles, de 24 anos de idade, 1,42m e menos de 50 kg de peso é a atleta mais medalhada de sempre na modalidade, em campeonatos mundiais e jogos olímpicos, num total de 25 medalhas, sendo 19 delas de ouro. Nos jogos Olímpicos do Rio de Janeiro em 2016, os únicos em que tinha anteriormente participado, subiu 5 vezes ao pódio, para receber 4 medalhas de ouro e uma de bronze. Foi a primeira ginasta a ganhar três Campeonatos Mundiais consecutivos no individual e é a única a ter o seu nome em quatro movimentos tendo sido, há poucos meses, a primeira mulher a conseguir fazer um salto (Yurchenko Double Picke) no cavalo, algo que até então apenas alguns homens conseguiram executar. A sua capacidade física extraordinária permite-lhe executar movimentos quase impossíveis de imaginar, com uma elegância, uma destreza e um domínio do corpo unanimemente considerados pelos especialistas como a perfeição.

E no entanto…em Tóquio Simone Biles sentiu, logo nas primeiras actuações ainda nas eliminatórias, que “quando estava no ar, não sabia onde estava”. E desistiu da competição. De facto, aqueles exercícios realizados a uma velocidade vertiginosa exigem, não só um completo e perfeito controlo muscular, mas também uma atitude desprendida perante a sua concretização. E terá sido este aspecto que falhou a Simone Biles. Já muito se disse e escreveu pelos mais diversos especialistas para tentar explicar o sucedido, falando-se mesmo em saúde mental. Penso que a realidade é muito mais simples. Aquelas grandes ginastas Olga Korbut e Nadia Comăneci tinham 14 anos aquando dos seus maiores sucessos na ginástica. Tal como em outros desportos que necessitam de controlo físico e mental extremos, há um limite de idade (pessoal) a partir do qual o cérebro tem que tratar de muito mais informação do que quando se é praticamente criança. E, seja qual for o motivo da desistência de Simone Biles, não se trata de um fracasso, uma vez que ela já não tem nada a provar. E sim, é uma verdadeira heroína. Não só pelos sucessos, mas também por como lidou com as suas falhas.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 2 de Agosto de 2021

Imagens recolhidas na internet

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