segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Argentina: país falhado

 


A Argentina é frequentemente apresentada como o exemplo perfeito de como um país pode passar, em pouco tempo, de acentuada riqueza à pobreza generalizada.

De facto, durante umas cinco décadas a Argentina cresceu de uma forma espantosa, até chegar a ser, nos anos 20 do século XX, um dos países mais ricos do mundo. Até à Primeira Grande Guerra a Argentina cresceu imenso com uma economia clássica baseada nas exportações agrícolas: bovinos, peles e cereais. Com o início da guerra, os preços internacionais destes produtos caíram a pique e a Argentina entrou em declínio porque não fez reformas económicas e as suas elites não foram capazes de inovar e alterar formas de produção. Com o declínio da economia surgiram as crises políticas. Logo em 1930 deu-se o primeiro golpe militar e até aos anos 80 o país viveu quase sempre em ditadura, como breves períodos de democracia formal, mas sem que se estabelecesse nunca um verdadeiro sistema democrático liberal.

Juan Domingos Péron foi eleito presidente em 1946. Em 1943 tinha participado num golpe militar, como coronel, na sequência do qual foi nomeado ministro do Trabalho. Foi aqui que começou a relacionar-se com os sindicatos e movimento operário, numa relação de que haveria de surgir o peronismo (ou justicialismo) então numa base trabalhista. Depois de eleito tratou imediatamente de substituir juízes no Supremo Tribunal que antes funcionava à imagem do Supremo Tribunal de Justiça americano, para eliminar constrangimentos à sua governação. Foi eleito democraticamente, mas depressa usou essa eleição para minar o sistema democrático e governar como um ditador populista tirando de cena quem dele discordasse.


 Peron foi derrubado em 1955 por outro golpe militar a que se seguiram diversos governos civis e militares, numa história trágica sob o ponto de vista dos direitos humanos e do desenvolvimento económico do país. Na década de setenta o regime militar levou a repressão a níveis inimagináveis com milhares de mortos e centenas de milhares de pessoas presas e torturadas.

Em 1983 foi finalmente eleito democraticamente o presidente Raúl Alfonsín do Partido Radical. Mas logo em 1990 o eleito foi Carlos Menem do Partido Peronista. E também Menem não só substituiu juízes do Supremo como aumentou o seu número para o dominar politicamente, além de fazer alterar a própria Constituição para permitir mais mandatos presidenciais. O Peronismo, sob a capa de democracia, na realidade instituiu um sistema de partido praticamente único, o Partido Justicialista ou Peronista que agiu desde sempre e até hoje, através dos mais diversos processos de compra de votos e corrupção com vista a conservar o poder.

No início deste século a Argentina sofreu uma crise económica em grande parte consequência das políticas de Menem que em 1991 vinculou o peso argentino ao dólar americano, Durante algum tempo conseguiu suster a inflação elevadíssima, mas depois foi o caos porque tornou as exportações argentinas muito caras e as importações baratas aumentando a dívida. No fim de 2001 o governo congelou todas as contas bancárias e as pessoas só podiam levantar dinheiro em pesos quando tinham depositado dólares naquilo a que os argentinos chamaram «el curralito». Se ao princípio a perda era reduzida, o governo acabou por converter todos os dólares em pesos, com uma perda de ¾ do seu valor inicial revertendo o diferencial para o Estado. Mais uma vez o Governo enviava para o caixote do lixo os direitos de propriedade apenas para encontrar forma de pagar os seus erros políticos e económicos crassos.

Num sistema democrático liberal deve ser prevista a protecção da propriedade privada sendo essencial um sistema jurídico imparcial e a prestação de serviços públicos que assegurem condições equitativas às diversas classes sociais. Isto é, as instituições económicas precisam do Estado garante da regulação e equidade, além da justiça e serviços básicos como a segurança e redes de transportes. Quando isso deixa de suceder, mesmo os países mais ricos rapidamente entram em declínio. O que sucede em particular com golpes militares e populismo nacionalista que têm como consequência a médio e longos prazos o empobrecimento geral da população e o enriquecimento das elites ligadas ao poder.

Há escassas semanas tive oportunidade de ler uma excelente e muito sentida crónica aqui no DC da autoria de José Manuel Diogo sobre a Argentina e, muito particularmente, sobre a decadência da sua capital, Buenos Aires. Na realidade, a Argentina é, de facto, o epítome da degradação de um país, desde o sucesso económico e social até à pobreza sob os mais diversos pontos de vista, sendo a capital apenas a imagem trágica do que vem sucedendo no país desde há cerca de cem anos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 22 Agosto 2022

Imagens retiradas da Internet

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