segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Putin, derrotado

 


A primeira e principal razão apresentada por Putin apara invadir a Ucrânia, faz agora um ano, foi «a desnazificação» da Ucrânia. Em paralelo, argumentou com uma» zona de segurança» da Federação Russa perante uma expansão do inimigo NATO.

O resultado dessa invasão, que continua, salda-se hoje em muitos milhões de refugiados ucranianos, milhares de civis ucranianos mortos, incluindo mulheres e crianças e destruição inacreditável de cidades inteiras com bombardeamentos de artilharia e mísseis lançados a partir de território russo e do mar Negro. Isto para além de largas dezenas de milhares de soldados mortos de ambos os lados, sejam atacantes russos, sejam defensores ucranianos.

Nas primeiras semanas da invasão o alvo principal dos russos foi a própria capital da Ucrânia, Kiev. Ficou evidente, para todo o mundo, que o objectivo imediato de Putin era conquistar a capital e instalar um regime fantoche por si comandado, como já acontece em vários países da antiga União Soviética.

Só que aconteceu o impensável. Os ucranianos fizeram das tripas coração, agarraram-se à sua terra e conseguiram repelir o ataque à sua capital, apesar dos proclamados 60 km de extensão da coluna invasora russa. Desde então, os russos praticam uma técnica de guerra implacável de destruição de cidades, quer sejam edifícios de habitação, ou sejam escolas ou hospitais, numa demonstração de total desprezo pela vida de civis desarmados sem defesa e das leis e convénios internacionais. A actuação criminosa e bárbara dos soldados russos vai ainda mais além, cometendo sistemáticos crimes de guerra contra a população civil que, mais tarde ou mais cedo, terão de vir a ser objecto de julgamento em tribunais internacionais. Tempo virá em que o próprio Putin poderá ter que se sentar no banco dos réus.


Mas, entretanto, muita desgraça está e ainda vai acontecer, fazendo-se votos de que a patente demência de Putin não o leve a fazer subir a guerra ao patamar seguinte que levaria ao holocausto nuclear e à destruição de grande parte da Humanidade.

Acima de tudo há que perceber os processos mentais de Putin e desmontar a sua máquina de propaganda que, até entre nós consegue encontrar defensores. Para o comprovar basta ver que os deputados comunistas, usando embora da sua indiscutível liberdade, não apoiaram as intervenções de apoio à Ucrânia invadida e repúdio da Rússia invasora na Assembleia da República no passado dia 24 de Fevereiro.

Parece-me evidente que a teoria da «desnazificação da Ucrânia» de Putin radica na necessidade de obter o apoio da população russa que, como seria normal, deveria aceitar com dificuldade a invasão de um país vizinho, ainda por cima com tantos laços históricos. Ao usar o termo «nazi» Putin sabe bem que está a apelar a um sentimento profundo dos russos que colectivamente têm ainda uma memória trágica do sucedido na II Grande Guerra. De facto, embora a Alemanha nazi e a URSS comunista tivessem assinado um tratado de não agressão em Agosto de 1939, imediatamente antes da invasão alemã da Polónia, a Alemanha levou a cabo a Operação Barbarrossa a partir de Junho de 1941 invadindo a União Soviética. Invasão que só terminaria em Janeiro de 1942, tendo morrido mais de 26 milhões de soviéticos. Para além disso, os alemães perpetraram todo o tipo de crimes de guerra, numa barbárie impossível de descrever. O povo russo tem assim uma memória do nazismo que não desaparecerá durante muitos anos e a simples menção de «nazi» tem uma imediata reacção de rejeição.

Putin sabe bem disso e utiliza o argumento da forma mais despudorada, torcendo a situação da Ucrânia, que ainda por cima também sofreu na carne a invasão nazi, tem um regime democrático ao contrário do que hoje acontece na Rússia e o seu presidente Zelensky é de origem judaica.

No entender de muitos, Putin percebe que já perdeu a guerra e, como todos os ditadores, só encontra o caminho do tudo ou nada que leva inevitavelmente ao desastre. Já perdeu, porque todos os seus objectivos iniciais estão perdidos: o ataque directo à capital ucraniana foi um fiasco; a Ucrânia continua a existir e, a seu tempo, vai entrar na União Europeia; a NATO está mais forte e unida, com entrada até de novos países tradicionalmente neutrais como a Finlândia e a Suécia; a União Europeia encontrou novos motivos de união, quando andava um pouco perdida pensando apenas na economia; aliás, a União Europeia percebeu mesmo a necessidade de garantir a sua própria segurança, para além do guarda-chuva americano da NATO; por fim, a chantagem energética foi furada, tendo a Europa ocidental encontrado fontes energéticas alternativas ao gás e petróleo russos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 27 Fevereiro 2023 

Imagens retiradas da inrenet

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

FINALMENTE, ALGUMA LUZ

 


O país acordou finalmente para um velho problema que, apesar de tão hediondo, muita gente ao longo de centenas de anos foi escondendo debaixo do tapete. Os abusos sexuais de crianças não são de hoje, nem sequer exclusivo de determinadas geografias, mas surgem hoje como crime muito pelo desenvolvimento de normativas internacionais sobre os direitos da criança, nomeadamente:

- a Declaração de Genebra de 1924 sobre os direitos da criança,

- a Declaração dos direitos da criança adoptada pelas Nações Unidas em 1954 e, finalmente,

- a Convenção sobre os direitos da criança aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Novembro de 1989 e assinada por Portugal em Janeiro de 1990.

Por aqui se vê que foi só nos últimos cem anos que os direitos específicos da criança, cruciais para a sua defesa perante os mais diversos ataques, começaram a surgir no direito internacional, para depois integrarem os direitos nacionais.

Os abusos sexuais surgem como um dos mais vis ataques aos direitos das crianças, incapazes de se defender pelos mais diversos motivos: fragilidade física, desenvolvimento mental insuficiente para perceber o que se passa e medo ou respeito pelos mais velhos, familiares ou responsáveis por instituições onde se inserem. É um facto conhecido que a esmagadora maioria dos abusos sexuais de crianças se verifica em ambiente familiar, circunstância que torna dificílima a sua detecção precoce ou mesmo posterior à sua prática, quase sempre continuada. É igualmente reconhecido que o seu silenciamento posterior relativamente aos abusos sofridos se deve normalmente a sentimentos de medo, vergonha ou mesmo culpa.


Os portugueses tomaram agora conhecimento do Relatório Final da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa denominado «Dar voz ao silêncio». Esta comissão presidida pelo reconhecido médico pedopsiquiatra Pedro Strecht e constituída por reputados cidadãos especialistas em diversas áreas trabalhou durante um ano, a convite da Conferência Episcopal Portuguesa. O período temporal em análise estendeu-se de 1950 aos nossos dias, tendo sido validados depoimentos de 512 vítimas de entre as pessoas que se apresentaram à Comissão, utilizando os meios por esta colocados à disposição. A Comissão pediu ainda às 21dioceses e aos 127 institutos religiosos existentes em Portugal a realização de um levantamento de casos de abuso sexual de crianças nos respetivos arquivos entre 1950 e 2022. A Comissão esclarece que as 512 vítimas directas colocam na mira pelo menos outras 4300, pelo facto de os abusadores lesarem mais que uma criança. A Comissão fez um tratamento estatístico pormenorizado das situações, mas um dado impressivo é que 77% dos abusadores eram padres.

Na realidade, o conhecimento desta situação só peca por tardio. Depois de tudo o que soube por esse mundo fora, seria uma pura ingenuidade imaginar que em Portugal fosse diferente. O que coloca a Igreja, também em Portugal, numa situação muito difícil já que a dimensão do problema não permite pensar que é uma questão de um ou outro padre. Há um problema da própria Igreja, que sai deste Relatório com a necessidade absoluta de se reformar profundamente, não adiantando argumentar que resiste há dois mil anos.

A Igreja assume-se como dogmática, constituindo-se como única e exclusiva possibilidade de intermediação entre os fiéis e o próprio Deus, não permitindo colocar em questão os dogmas que ela própria foi constituindo ao longo dos séculos. E, se o cristianismo foi e é uma fonte importantíssima de ética, a acção dos padres e bispos pode colocar isso em causa. O povo português sempre deu mostras de algum anti-clericalismo que se manifesta por vezes num anedotário referente, por exemplo, a relações sexuais de padres com mulheres com filhos e «afilhados» à mistura, denotando até alguma compreensão perante necessidades básicas desses homens. Mas os abusos sexuais de crianças não têm nada a ver com isso. Trata-se de crimes horrorosos que não podem ser aceites e muito menos escondidos por ninguém, a começar pelos responsáveis superiores da Igreja que são os bispos. E está criada a sensação geral de que, ao longo dos anos, esses responsáveis tudo fizeram para encobrir essas situações, colocando um suposto interesse corporativo da Igreja acima dos direitos das crianças vítimas. E isso é insuportável pela sociedade nos dias de hoje, não sendo uns simples pedidos de desculpa que ultrapassarão o que foi feito a milhares de crianças vítimas de padres cuja acção predatória foi encoberta pela Igreja durante demasiado tempo.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em  20 de Fevereiro de 2023

Imagens recolhidas na internet

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Ai, Portugal, Portugal


 

Ai, Portugal, Portugal
De que é que tu estás à espera?
Tens um pé numa galera
E outro no fundo do mar

 

Este o refrão de uma das músicas inesquecíveis do genial Jorge Palma. E não é possível observar o Portugal de hoje, sem que nos venha à cabeça. Não se trata de diminuir Portugal nem de lhe faltar ao respeito, e sim de manifestar uma certa consternação e mesmo desapontamento pelos caminhos que trilhamos.

Claro que, ao longo da nossa longa História, lá fomos encontrando saídas para situações de impasse, umas vezes com brio e coragem, outras com alguma dose de malandrice. Mas nunca como hoje, uma vez que estamos em democracia, o futuro esteve dependente da vontade expressa do povo e não apenas de elites mais ou menos esclarecidas.

O 25 de Abril, já lá vão quase 50 anos, isto é, mais do que durou a ditadura do Estado Novo, veio devolver a palavra a todos os portugueses, um a um, independentemente de sexo, idade, condição social ou riqueza. É seguramente, uma situação que exige muito mais responsabilidade de todos nós. Apesar de tudo, os primeiros anos do regime democrático, ultrapassada a fase revolucionária, vieram mostrar um povo adulto e que sabe muito melhor o que quer do que muitos imaginariam. 


Mas o regime assenta na escolha de partidos para a governação nacional e das autarquias locais, além das duas regiões autónomas. E os partidos, que no início do regime receberam no seu seio as elites sociais que se tinham formado intelectual e profissionalmente durante o antigo regime, à esquerda e à direita, foram evoluindo internamente vendo-se hoje, pela simples passagem do tempo, que são dirigidos por dirigentes políticos que ou eram crianças pequenas em 74 ou já nasceram depois disso. A sua formação política, em grande parte, ou na sua grande maioria fez-se nas juventudes partidárias, de onde passaram para os partidos e daí para as comissões concelhias e distritais, seguindo-se lugares nas autarquias locais e na assembleia da República. E esta formação política sobrepõe-se largamente, e notoriamente, à formação académica e profissional, criando bolhas partidárias estranhas aos verdadeiros problemas dos portugueses e, sobretudo, da economia real das empresas que tudo paga através dos impostos sobre a produção e sobre os empregos.

Aqui estará grande parte da justificação  do estado anémico da nossa economia que se reflecte numa descida de Portugal no ranking europeu do produto per capita sendo ultrapassado já pela maioria dos países, já que o rendimento per capita foi em 2021 de 75% da média europeia, quando era de 78% em 2015, logo depois do governo da troica. Isto apesar da chuva de milhares de milhões da União Europeia.


Os partidos e a sociedade radicalizam-se à esquerda e à direita, enquanto os partidos do centro se mostram incapazes de dar o salto necessário. O PS, embora governando em maioria absoluta, afunda-se na mais completa incapacidade de reformar o país, enredando-se num discurso de pura defesa do poder. O PSD, embora consiga agora criticar a governação no concreto, não mostra ao país um conjunto coerente de propostas alternativas que alterem o rumo do país. A economia precisa essencialmente que a deixem evoluir nas direcções que entender serem as melhores, livrando-se definitivamente do dirigismo socialista que acha que tudo sabe e tudo quer orientar. A carga fiscal portuguesa sobre a economia é uma canga pesada que dificulta a competitividade das nossas empresas somando-se à excentricidade do país relativamente ao centro geográfico europeu. E, muito importante, o PSD não dá uma resposta definitiva sobre a sua relação futura com o partido Chega, num sentido ou no outro, espero eu que clarificando a recusa absoluta de qualquer acordo, seja em que situação for. Já basta o que o país sofre em consequência da Geringonça que colocou o governo do PS alegremente nas mãos chantagistas do BE e do PCP, para que o PSD venha a cair no mesmo erro.

Os principais serviços públicos, com a Saúde e a Educação à cabeça, mas também a Justiça e as forças de Segurança como o SEF, atravessam crises de uma profundidade impressionante. É claro para toda a gente que nenhum deles voltará a ser o que eram há uns vinte anos, porque o dinheiro necessário para os recuperar sem reformas profundas pura e simplesmente não existe.

Nos últimos tempos percebe-se claramente que o presidente da República está angustiado com a consciência da situação. E sabe bem que, apesar da situação de estagnação da governação, é muito provável que eleições antecipadas não fossem alterar a situação, sendo quase certo que o PS se colocaria de novo nas mãos da esquerda mais radical.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 13 Fev 2023

Imagens recolhidas na internet

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Parques e Jardins

 


Uma das primeiras obrigações de qualquer autarquia é cuidar do espaço público. Quando tal não acontece, as implicações no bem-estar das populações e consequente qualidade de vida são graves. A qualidade do espaço público urbano é essencial para a sustentabilidade das cidades, a nível ambiental, mas não só. Quando se fala de espaço público é frequente considerar apenas as ruas, com os seus passeios e vias rodoviárias, importantes para a mobilidade, mas os parques verdes e jardins têm uma importância semelhante.

Felizmente, Coimbra tem diversos parques urbanos que transmitem à cidade uma vivência muito própria. À cabeça surge, naturalmente, o Jardim Botânico com a sua mata anexa. Trata-se de um parque de excelente qualidade, muito bem cuidado, talvez por pertencer à Universidade de Coimbra e servir de base a estudos e trabalhos científicos. Está aberto à comunidade de forma gratuita e tem características únicas que lhe conferem uma apetência grande para adultos, mas também crianças. Talvez por encerrar ao fim do dia, é um parque seguro e de muito agradável fruição.

O mesmo não sucede com o parque de Sta Cruz, a Sereia como é mais conhecido, com um valioso património arquitectónico e artístico permanentemente alvo de um vandalismo inaceitável. Há muitos anos que a Autarquia não consegue acertar com uma solução que resolva o problema da falta de segurança quase permanente, mas acentuada a partir do meio da tarde. É igualmente notória a falta de cuidado com a manutenção de equipamentos e limpeza, o que evidentemente diminui ou anula mesmo a capacidade de atracção deste belíssimo parque situado mesmo no interior da Cidade. Não seria altura de dotar a Sereia de estruturas de utilização colectiva aberta e atraente que chamem os moradores vizinhos, mas não só, de forma a trazer para dentro dela cidadãos das mais diversas faixas etárias?


A Cidade sofreu uma mudança radical, para melhor, com a construção dos dois parques verdes nas duas margens do Mondego. Se, até então, Coimbra tinha o Mondego nas canções e pouco mais, a Cidade passou a estar virada para o seu rio com permanentes multidões a usufruir dos novos equipamentos. Curiosamente, o primeiro a ser feito, na margem direita, parece ter servido de teste para os projectistas que emendaram a mão no projecto da margem esquerda. Se aquele carece notoriamente de árvores e respectivas sombras, bem como de bancos para os utentes, o da margem esquerda tem tudo isso em quantidade, sendo muito mais agradável de utilizar, principalmente nos quentes meses de Verão. Passados estes anos talvez fosse altura de renovar o parque verde da margem direita, dotando-o de melhores condições de fruição, já que aquele espaço não pode servir para pouco mais que frequentar os restaurantes. E a ponte pedonal de Pedro e Inês com tantos vidros partidos não merece mais cuidado?

Mas logo ali entre o Parque Verde e a Portagem encontra-se o antigo Parque Dr. Manuel Braga. No seu site a Câmara Municipal informa-nos tratar-se de um «parque emblemático da Cidade» e tem razão. Só que…


Este parque foi objecto de uma empreitada de requalificação no montante de quase 4 milhões de euros que durou mais de dois anos tendo terminado há pouco tempo, estando já aberto ao público. Do conjunto de trabalhos aparecia em primeiro lugar a «Requalificação paisagística do parque com a substituição de espécies vegetais, que inclui a elaboração do estudo fitossanitário». Infelizmente, percorrendo-se hoje o parque, o que se vê é de uma tristeza quase indescritível, desde a quase total ausência de canteiros de flores, a um estado péssimo dos pavimentos e à existência de espaços sem qualquer utilização, onde antes existiam canteiros de grande dimensão. Será que este trabalho essencial foi retirado do Caderno de Encargos? Ainda bem que foram construídos novos muros sobre o rio, em substituição dos antigos que ameaçavam ruina. E ainda bem que os antigos azulejos dos bancos foram recuperados. Mas ninguém dos projectistas e do Dono de Obra se lembrou de forrar os muros de betão dando-lhes um aspecto mais consentâneo com as características próprias deste Parque com mais de cem anos? A vista a partir da margem esquerda é deprimente.

Coimbra tem mais parques e jardins , embora de menor dimensão, que não de interesse. A placa central da Av. Sá da Bandeira é um deles, estando normalmente, e felizmente, bem cuidado. Neste caso, a pandemia serviu para alterar hábitos, permitindo-se a colocação de esplanadas, e ainda bem. Coimbra sempre teve a característica de ter muitas flores em numerosos jardins. Também nesse aspecto está a ser ultrapassada por outras cidades, vejam-se os exemplos de Braga, ou Guimarães. Recuperemos o tempo perdido e cuidemos do nosso espaço público para bem de todos nós, com competência, mas também com amor pela nossa cidade.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 6 de Fevereiro de 2023

Imagens recolhidas na internet

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

HÁ 200 ANOS, HÁ 100 ANOS E HOJE


 Foi em 1823 e em 1923: datas em que acontecimentos mudaram o curso da nossa História mas que um pouco incompreensivelmente, ou talvez não, mostram que, apesar de tudo, as nossas circunstâncias não mudaram tanto como era suposto ter acontecido. À vista é tudo diferente dos nossos dias, mas abaixo da superfície há muitas, mesmo demasiadas, semelhanças. Um pouco à imagem da frase que Tomasi de Lampedusa colocou na boca do príncipe de Falconeri no seu «O Leopardo»: «Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude».

As invasões francesas tinham deixado o país praticamente destruído e exangue. A corte portuguesa, num total de cerca de 15.000 pessoas, muito sensatamente tinha fugido para o Brasil perante o olhar desconsolado de Junot, a 27 de Novembro de 1807. O último invasor derrotado e já em fuga, Massena, tinha atravessado a fronteira com Espanha em Abril de 1811, mas o país continuou praticamente ocupado, desta vez pelo ingleses, que nos transformaram num protectorado regido pelo Marechal Beresford. O povo português passou a odiar o inglês de uma forma generalizada pela forma sobranceira e mesmo brutal como agia, lembrando-se aqui o sucedido a Gomes Freire de Andrade e seus companheiros. Só depois da revolução liberal de 1820 o rei D. João VI se decidira a deixar o Brasil e regressar a Portugal onde desembarcara em 4 de Julho de 1821. Logo em Julho de 1822 as Cortes constituintes aprovariam a Constituição que proclamava a soberania do povo, marcando eleições para a Câmara de Deputados em Agosto, precisamente quando o Brasil proclamava a sua independência, sendo D. Pedro aclamado imperador do Brasil em13 de Outubro. Mas o regime liberal tinha sido implantado muito às costas do povo e o caldo de revolta contra a nova ordem política permitiu a reacção da «Vilafrancada» conduzida por D. Miguel em Maio de 1823. Daí até à guerra civil entre 1832 e 1835 seria um passo. Os liberais venceriam os absolutistas, mas o país ficou ainda mais pobre com divisões que ainda hoje são perceptíveis de quando em quando.


Em 1 de Fevereiro de 1908 deu-se o terrível atentado que vitimou o rei D. Carlos e o filho primogénito herdeiro da coroa Luís Filipe. A Monarquia terminou em 5 de Outubro de 1910 tendo-se-lhe seguido a Primeira República. O Partido Democrático governou o país até 1915 mas, logo em 1917, uma ditadura militar apareceu sob a chefia de Sidónio Pais que se fez eleger presidente em Abril de 1918, tendo ficado conhecido como «presidente-rei» apenas para ser assassinado em Dezembro desse mesmo ano. O país praticamente entrou de novo em guerra civil, desembocando na célebre «noite sangrenta» em 19 de Outubro de 1921 em que foram barbaramente assassinados, entre outros, o presidente do Ministério António Granjo, e dois históricos da proclamação da República, Machado Santos e José Carlos da Maia. Desde 1921 até 1925 o Partido Democrático foi governando com governos a sucederem-se sucessivamente. O ano de 1923 foi apenas um ano no meio desta situação que durou até que se verificasse um novo pronunciamento militar estando criado o ambiente de boa recepção a quem viesse «pôr ordem no país». E foi preciso pouco tempo até que essa revolta surgisse em Braga em 1926 e dessa vez dando origem a uma «ditadura militar» que por sua vez desembocaria no regime civil ditatorial do «Estado Novo» com Salazar, regime que só viria a terminar em 25 de Abril de 1974.

Aldous Huxley escreveu que «Talvez a maior lição da História seja que ninguém aprendeu as lições da História». A constatação de ciclos políticos, ainda que de cem anos, só é possível depois dos sucessos acontecerem. Mas é possível detectar os ambientes sociais que se criam, embora os responsáveis por tal não o consigam fazer porque vivem dentro de uma bolha que os impede de observar a realidade. E é precisamente essa situação de distanciamento da classe política (governantes e oposição) que cria situações de cansaço que leva muito rapidamente a revoltas generalizadas. Quem pensa que pelo facto de as pessoas terem um aspecto mais moderno e actualizado estão também completamente diferentes no seu íntimo, poderá estar muito enganado. Há estigmas socialmente enraizados durante séculos que não desaparecem instantaneamente por obra e graça de leis ou decretos. E os responsáveis políticos, todos eles, deveriam estar conscientes disso, em vez de confiar cegamente nos efeitos da chuva de dinheiro da União Europeia. Até porque há sempre alguém à espreita para se aproveitar dos ambientes sociais degradados. E a segurança colectiva é algo que ninguém pode dar por garantido como os ucranianos constatam há quase um ano.

Publicado origialmente no Diário de Coimbra em 30 Janeiro 2023

Imagens retiradas da internet