O país acordou finalmente para um velho problema que, apesar de tão hediondo, muita gente ao longo de centenas de anos foi escondendo debaixo do tapete. Os abusos sexuais de crianças não são de hoje, nem sequer exclusivo de determinadas geografias, mas surgem hoje como crime muito pelo desenvolvimento de normativas internacionais sobre os direitos da criança, nomeadamente:
- a Declaração de Genebra de 1924 sobre os direitos da criança,
- a Declaração dos direitos da criança adoptada pelas Nações Unidas em 1954 e, finalmente,
- a Convenção sobre os direitos da criança aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Novembro de 1989 e assinada por Portugal em Janeiro de 1990.
Por aqui se vê que foi só nos últimos cem anos que os direitos específicos da criança, cruciais para a sua defesa perante os mais diversos ataques, começaram a surgir no direito internacional, para depois integrarem os direitos nacionais.
Os abusos sexuais surgem como um dos mais vis ataques aos direitos das crianças, incapazes de se defender pelos mais diversos motivos: fragilidade física, desenvolvimento mental insuficiente para perceber o que se passa e medo ou respeito pelos mais velhos, familiares ou responsáveis por instituições onde se inserem. É um facto conhecido que a esmagadora maioria dos abusos sexuais de crianças se verifica em ambiente familiar, circunstância que torna dificílima a sua detecção precoce ou mesmo posterior à sua prática, quase sempre continuada. É igualmente reconhecido que o seu silenciamento posterior relativamente aos abusos sofridos se deve normalmente a sentimentos de medo, vergonha ou mesmo culpa.
Os portugueses tomaram agora conhecimento do Relatório Final da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa denominado «Dar voz ao silêncio». Esta comissão presidida pelo reconhecido médico pedopsiquiatra Pedro Strecht e constituída por reputados cidadãos especialistas em diversas áreas trabalhou durante um ano, a convite da Conferência Episcopal Portuguesa. O período temporal em análise estendeu-se de 1950 aos nossos dias, tendo sido validados depoimentos de 512 vítimas de entre as pessoas que se apresentaram à Comissão, utilizando os meios por esta colocados à disposição. A Comissão pediu ainda às 21dioceses e aos 127 institutos religiosos existentes em Portugal a realização de um levantamento de casos de abuso sexual de crianças nos respetivos arquivos entre 1950 e 2022. A Comissão esclarece que as 512 vítimas directas colocam na mira pelo menos outras 4300, pelo facto de os abusadores lesarem mais que uma criança. A Comissão fez um tratamento estatístico pormenorizado das situações, mas um dado impressivo é que 77% dos abusadores eram padres.
Na realidade, o conhecimento desta situação só peca por tardio. Depois de tudo o que soube por esse mundo fora, seria uma pura ingenuidade imaginar que em Portugal fosse diferente. O que coloca a Igreja, também em Portugal, numa situação muito difícil já que a dimensão do problema não permite pensar que é uma questão de um ou outro padre. Há um problema da própria Igreja, que sai deste Relatório com a necessidade absoluta de se reformar profundamente, não adiantando argumentar que resiste há dois mil anos.
A Igreja assume-se como dogmática, constituindo-se como única e exclusiva possibilidade de intermediação entre os fiéis e o próprio Deus, não permitindo colocar em questão os dogmas que ela própria foi constituindo ao longo dos séculos. E, se o cristianismo foi e é uma fonte importantíssima de ética, a acção dos padres e bispos pode colocar isso em causa. O povo português sempre deu mostras de algum anti-clericalismo que se manifesta por vezes num anedotário referente, por exemplo, a relações sexuais de padres com mulheres com filhos e «afilhados» à mistura, denotando até alguma compreensão perante necessidades básicas desses homens. Mas os abusos sexuais de crianças não têm nada a ver com isso. Trata-se de crimes horrorosos que não podem ser aceites e muito menos escondidos por ninguém, a começar pelos responsáveis superiores da Igreja que são os bispos. E está criada a sensação geral de que, ao longo dos anos, esses responsáveis tudo fizeram para encobrir essas situações, colocando um suposto interesse corporativo da Igreja acima dos direitos das crianças vítimas. E isso é insuportável pela sociedade nos dias de hoje, não sendo uns simples pedidos de desculpa que ultrapassarão o que foi feito a milhares de crianças vítimas de padres cuja acção predatória foi encoberta pela Igreja durante demasiado tempo.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 20 de Fevereiro de 2023
Imagens recolhidas na internet
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