quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

HÁ 200 ANOS, HÁ 100 ANOS E HOJE


 Foi em 1823 e em 1923: datas em que acontecimentos mudaram o curso da nossa História mas que um pouco incompreensivelmente, ou talvez não, mostram que, apesar de tudo, as nossas circunstâncias não mudaram tanto como era suposto ter acontecido. À vista é tudo diferente dos nossos dias, mas abaixo da superfície há muitas, mesmo demasiadas, semelhanças. Um pouco à imagem da frase que Tomasi de Lampedusa colocou na boca do príncipe de Falconeri no seu «O Leopardo»: «Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude».

As invasões francesas tinham deixado o país praticamente destruído e exangue. A corte portuguesa, num total de cerca de 15.000 pessoas, muito sensatamente tinha fugido para o Brasil perante o olhar desconsolado de Junot, a 27 de Novembro de 1807. O último invasor derrotado e já em fuga, Massena, tinha atravessado a fronteira com Espanha em Abril de 1811, mas o país continuou praticamente ocupado, desta vez pelo ingleses, que nos transformaram num protectorado regido pelo Marechal Beresford. O povo português passou a odiar o inglês de uma forma generalizada pela forma sobranceira e mesmo brutal como agia, lembrando-se aqui o sucedido a Gomes Freire de Andrade e seus companheiros. Só depois da revolução liberal de 1820 o rei D. João VI se decidira a deixar o Brasil e regressar a Portugal onde desembarcara em 4 de Julho de 1821. Logo em Julho de 1822 as Cortes constituintes aprovariam a Constituição que proclamava a soberania do povo, marcando eleições para a Câmara de Deputados em Agosto, precisamente quando o Brasil proclamava a sua independência, sendo D. Pedro aclamado imperador do Brasil em13 de Outubro. Mas o regime liberal tinha sido implantado muito às costas do povo e o caldo de revolta contra a nova ordem política permitiu a reacção da «Vilafrancada» conduzida por D. Miguel em Maio de 1823. Daí até à guerra civil entre 1832 e 1835 seria um passo. Os liberais venceriam os absolutistas, mas o país ficou ainda mais pobre com divisões que ainda hoje são perceptíveis de quando em quando.


Em 1 de Fevereiro de 1908 deu-se o terrível atentado que vitimou o rei D. Carlos e o filho primogénito herdeiro da coroa Luís Filipe. A Monarquia terminou em 5 de Outubro de 1910 tendo-se-lhe seguido a Primeira República. O Partido Democrático governou o país até 1915 mas, logo em 1917, uma ditadura militar apareceu sob a chefia de Sidónio Pais que se fez eleger presidente em Abril de 1918, tendo ficado conhecido como «presidente-rei» apenas para ser assassinado em Dezembro desse mesmo ano. O país praticamente entrou de novo em guerra civil, desembocando na célebre «noite sangrenta» em 19 de Outubro de 1921 em que foram barbaramente assassinados, entre outros, o presidente do Ministério António Granjo, e dois históricos da proclamação da República, Machado Santos e José Carlos da Maia. Desde 1921 até 1925 o Partido Democrático foi governando com governos a sucederem-se sucessivamente. O ano de 1923 foi apenas um ano no meio desta situação que durou até que se verificasse um novo pronunciamento militar estando criado o ambiente de boa recepção a quem viesse «pôr ordem no país». E foi preciso pouco tempo até que essa revolta surgisse em Braga em 1926 e dessa vez dando origem a uma «ditadura militar» que por sua vez desembocaria no regime civil ditatorial do «Estado Novo» com Salazar, regime que só viria a terminar em 25 de Abril de 1974.

Aldous Huxley escreveu que «Talvez a maior lição da História seja que ninguém aprendeu as lições da História». A constatação de ciclos políticos, ainda que de cem anos, só é possível depois dos sucessos acontecerem. Mas é possível detectar os ambientes sociais que se criam, embora os responsáveis por tal não o consigam fazer porque vivem dentro de uma bolha que os impede de observar a realidade. E é precisamente essa situação de distanciamento da classe política (governantes e oposição) que cria situações de cansaço que leva muito rapidamente a revoltas generalizadas. Quem pensa que pelo facto de as pessoas terem um aspecto mais moderno e actualizado estão também completamente diferentes no seu íntimo, poderá estar muito enganado. Há estigmas socialmente enraizados durante séculos que não desaparecem instantaneamente por obra e graça de leis ou decretos. E os responsáveis políticos, todos eles, deveriam estar conscientes disso, em vez de confiar cegamente nos efeitos da chuva de dinheiro da União Europeia. Até porque há sempre alguém à espreita para se aproveitar dos ambientes sociais degradados. E a segurança colectiva é algo que ninguém pode dar por garantido como os ucranianos constatam há quase um ano.

Publicado origialmente no Diário de Coimbra em 30 Janeiro 2023

Imagens retiradas da internet

Sem comentários: