terça-feira, 29 de outubro de 2024

A CRISE DAS CRISES

Parece ser pacífico que Portugal, no que até nem está sozinho nesse problema, está perante várias crises que parece terem-se combinado entre si para se manifestarem em simultâneo. Já abordei nestas linhas a crise da habitação, os diversos aspectos por que se manifesta com as suas causas variadas e quais as soluções que penso terem de ir em sentido oposto ao que é mais comum ouvir-se. A imigração é, quer se queira quer não, uma crise, intimamente ligada à habitação, à educação, à economia, ao emprego e, imagine-se, à própria sustentabilidade da segurança social. A baixa qualificação generalizada dos que entram, em conjunto com a emigração de muitos jovens com boa formação superior, contribui para a manutenção dos salários baixos, um dos nossos maiores problemas. A educação está em crise óbvia e nem é apenas pela falta de professores que se acentua ano após ano através da reforma de milhares deles por ano. Muitas escolas degradadas sem condições e a necessidade urgente de integrar os filhos dos imigrantes na sociedade portuguesa de forma harmoniosa e responsável são problemas a que urge dar resposta capaz e urgente. Que a saúde está em crise é algo cuja evidência nem é preciso salientar. 

O custo do SNS, que em poucos anos passou de oito para quinze mil milhões de euros anuais é um problema, mas nem será o maior A deficiente cobertura do território nacional com médicos a que se associa a falta destes em determinadas especialidades leva a que cada vez mais portugueses recorram à oferta privada, designadamente através de seguros de saúde, pagando duas vezes pela sua saúde. Dezenas de anos sem que os diversos governos tenham tido a capacidade ou mesmo a vontade de enfrentar os problemas trouxeram-nos aonde nós estamos. Claro que nem tudo correu mal, que os portugueses conseguem construir muito de positivo, as mais das vezes apesar de quem os governa, mas as crises estão aí à vista de todos. Todas estas crises, e muitas outras que podemos considerar sectoriais deixadas no tinteiro pela limitação de espaço, dever-se-ão essencialmente à falta de dinheiro, embora os governantes desperdicem muito, a nível nacional e mesmo local, basta ver o que se gasta para aí em festas. Recursos públicos escassos, apesar do enorme esforço fiscal dos portugueses, que reflectem a baixa produtividade da nossa economia, consequência, essa sim, da falta de visão económica estratégica dos governantes. 

Mas Portugal enfrenta uma crise muito mais séria, porque abarca todas as outras, que é a da governação. Crise política, portanto. Nas eleições de Março de 2024 o PS e a AD ficaram empatados, com diferença apenas de 2.000 votos a favor da coligação de centro-direita. Este resultado reflecte a perda de 488 mil votantes pelo PS e o ganho de 225 mil pela coligação. Mas o Chega recebeu os votos de mais 770 mil portugueses do que em 2022, o que se traduziu em 50 deputados no que, em conjunto com o prático empate parlamentar entre PS e AD, constitui uma situação nova na política portuguesa. O que se passou nas últimas semanas no respeitante ao Orçamento de Estado para 2025 é bem o reflexo dessa situação. Quer a AD e o seu governo, quer o PS e o Chega estão numa situação que proporciona uma instabilidade orçamental que não pode deixar de significar falta de condições para uma governação visando o futuro e não o imediato. As hesitações e mudanças de rumo do líder socialista associadas ao único objectivo confesso do Chega que é a destruição do actual sistema político têm como consequência uma fragilidade governamental que deverá a AD a desejar eleições a curto prazo. Um desvirtuar do OGE insuportável para a coligação governamental terá, certamente, essa consequência e deverá ser difícil deixar de entender as razões dessa decisão. A tudo isto veio, nos últimos dias, juntar-se uma crise de segurança grave nos bairros periféricos de Lisboa que não surge do nada, antes da falta de soluções para todas as crises parciais que se foram acumulando durante os últimos anos. Esperemos que, para além da irresponsabilidade de extremistas de um lado e de outro do espectro partidário, os outros partidos, governo e forças de segurança tenham o sangue-frio e a capacidade de entender quais os verdadeiros interesses de Portugal. 

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 28 de Outubro de 2024

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Navegar (ainda) é preciso

Percorrer as estações nacionais de televisão, principalmente as de notícias, pode ser um exercício frustrante quendo se pretende ver algo de diferente. O mais frequente é encontrar os mesmos temas a serem tratados em todas elas ao mesmo tempo. De modo semelhante, assuntos que não são objecto de notícia numa das estações, são igualmente ignoradas por todas as outras.

No que respeita ao desporto, com excepção dos raros momentos em que há eventos de carácter internacional como Jogos Olímpicos ou campeonatos mundiais de alguma categoria, há um desporto que ocupa todas as televisões, que é o futebol. E é habitual qualquer jogo dar origem a horas infindáveis (e insuportáveis, direi eu) de comentários de dezenas de especialistas em todas as estações televisivas. Tudo o resto é ignorado, como se não tivesse dignidade suficiente.

Por estes dias tem decorrido quase aqui ao lado, em Barcelona, um evento desportivo seguido com interesse por todo o mundo, do qual não encontrei uma notícia, por pequena que fosse, nas nossas televisões. É a regata da Taça da América (America’s Cup 2024). Para quem não sabe é talvez a corrida de barcos à vela mais importante em todo o mundo, que este ano atraiu mais de dois milhões de pessoas a Barcelona. É uma regata com uma longa História, iniciada em 1851 com uma corrida ao redor da Ilha de Wight no Reino Unido. Nesse ano a regata foi vencida pela escuna America de um Clube de Nova York. Ficou estabelecido que a Taça America ficaria guardada pelo vencedor até que outro clube o desafiasse e ganhasse a nova regata: assim se estabeleceu o princípio do defensor contra o desafiante. Desde a primeira regata até 1983 os vencedores foram todos americanos. A partir daí a Taça tem viajado entre os EUA e a Nova Zelândia, com os suíços de Genebra pelo meio por duas vezes. Ao longo dos anos tem havido mudanças, quer no processo de escolha do desafiante, quer no tipo de embarcações utilizadas. Trata-se de uma competição ao mais alto nível de navegação à vela, com embarcações construídas propositadamente para o efeito, utilizando atualmente materiais compósitos sofisticados e caríssimos. É também uma regata em que competem os melhores velejadores do mundo, que fazem demonstração de capacidades e conhecimentos da arte (ou ciência) de velejar a um nível por vezes impensável. Estes veleiros chegam ao ponto de atingir velocidades mais de três vezes superior à do vento e, nesta regata, já se atingiram mais de 100 Km/h, apenas à vela, repito. Velocidades estonteantes para veleiros, só possíveis porque, na verdade, estes barcos verdadeiramente voam sobre as águas, apenas levando o leme e um dos foils (asas de sustentação subaquáticas laterais) dentro de água com todo o casco no ar.

Na Taça America 2024 em Barcelona o defensor é o “Emirates Team New Zealand” com o iate Taihoro porque, na regata anterior que se desenrolou em 2021 na Nova Zelândia, venceu a equipa desse país com o iate Te Rehutai. A escolha do desafiante fez-se com regatas entre os diversos clubes concorrentes, o Ineos Britannia do Reino Unido, o Alinghi da Suíça, o Luna Rossa de Itália, o American Magic dos EUA e o Orient Express de França. Como se pode verificar, os concorrentes europeus, excepto a Suíça, são países ribeirinhos, tal como os EUA.

O caso da Nova Zelândia é extraordinário. Um país localizado nos antípodas, com apenas oito milhões de habitantes, consegue elevar-se ao topo de um desporto exigentíssimo, que exige somas astronómicas em que cada participação anda pelos 300 milhões de euros e manter-se lá. Nem se pode dizer que os mares junto a Auckland sejam de navegação fácil, mas a verdade é que mais uma vez estão a discutir a posse da Taça da America, competição em que se diz não haver segundo classificado e apenas o vencedor. Tal só é possível porque o clube Royal New Zealand Yacht Squadron, conseguiu formar um poderoso sindicato de patrocinadores de todo o mundo: a companhia de aviação Emirates, os relógios Omega, a Toyota, a Explora Journeys e a Estrella Damm de Barcelona.

A generalidade dos portugueses tem orgulho no nosso passado marítimo, com boas razões para ter. Nos séculos XV e XVI fomos pioneiros ao dar “novos mundos ao mundo”, mas isso só foi possível por razões muito concretas. De facto, estivemos na vanguarda da construção naval, da cartografia, dos métodos de navegação, do armamento marítimo, mas também da economia com gestão de recursos em projectos complexos e de financiamento das expedições. Provavelmente, ainda bem que as nossas televisões fazem por ignorar este importante evento de navegação à vela: já não temos nada com os portugueses de antanho e mostrar a que ponto os outros chegaram em algo em que já fomos os melhores é até confrangedor.

 Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 21 de Outubro de 2024

Foto retirada de  https://www.americascup.com/news/3759_MOLTES-GRACIES-BARCELONA-THE-JEWEL-IN-THE-SUN

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

IRC e opções políticas

 Durante as últimas semanas fomos bombardeados com notícias sobre o IRC pago pelas empresas portuguesas e a possibilidade de o reduzir durante os próximos anos.

Não sendo economista e muito menos fiscalista, abstenho-me de analisar os pormenores intrínsecos do IRC. Mas há algo que, como comum cidadão interessado no estado do país e, fundamentalmente, no futuro que poderá oferecer aos meus netos, não posso deixar de reflectir sobre o real significado político da alteração do IRC. Na realidade o que, observando os diversos actores políticos parece uma birra para cada um dos lados, é algo que define uma fronteira entre visões opostas da actividade económica e do próprio regime.

Para se perceber o que se passa é necessário, em primeiro lugar, ver como se situa Portugal relativamente aos outros países em relação ao IRC. Assim, de acordo com a OCDE, em 2022 Portugal tinha a taxa máxima de IRC mais elevada da Europa que chega a atingir o máximo de 31,5%, mas também a maior taxa efectiva (28,4%) dos países europeus da OCDE. Esta diferença torna-se ainda mais significativa, mesmo abissal, se fizermos a comparação com os países que, como nós, têm um PIB per capita abaixo da média da União Europeia em que o valor máximo do IRC anda pelos 20%.

É possível, desde logo, tirar uma conclusão com graves consequências económicas para o nosso país. Com estas taxas, a que se soma um ambiente económico desfavorável às empresas, como são os prazos de decisão dos tribunais administrativos, torna-se difícil atrair investimentos estrangeiros de grande dimensão que são os que contam. Claro que a taxa normal de IRC é de 21% e que as Pequenas e Médias Empresas beneficiam de uma taxa reduzida de 17% sobre os primeiros 25 mil euros de matéria colectável. Só estes valores dizem bem da pobreza da economia das PME, a esmagadora maioria das empresas portuguesas. O problema é que à taxa normal o Estado acrescenta as derramas municipal e estadual, atirando as taxas efectivas para aqueles valores estratosféricos.

Mas há outros aspectos a ter em conta no que respeita ao IRC e seu significado. É um imposto que se aplica aos resultados gerados pela actividade das empresas. Aquilo a que se chama habitualmente o seu lucro. A empresa é uma instituição que radica no capital investido pelos seus accionistas, os chamados patrões. A que se juntam instalações e equipamentos bem como os empregados, os trabalhadores que entregam o seu saber, labor e capacidades à empresa; tudo para produzir os bens ou serviços que trazem as receitas à empresa. É sobre os resultados das empresas que incide o IRC e é indiscutível que o lucro da empresa deve ter um significado social que justifica a sua taxação. Contudo, há um ponto de equilíbrio a partir do qual o imposto tem uma consequência negativa, que é a descapitalização a longo prazo da economia. É isso que está, há dezenas de anos, a acontecer em Portugal.

A descida da taxa de IRC liberta capital que permite orientá-lo para três destinos que podem e normalmente acontecem em simultâneo: descida do preço do produto ou serviço produzido, investimento na empresa e subida de ordenados dos trabalhadores. Se houver distribuição de dividendos, estes são sujeitos a um imposto de 28%. É preciso notar que os resultados da empresa são dos seus proprietários e é o Estado que lá vai buscar uma parte que socialmente se acha justo para redistribuição. Precisamente ao contrário do que certa esquerda parece pensar quando diz que diminuir o IRC é dar dinheiro aos ricos como se diz em cartazes do BE. Só que ninguém dá dinheiro a quem já é dono dele. Trata-se de um populismo inaceitável que radica num nos piores sentimentos das pessoas, que é a inveja, aproveitando para fazer uma luta de classes perfeitamente desajustada nos dias de hoje, em que a História já mostrou quais as suas consequências. De novo recordo Otelo Saraiva de Carvalho quando, em pleno PREC, visitou a Suécia para conhecer ao vivo a social-democracia nórdica. Ao referir ao PM sueco Olof Palm que em Portugal se estava a acabar com os ricos, este respondeu-lhe que na Suécia estavam a tratar de acabar com os pobres. Não é preciso dizer mais.

A taxação excessiva ao longo de dezenas de anos, quer do trabalho através do IRS, quer da economia através do IRC, é uma razão fundamental para os reduzidos ordenados em Portugal. Trata-se de uma fronteira ideológica, mas também de um choque entre a realidade e a ideologia que nunca trouxe mais riqueza ao povo porque só se distribui o que se produz.

Publicado originalmente no  Diário de Coimbra em 14 de Outubro de 2024

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Sobre a questão da habitação

 Há poucos dias tivemos oportunidade de assistir a manifestações sobre a habitação em numerosas cidades do país. As palavras de ordem referiam-se essencialmente a dois problemas: o custo das rendas e a falta de habitação a preços que a tornem generalizadamente acessível, principalmente a jovens. Embora os cartazes e as palavras de ordem denunciassem a base ideológica e os verdadeiros objectivos que não são mais do que a velha luta anti-capitalista, o problema não deixa de ser real e sério.

A habitação é uma questão tão importante que é mesmo considerada como um direito fundamental consagrado na Constituição portuguesa que, no seu art.65º estabelece que “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preservem a intimidade pessoal e a privacidade familiar”.

Contudo, é evidente que o Estado não considera seu dever providenciar habitação a todos. Na nossa sociedade é praticamente unânime que esse dever se cinge às camadas mais desfavorecidas, através da chamada “habitação social” que se pratica pelo Estado central através do IHRU e também pelas autarquias locais. A esmagadora maioria da oferta habitacional é assegurada pela iniciativa privada cujo papel é essencial para as denominadas classes médias. Ao contrário do que se passava nos antigos países socialistas em que a habitação era assegurada totalmente pelo Estado com os resultados trágicos que se conhecem, quer a nível urbanístico, quer a nível social: esses resultados foram exactamente os contrários dos pretendidos.

Ao longo dos anos o mercado de arrendamento tem sido objecto de intervenção por parte do Estado, sempre com fins estimáveis e também com resultados contrários. Salazar congelou as rendas em Lisboa e no Porto nos anos quarenta, colocando os proprietários a pagar a política social cuja responsabilidade pertence ao Estado. Essa regra foi transposta para o resto do país no PREC. Assim praticamente se matou o mercado do arrendamento e se degradou grande parte do parque habitacional, embora nas recentes manifs ainda se exigisse a limitação das rendas por decreto. Há mesmo quem nunca aprenda com a realidade.

E a realidade mostra-nos que há falta de oferta de casas pela simples razão de que não são construídas em número suficiente para as necessidades. Desde 1995 até 2006 o nº de fogos de construções novas para habitação familiar nunca desceu abaixo de 68.800 por ano, tendo atingido o máximo de 125.708 em 2002; desde 2012 a 2023 nunca ultrapassou 23.600, tendo atingido o mínimo histórico de 7.148 em 2015. A recuperação é necessária e urgente, já vai tarde, mesmo sabendo-se que o ciclo construtivo é de pelo menos cinco anos, pelas suas características intrínsecas.

O saldo líquido entre emigração e imigração terá andado, só em 2023 pelo acréscimo de 160.000 moradores e continua, o que dá só por si uma ideia da magnitude do problema que temos entre mãos. Infelizmente, a cegueira ideológica e a pura incompetência têm dado as mãos e as “soluções” apontadas para a sua resolução vão desde simplexes urbanísticos que facilitam a construção em terrenos rurais ou venda de prédios sem licença de utilização até à chamada desburocratização dos licenciamentos sem perceber o que está verdadeiramente em jogo. Nem com os incêndios e a corrida para salvar moradias no meio das matas se aprende a necessidade de planeamento urbanístico. A existência de PDM’s é crucial, mas que ainda hoje haja cidades sem Plano de Urbanização, como é o caso de Coimbra, é completamente incompreensível e inaceitável.

Portugal será o país europeu com maior número de proprietários. Durante dezenas de anos o negócio dos bancos, que é emprestar dinheiro, virou-se para os empréstimos para casa própria. Assim se retirou dinheiro do resto da economia e se criou uma rigidez social que impede as famílias de procurar novos empregos e criando despesas colossais de transportes, amarradas que estão àquele imóvel. A que acresce o problema da herança de casas que ficam devolutas durante anos apos o falecimento dos proprietários.

O problema da habitação é de facto complexo, não sendo possível resolvê-lo de um dia para o outro, nem sequer de um ano para o outro. Vai muito para além da ideologia, exige competência técnica e consensos políticos. A compatibilização das necessidades prementes de oferta com uma adequada e sustentável ocupação do território é algo que vai para além de medidas avulsas e aparentemente bem-intencionadas. O problema está à vista e é consequência de políticas erradas. Claro que, com as mesmas políticas, ninguém deverá esperar por consequências diferentes. 

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 7 de Outubro de 2024

terça-feira, 1 de outubro de 2024

Eleições americanas – algumas reflexões

 Dentro de poucas semanas os norte-americanos irão a votos para escolher o seu Presidente, que será o 47º desde o primeiro que foi George Washington entre 1789 e 1797, logo depois da Guerra da Independência contra a Grã-Bretanha que se seguiu à Declaração de Independência em 1776. Pela primeira vez poderá ser uma mulher a exercer o cargo, se a candidata democrata Kamala Harris vencer as eleições, o que só por si seria histórico.

Kamala Harris não é perfeita, muito longe disso, tem posições não consensuais em que é criticada por largos sectores sociais americanos. Mas do outro lado está uma candidatura que levanta questões bem mais sérias e de possíveis consequências trágicas para os americanos, mas não só. Bem sei que se costuma dizer que os americanos votam com a mão na carteira, o que significa que a economia é crucial nas suas decisões, ou não estivesse inscrito nas notas de dólar “in God we trust”. Mas há dois aspectos nestas eleições que deveriam fazer pensar muito para além da economia.

Em primeiro lugar, a questão interna da imigração. A América foi construída com os imigrantes. Costumo dizer que os únicos americanos verdadeiros são os índios. Só que esses, ou foram mortos ou basicamente vivem em reservas. A América é um verdadeiro mosaico de nacionalidades e etnias, tendo cidadãos originários de todo o mundo e essa é mesmo uma das suas virtualidades. Mesmo aqueles como Donald Trump que se consideram mais americanos do que os outros pertencem a famílias que só vivem na América há duas ou no máximo três gerações. É patético que se suscitem movimentos contra os imigrantes que seguem o “sonho americano” tal como o fizeram os que passaram pela Ellis Island nos fins do sec. XIX e cerca metade do sec. XX e fugiam de uma Europa pobre que não oferecia um futuro que se visse. Muitos dos que hoje se manifestam contra os imigrantes de hoje são descendentes directos daqueles e deviam recordar-se do facto. Quando Donald Trump se refere aos imigrantes que roubam cães e gatos para comer em Springfield-Ohio está a ser apenas ele próprio, grosseiro e populista, sem qualquer sentimento de solidariedade para com os semelhantes. Mas quando o seu candidato a vice-presidente J. D. Vance admite inventar histórias como essa para manipular a opinião pública, aí o caso já muda de figura. J.D. Vance não é um Trump ignorante, é um advogado jovem com 40 anos, que já é veterano da Marinha na guerra do Iraque e se formou em Direito pela Universidade de Yale. É inteligente, sabe bem o que diz e tem solidez ideológica nas suas posições, tendo mesmo escrito um livro que explica o grande apoio popular de Trump. Pretende representar todos aqueles que se acham excluídos da nova economia resultante da globalização liderando a luta contra o dito “sistema” tal como o fazem todos os populistas um pouco por todo o mundo; contudo, apesar do elevado conhecimento, não percebe que segue as pisadas do fascismo de há cem anos que deu tão maus resultados.



Depois, temos a questão externa, da situação internacional, em particular da guerra na Ucrânia invadida pela Federação Russa desde há dois anos e meio. Trump faz questão de afirmar que, vencendo ele as eleições, resolve a questão em dois dias. Não diz como, mas para que tal aconteça só pode haver uma hipótese: obrigar a Ucrânia a aceitar os termos russos retirando-lhe toda e qualquer capacidade de resposta militar. Isto é, Trump é a melhor garantia de Putin para o seu imperialismo. Já o seu candidato a vice não se fica por aqui, acrescentando que a Ucrânia deverá ainda abdicar da sua soberania, não lhe sendo permitido escolher pertencer à União Europeia ou à NATO. Claro que, enquanto isto defendem, vão dizendo que se trata de um problema europeu não tendo a América obrigação de se maçar nem de pagar um dólar para a sua resolução. Faz-me lembrar aqueles americanos que, nos anos trinta e quarenta do sec. passado, defendiam um afastamento da América da guerra na Europa, porque Hitler até nem era tão mau como isso e a América não tinha nada a ver com o que se passava deste lado do Atlântico. Não tinham razão, claro, mas para muitos até pareciam sensatos e patriotas no seu isolamento.

Que hoje se tenha de lembrar estes aspectos diz bem do actual estado das democracias. Infelizmente o digo, sem grande esperança em melhorias acentuadas.

Imagem recolhida na internet

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 30 Setembro 2024