terça-feira, 8 de outubro de 2024

Sobre a questão da habitação

 Há poucos dias tivemos oportunidade de assistir a manifestações sobre a habitação em numerosas cidades do país. As palavras de ordem referiam-se essencialmente a dois problemas: o custo das rendas e a falta de habitação a preços que a tornem generalizadamente acessível, principalmente a jovens. Embora os cartazes e as palavras de ordem denunciassem a base ideológica e os verdadeiros objectivos que não são mais do que a velha luta anti-capitalista, o problema não deixa de ser real e sério.

A habitação é uma questão tão importante que é mesmo considerada como um direito fundamental consagrado na Constituição portuguesa que, no seu art.65º estabelece que “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preservem a intimidade pessoal e a privacidade familiar”.

Contudo, é evidente que o Estado não considera seu dever providenciar habitação a todos. Na nossa sociedade é praticamente unânime que esse dever se cinge às camadas mais desfavorecidas, através da chamada “habitação social” que se pratica pelo Estado central através do IHRU e também pelas autarquias locais. A esmagadora maioria da oferta habitacional é assegurada pela iniciativa privada cujo papel é essencial para as denominadas classes médias. Ao contrário do que se passava nos antigos países socialistas em que a habitação era assegurada totalmente pelo Estado com os resultados trágicos que se conhecem, quer a nível urbanístico, quer a nível social: esses resultados foram exactamente os contrários dos pretendidos.

Ao longo dos anos o mercado de arrendamento tem sido objecto de intervenção por parte do Estado, sempre com fins estimáveis e também com resultados contrários. Salazar congelou as rendas em Lisboa e no Porto nos anos quarenta, colocando os proprietários a pagar a política social cuja responsabilidade pertence ao Estado. Essa regra foi transposta para o resto do país no PREC. Assim praticamente se matou o mercado do arrendamento e se degradou grande parte do parque habitacional, embora nas recentes manifs ainda se exigisse a limitação das rendas por decreto. Há mesmo quem nunca aprenda com a realidade.

E a realidade mostra-nos que há falta de oferta de casas pela simples razão de que não são construídas em número suficiente para as necessidades. Desde 1995 até 2006 o nº de fogos de construções novas para habitação familiar nunca desceu abaixo de 68.800 por ano, tendo atingido o máximo de 125.708 em 2002; desde 2012 a 2023 nunca ultrapassou 23.600, tendo atingido o mínimo histórico de 7.148 em 2015. A recuperação é necessária e urgente, já vai tarde, mesmo sabendo-se que o ciclo construtivo é de pelo menos cinco anos, pelas suas características intrínsecas.

O saldo líquido entre emigração e imigração terá andado, só em 2023 pelo acréscimo de 160.000 moradores e continua, o que dá só por si uma ideia da magnitude do problema que temos entre mãos. Infelizmente, a cegueira ideológica e a pura incompetência têm dado as mãos e as “soluções” apontadas para a sua resolução vão desde simplexes urbanísticos que facilitam a construção em terrenos rurais ou venda de prédios sem licença de utilização até à chamada desburocratização dos licenciamentos sem perceber o que está verdadeiramente em jogo. Nem com os incêndios e a corrida para salvar moradias no meio das matas se aprende a necessidade de planeamento urbanístico. A existência de PDM’s é crucial, mas que ainda hoje haja cidades sem Plano de Urbanização, como é o caso de Coimbra, é completamente incompreensível e inaceitável.

Portugal será o país europeu com maior número de proprietários. Durante dezenas de anos o negócio dos bancos, que é emprestar dinheiro, virou-se para os empréstimos para casa própria. Assim se retirou dinheiro do resto da economia e se criou uma rigidez social que impede as famílias de procurar novos empregos e criando despesas colossais de transportes, amarradas que estão àquele imóvel. A que acresce o problema da herança de casas que ficam devolutas durante anos apos o falecimento dos proprietários.

O problema da habitação é de facto complexo, não sendo possível resolvê-lo de um dia para o outro, nem sequer de um ano para o outro. Vai muito para além da ideologia, exige competência técnica e consensos políticos. A compatibilização das necessidades prementes de oferta com uma adequada e sustentável ocupação do território é algo que vai para além de medidas avulsas e aparentemente bem-intencionadas. O problema está à vista e é consequência de políticas erradas. Claro que, com as mesmas políticas, ninguém deverá esperar por consequências diferentes. 

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 7 de Outubro de 2024

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