sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Navegar (ainda) é preciso

Percorrer as estações nacionais de televisão, principalmente as de notícias, pode ser um exercício frustrante quendo se pretende ver algo de diferente. O mais frequente é encontrar os mesmos temas a serem tratados em todas elas ao mesmo tempo. De modo semelhante, assuntos que não são objecto de notícia numa das estações, são igualmente ignoradas por todas as outras.

No que respeita ao desporto, com excepção dos raros momentos em que há eventos de carácter internacional como Jogos Olímpicos ou campeonatos mundiais de alguma categoria, há um desporto que ocupa todas as televisões, que é o futebol. E é habitual qualquer jogo dar origem a horas infindáveis (e insuportáveis, direi eu) de comentários de dezenas de especialistas em todas as estações televisivas. Tudo o resto é ignorado, como se não tivesse dignidade suficiente.

Por estes dias tem decorrido quase aqui ao lado, em Barcelona, um evento desportivo seguido com interesse por todo o mundo, do qual não encontrei uma notícia, por pequena que fosse, nas nossas televisões. É a regata da Taça da América (America’s Cup 2024). Para quem não sabe é talvez a corrida de barcos à vela mais importante em todo o mundo, que este ano atraiu mais de dois milhões de pessoas a Barcelona. É uma regata com uma longa História, iniciada em 1851 com uma corrida ao redor da Ilha de Wight no Reino Unido. Nesse ano a regata foi vencida pela escuna America de um Clube de Nova York. Ficou estabelecido que a Taça America ficaria guardada pelo vencedor até que outro clube o desafiasse e ganhasse a nova regata: assim se estabeleceu o princípio do defensor contra o desafiante. Desde a primeira regata até 1983 os vencedores foram todos americanos. A partir daí a Taça tem viajado entre os EUA e a Nova Zelândia, com os suíços de Genebra pelo meio por duas vezes. Ao longo dos anos tem havido mudanças, quer no processo de escolha do desafiante, quer no tipo de embarcações utilizadas. Trata-se de uma competição ao mais alto nível de navegação à vela, com embarcações construídas propositadamente para o efeito, utilizando atualmente materiais compósitos sofisticados e caríssimos. É também uma regata em que competem os melhores velejadores do mundo, que fazem demonstração de capacidades e conhecimentos da arte (ou ciência) de velejar a um nível por vezes impensável. Estes veleiros chegam ao ponto de atingir velocidades mais de três vezes superior à do vento e, nesta regata, já se atingiram mais de 100 Km/h, apenas à vela, repito. Velocidades estonteantes para veleiros, só possíveis porque, na verdade, estes barcos verdadeiramente voam sobre as águas, apenas levando o leme e um dos foils (asas de sustentação subaquáticas laterais) dentro de água com todo o casco no ar.

Na Taça America 2024 em Barcelona o defensor é o “Emirates Team New Zealand” com o iate Taihoro porque, na regata anterior que se desenrolou em 2021 na Nova Zelândia, venceu a equipa desse país com o iate Te Rehutai. A escolha do desafiante fez-se com regatas entre os diversos clubes concorrentes, o Ineos Britannia do Reino Unido, o Alinghi da Suíça, o Luna Rossa de Itália, o American Magic dos EUA e o Orient Express de França. Como se pode verificar, os concorrentes europeus, excepto a Suíça, são países ribeirinhos, tal como os EUA.

O caso da Nova Zelândia é extraordinário. Um país localizado nos antípodas, com apenas oito milhões de habitantes, consegue elevar-se ao topo de um desporto exigentíssimo, que exige somas astronómicas em que cada participação anda pelos 300 milhões de euros e manter-se lá. Nem se pode dizer que os mares junto a Auckland sejam de navegação fácil, mas a verdade é que mais uma vez estão a discutir a posse da Taça da America, competição em que se diz não haver segundo classificado e apenas o vencedor. Tal só é possível porque o clube Royal New Zealand Yacht Squadron, conseguiu formar um poderoso sindicato de patrocinadores de todo o mundo: a companhia de aviação Emirates, os relógios Omega, a Toyota, a Explora Journeys e a Estrella Damm de Barcelona.

A generalidade dos portugueses tem orgulho no nosso passado marítimo, com boas razões para ter. Nos séculos XV e XVI fomos pioneiros ao dar “novos mundos ao mundo”, mas isso só foi possível por razões muito concretas. De facto, estivemos na vanguarda da construção naval, da cartografia, dos métodos de navegação, do armamento marítimo, mas também da economia com gestão de recursos em projectos complexos e de financiamento das expedições. Provavelmente, ainda bem que as nossas televisões fazem por ignorar este importante evento de navegação à vela: já não temos nada com os portugueses de antanho e mostrar a que ponto os outros chegaram em algo em que já fomos os melhores é até confrangedor.

 Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 21 de Outubro de 2024

Foto retirada de  https://www.americascup.com/news/3759_MOLTES-GRACIES-BARCELONA-THE-JEWEL-IN-THE-SUN

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