Após ter tomado controlo de uma parte de território sírio e iraquiano
incluindo Mossul a segunda maior cidade deste ultimo país, Abu Bakr al Bagdadi decidiu deixar cair o “Estado Islâmico do Iraque e do Levante – EIIL)”,
declarando estar fundado o “Estado Islâmico” (EI), o novo califado de que ele
próprio se nomeou califa. O “EI” pretende reconstituir o califado Omíada que
terminou em 750, e que se estendia desde a Península Ibérica até à Ásia onde
hoje se situam o Paquistão e o Afeganistão.
Califado significa forma islâmica
de Governo que segue à risca a teologia islâmica, sendo portanto um puro estado
teocrático. Para o EI, quem não seguir fielmente as orientações definidas pela
Sharia é considerado inimigo. Como tal, membros de minorias religiosas são
colocados perante três hipóteses: converter-se ao islã sunita, pagar um imposto
ou ser executado. Nestas minorias contam-se os cristãos, mas também yasidis e
mesmo xiitas. Nem os próprios sunitas estão livres de perseguição, se a sua
moderação não os levar a colaborar completamente com o EI, como se comprova
pela chacina pelos jihadistas de 13
clérigos sunitas moderados em Junho passado. Uma das formas de impressionar e
atemorizar quem não apoia completamente o EI é filmar as chacinas e coloca-las
na internet; outra forma é cortar as cabeças dos mortos e coloca-las aos pés
dos próprios assassinos jihadistas que as mostram com orgulho. Chegou-se ao
grotesco de um combatente jihadista nascido na Austrália ter colocado uma
cabeça humana nas mãos do filho de 8 anos e ter publicado a foto na net com o
comentário “este é o meu rapaz”.
O chamado Estado Islâmico
ocupa actualmente parte da Síria e boa parte do Iraque. No norte deste país, na região de Ninive, perseguiu violentamente os Yasidis que seguem um culto religioso anterior ao islamismo. Depois de chacinas em que os militantes do EI mataram pelo menos 500 Yasidis, enterrando boa parte deles ainda vivos incluindo bebés e levando centenas de mulheres como escravas, dezenas de milhares de Yasidis fugiram para a montanha vizinha, ficando expostos à fome e à inclemência do tempo, cercados pelos islamitas sem ter para onde fugir mais. Foi esta a razão dos bombardeamentos aéreos americanos e ingleses da semana passada que abriram corredores de fuga, com a ajuda dos curdos, permitindo o resgate de boa parte dos fugitivos.
O EI elegeu como inimigo todo aquele que não concordar com a teologia islâmica tal como eles a vêem, o que quer dizer, basicamente todo o resto do mundo, incluindo o desenvolvimento civilizacional que nos trouxe até ao que somos hoje. É o seu primeiro inimigo sistémico, que se pode considerar exterior.
Mas, como se não fosse suficiente, o “EI” definiu ainda um segundo inimigo sistémico, desta vez interior, mesmo dentro das suas próprias casas.
Nas fotografias que se recebem diariamente do chamado Estado Islâmico há algo que ressalta à evidência. Só se vêm homens, a cavalo ou em jipes ou furgões, armados até aos dentes. Também nas reportagens de chacinas, só se vêm homens a matar, nunca mulheres. Estas aparecem de fugida, ao fundo das imagens, escondidas dos pés à cabeça. Ou então em filmes de castigos contra as mulheres “pecadoras” provavelmente apenas por saírem à rua com a cara descoberta, semi enterradas e a serem lapidadas até à morte no meio de grande algazarra feita por homens, apenas homens. O novo “Estado Islâmico transformou a mulher num ser inferior, sem qualquer papel social, para além de servir os jihadistas. E não será por acaso que assim acontece. Na realidade, nenhum de nós imaginaria uma mãe a regozijar-se por ver um filho seu como o jihadista australiano o fez, ou mulheres a fazerem-se fotografar com uma série de cabeças humanas decapitadas aos pés.
Não, estimado leitor, não estou a delirar nem a descrever situações de há mil anos ou mais. Isto está neste mesmo momento a passar-se naquele que foi o berço da civilização. Este delírio destrutivo colectivo deverá estar condenado a desaparecer sem reconstruir o velho califado, mas também sem que as consequências para milhares de pessoas possam ser reparadas. E, tal como se devem condenar actos passados há centenas de anos como as cruzadas ou a inquisição, ou mais recentemente o holocausto, por maioria de razão a nossa voz não deve calar-se perante a barbárie nos nossos dias.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 18 de Agosto de 2014