segunda-feira, 18 de agosto de 2014

ESTADO ISLÂMICO: OS DOIS INIMIGOS SISTÉMICOS



Após ter tomado controlo de uma parte de território sírio e iraquiano incluindo Mossul a segunda maior cidade deste ultimo país, Abu Bakr al Bagdadi decidiu deixar cair o “Estado Islâmico do Iraque e do Levante – EIIL)”, declarando estar fundado o “Estado Islâmico” (EI), o novo califado de que ele próprio se nomeou califa. O “EI” pretende reconstituir o califado Omíada que terminou em 750, e que se estendia desde a Península Ibérica até à Ásia onde hoje se situam o Paquistão e o Afeganistão.
Califado significa forma islâmica de Governo que segue à risca a teologia islâmica, sendo portanto um puro estado teocrático. Para o EI, quem não seguir fielmente as orientações definidas pela Sharia é considerado inimigo. Como tal, membros de minorias religiosas são colocados perante três hipóteses: converter-se ao islã sunita, pagar um imposto ou ser executado. Nestas minorias contam-se os cristãos, mas também yasidis e mesmo xiitas. Nem os próprios sunitas estão livres de perseguição, se a sua moderação não os levar a colaborar completamente com o EI, como se comprova pela chacina pelos jihadistas de 13 clérigos sunitas moderados em Junho passado. Uma das formas de impressionar e atemorizar quem não apoia completamente o EI é filmar as chacinas e coloca-las na internet; outra forma é cortar as cabeças dos mortos e coloca-las aos pés dos próprios assassinos jihadistas que as mostram com orgulho. Chegou-se ao grotesco de um combatente jihadista nascido na Austrália ter colocado uma cabeça humana nas mãos do filho de 8 anos e ter publicado a foto na net com o comentário “este é o meu rapaz”.
O chamado Estado Islâmico ocupa actualmente parte da Síria e boa parte do Iraque. 

No norte deste país, na região de Ninive, perseguiu violentamente os Yasidis que seguem um culto religioso anterior ao islamismo. Depois de chacinas em que os militantes do EI mataram pelo menos 500 Yasidis, enterrando boa parte deles ainda vivos incluindo bebés e levando centenas de mulheres como escravas, dezenas de milhares de Yasidis fugiram para a montanha vizinha, ficando expostos à fome e à inclemência do tempo, cercados pelos islamitas sem ter para onde fugir mais. Foi esta a razão dos bombardeamentos aéreos americanos e ingleses da semana passada que abriram corredores de fuga, com a ajuda dos curdos, permitindo o resgate de boa parte dos fugitivos.

O EI elegeu como inimigo todo aquele que não concordar com a teologia islâmica tal como eles a vêem, o que quer dizer, basicamente todo o resto do mundo, incluindo o desenvolvimento civilizacional que nos trouxe até ao que somos hoje. É o seu primeiro inimigo sistémico, que se pode considerar exterior.
Mas, como se não fosse suficiente, o “EI” definiu ainda um segundo inimigo sistémico, desta vez interior, mesmo dentro das suas próprias casas.
Nas fotografias que se recebem diariamente do chamado Estado Islâmico há algo que ressalta à evidência. Só se vêm homens, a cavalo ou em jipes ou furgões, armados até aos dentes. Também nas reportagens de chacinas, só se vêm homens a matar, nunca mulheres. Estas aparecem de fugida, ao fundo das imagens, escondidas dos pés à cabeça. Ou então em filmes de castigos contra as mulheres “pecadoras” provavelmente apenas por saírem à rua com a cara descoberta, semi enterradas e a serem lapidadas até à morte no meio de grande algazarra feita por homens, apenas homens. O novo “Estado Islâmico transformou a mulher num ser inferior, sem qualquer papel social, para além de servir os jihadistas. E não será por acaso que assim acontece. Na realidade, nenhum de nós imaginaria uma mãe a regozijar-se por ver um filho seu como o jihadista australiano o fez, ou mulheres a fazerem-se fotografar com uma série de cabeças humanas decapitadas aos pés.
Não, estimado leitor, não estou a delirar nem a descrever situações de há mil anos ou mais. Isto está neste mesmo momento a passar-se naquele que foi o berço da civilização. Este delírio destrutivo colectivo deverá estar condenado a desaparecer sem reconstruir o velho califado, mas também sem que as consequências para milhares de pessoas possam ser reparadas. E, tal como se devem condenar actos passados há centenas de anos como as cruzadas ou a inquisição, ou mais recentemente o holocausto, por maioria de razão a nossa voz não deve calar-se perante a barbárie nos nossos dias.

 Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 18 de Agosto de 2014

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

PERPLEXIDADE


O actual ministro da Economia reagiu ao sucedido no BES e na PT, manifestando publicamente uma enorme perplexidade traduzida na exclamação: estas situações "são completamente atípicas e, acima de tudo, inexplicáveis".
De facto, para alguma quase-elite portuguesa deslumbrada, o que se tem passado nos últimos anos é inexplicável e, acima de tudo, motivo uma enorme perplexidade. Já para o português comum, infelizmente não é nada surpreendente, vindo na esteira do que se tem passado no nosso país há séculos.
Portugal teve um período histórico de grande notoriedade quando, muito por acção de uma mulher inglesa que veio casar com um rei nosso e que educou os seus filhos de uma forma diferente do habitual entre nós criando a chamada “ínclita geração”, se virou para o único lado que podia para crescer e deu origem aos descobrimentos marítimos. Após essas dezenas de anos ainda teve alguma importância internacional, mas afundou-se numa exploração miserável de escravos e das riquezas ultramarinas, sobretudo do Brasil. Até chegar ao início do século XIX em que o rei e toda a corte fugiram para o Brasil perante a invasão francesa, abandonando o povo à sua sorte, isto é, à completa destruição e roubo de tudo o que tinha algum valor e à morte de milhares de portugueses e miséria absoluta dos sobreviventes. Após o que seguiu uma guerra civil entre facções de dois irmãos, cada um pior que o outro em todos os aspectos, deixando o país ainda pior do que estava, se é que tal era possível. 
Vinda a paz, continuou a degradação do regime, até ao Ultimato Inglês e à bancarrota que só acabámos de pagar poucos anos antes do século XXI. À Monarquia em que no fim o próprio rei se queixava de ser rei de uma república, seguiu-se a Primeira República que, de tal confusão que foi, deu logo origem a uma ditadura militar que, por sua vez, vendo-se incapaz de governar, tratou de chamar um catedrático de finanças de Coimbra para o fazer. E Salazar governou como sabia e como quis: em ditadura, sem partidos políticos e portanto sem eleições, cuidando de todos os aspectos da vida do país como se fosse a sua própria casa. Desaparecido Salazar, o seu sucessor Marcelo Caetano enredou-se nas suas indecisões ficando apenas o tempo necessário para ver o regime cair sem ninguém para o defender.
Vinda a Democracia com o 25 de Abril, e após os tempos habituais de confusão que normalmente se seguem aos golpes de estado, rapidamente entrámos em falência por duas vezes com a chamada do FMI para nos valer. Após o que Mário Soares, olhando à sua volta, terá concluido que com aquela gente que via a nossa economia não tinha hipóteses de crescer a sério. E tratou de chamar os antigos que se tinham ido embora. Voltaram assim Espíritos Santo, Mellos, Champalimaud e até Jardim Gonçalves ainda bancário, mas convidado a fazer um Banco privado a sério. Cuidava Mário Soares que assim restauraria a elite económica do país e o recolocaria nos índices de crescimento dos fins dos anos sessenta, inícios de setenta. 
Depois de centenas de milhares de milhões de euros vindos da EU, acabámos novamente por ir à falência e vemos agora esfumar-se à nossa frente um dos principais grupos económicos, com um ministro da Economia a olhar espantado sem perceber nada do que vê e a dizê-lo publicamente.
O que há de comum em toda esta História?: não um povo incapaz ou calaceiro que, quando vai para fora, produz mais e melhor que muitos outros O que há de comum, em permanência secular, é a não existência de elites capazes e empreendedoras. Se, desde os descobrimentos até ao fim do século XIX, a elite nacional era constituída por uma aristocracia caduca e ridícula nas suas preocupações de manifestação de importância, quer fosse ultramontana ou liberal, no século XX viveu quase sempre à sombra do poder político e dele dependeu. Mário Soares, na sua santa ingenuidade, acreditou que com as antigas elites reconstruiria o país. Infelizmente enganou-se. Vemos hoje como boa parte dessas supostas elites não é capaz de trabalhar e produzir em regime liberal e aberto de sã concorrência, preferindo conúbios mais ou menos secretos com o Estado e negociatas com fugas às responsabilidades fiscais que todos os cidadãos partilham.
Não precisamos de elites pseudo aristocráticas com falso brilho e podres por dentro. O que Portugal precisa é de elites económicas e empresárias capazes de criar um lastro estabilizador que permita uma navegação do país rumo ao crescimento e desenvolvimento, independentemente de políticos e das navegações à vista.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Francisco Martins


Quando parte um artista é habitual dizer-se que a cultura fica mais pobre; quando esse artista é conterrâneo poderá dizer-se ainda que a cidade ficou mais pobre; quando esse artista é um Amigo, que nós ficamos mais pobres. Mas quando parte um Homem que aliou toda a sua vida de cidadão exemplar a uma intervenção artistica verdadeiramente única é toda a comunidade que perde, muito para além de nós mesmos, da cidade ou da própria cultura.
A forma musical a que se convencionou chamar fado de Coimbra ou canção de Coimbra,distinção que para o caso pouco interessa, teve em Francisco Martins um cultor verdadeiramente único. Claro que era um executante da guitarra portuguesa com rara sensibilidade, vocação artística que descobriu bem novo e que desenvolveu a um nivel elevado, muito pelo que recolheu da sabedoria do grande artista que foi António Portugal, que aliás contou com ele no seu disco notável “Flores para Coimbra”.
Mas Francisco Martins foi muito mais do que um grande intérprete, o que já não seria pouco. Foi um compositor excepcional, que publicou três discos que são autênticas jóias musicais. Curiosamente, os albuns sairam de dez em dez anos, durante trinta anos: em 1986 “Canção da Primavera”, em 1996 “Primavera 2” e em 2006 “Convívios musicais”. De notar que nos dois primeiros contou com o seu colega médico e amigo de sempre Rui Pato à viola, que não pode ser esquecido quando se fala da obra discográfica de Francisco Martins. Ao referir as composições de Francisco Martins, não falo propositadamente de música de Coimbra, porque isso seria claramente uma redução, dado que a sua qualidade a torna um património não restrito à Cidade ou mesmo ao País, merecendo ser amplamente conhecida e interpretada.
Francisco Martins não se restringiu a ser um músico, muito antes pelo contrário. Foi um médico distinto, era uma pessoa admirável na sua maneira de ser, amigo dos seus amigos e sempre pronto a receber e a partilhar dos problemas dos outros.
O contacto directo com Francisco Martins, que cultivava uma forma de ironia subtil, era sempre estimulante e agradável, tantas vezes irreverente, mas sempre simpático e amigo. A sua inteligência muito afectiva facilitava o contacto com aqueles que sentia verdadeiros e os convívios tidos com ele ficarão certamente para sempre na memória dos que tiveram o privilégio de com ele contactar ou mesmo ser seus amigos.
As estações do ano continuarão a suceder-se após a sua partida. Mas em todas elas a sua “Canção da Primavera” nos acompanhará com a sua beleza intemporal, quer seja tocada numa guitarra portuguesa, ao piano ou por uma orquestra.
Obrigado Francisco, pelo legado que nos deixaste a todos, seja a tua saudosa amizade, seja a arte que já não é tua, mas de todos nós e que não é recordação, antes está bem viva para sempre.


segunda-feira, 28 de julho de 2014

MH 17


No passado mês de Junho, foram abatidos quatro aviões militares ucranianos no leste da Ucrânia pelos rebeldes (anexionistas pró-russos) que actuam naquela área. Em Julho, só até ao dia 16 foram abatidos mais quatro aviões militares nessa mesma zona.
Em 17 de Julho, os rebeldes anunciaram, com júbilo, ter abatido um avião militar ucraniano NA-26 na área de Torez, notícia imediatamente difundida nas televisões russas.
No dia 22 de Julho, mais dois aviões militares ucranianos foram abatidos na mesma zona de Torez.
Passaram cinco dias entre os dias 17 e 22 deste mês, dia em que os anexionistas pró-russos voltaram à sua tarefa de abater aviões ucranianos. O que sucedeu entretanto? Uma tragédia. Quando os rebeldes pró-russos foram verificar os restos do avião abatido no dia 17 encontraram os destroços de um avião comercial com quase três centenas de corpos espalhados por uma larga área e não um avião militar ucraniano.
Os dias que se seguiram foram de caos, quer no terreno, quer nos noticiários.
Os rebeldes que dominam militarmente o terreno tomaram conta do local e foram sendo vistas imagens chocantes de uma actuação indigna e desumana, com total falta de respeito perante os mortos que foram deixados no local por vários dias, violando mesmo os seus bens pessoais, não autorizando o trabalho de peritos internacionais e impedindo jornalistas de fazer o seu trabalho. No fim, no meio de uma algazarra vergonhosa, com bebedeiras evidentes e tiros à mistura, lá retiraram os restos mortais de grande parte dos 298 infelizes que seguiam no avião, meteram-nos em camiões e acabaram por enviá-los num comboio até uma cidade ucraniana de onde finalmente seguiram para a Holanda. Quando já se tinha percebido o que tinha acontecido, isto é que os rebeldes lançaram um míssil SAM contra um avião comercial de passageiros que voava a uma altura de segurança regulada supondo que se tratava de um avião militar de carga ucraniano, as televisões russas foram montando cenários sucessivos que pretendiam desresponsabilizar os rebeldes que apoia na Ucrânia. Falou-se na passagem do avião de Putin pelo mesmo local horas antes, quando na realidade passou a 1.200 km de distância, inventou-se um controlador aéreo espanhol com afirmações delirantes, argumentou-se com a falta de meios militares dos rebeldes para lançar um míssil a 10 km de altitude, quando esses mesmos rebeldes poucos dias antes se vangloriavam de possuir esses sistemas. Invenções de contra-informação que foram sendo completamente desmentidas pela realidade. Valha a verdade que Putin apenas culpou as autoridades ucranianas por manterem o conflito com os rebeldes (no território ucraniano) e autorizar a passagem de aviões comerciais por cima da zona de guerra, o que claramente deixa implícita a autoria de lançamento do míssil pelos rebeldes integracionistas pró-russos.
Infelizmente, este não é o primeiro avião de passageiros abatido da História. Em 1 de Setembro de 1983, um avião da Korean Air Lines com 269 pessoas a bordo que voava do Alasca para Seul foi abatido por um caça soviético sobre o mar do Japão por ter entrado no espaço aéreo soviético. Inicialmente o governo soviético começou por negar o sucedido para mais tarde assumir o abate propositado. Por seu lado, os EUA abateram um avião civil de passageiros em Julho de 1988 quando destruíram um avião da Iran Air com 290 pessoas a bordo que voava de Teerão para o Dubai. Numa zona em que na altura decorria a guerra entre o Irão e o Iraque, o navio de guerra americano Vincennes em missão de patrulha no Golfo Pérsico, terá confundido o avião comercial com um militar e abateu-o; também o governo americano tentou negar as suas responsabilidades ao princípio, tendo acabado por reconhecer a autoria do sucedido.
A tragédia do MH 17 acabou por trazer o que se passa no leste da Ucrânia para as primeiras páginas dos jornais e para os telejornais. Dificilmente a Rússia poderá continuar a suportar financeiramente e apoiar militarmente os auto denominados “separatistas pró-russos” depois do que se passou. Se tanto é ladrão o que vai à vinha como o que fica a guardar, nesta situação tão responsável é quem aperta o gatilho, como quem fornece a arma.
Mas, para os familiares dos desaparecidos nesta tragédia, relembrando os pais das três jovens crianças irmãs que viajavam no avião, pouco importa que o MH 17 tenha sido abatido por engano ou de propósito. Não tinham nada, mesmo nada a ver com o que se passa na Ucrânia, desapareceram para sempre e nada, mesmo nada pode eliminar ou diminuir a dor dos que ficam, nem recuperar o futuro dos que foram.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 28 de Julho de 2014

segunda-feira, 21 de julho de 2014

OS PARTIDOS E O FIM DE UM CICLO


Os últimos quarenta anos constituem o período mais longo de democracia e paz entre os portugueses desde há muito, quer em república porque bem mais de três quartos do século XX foram ainda vividos longe da democracia, quer mesmo em monarquia, dado que o século XIX foi marcado por grandes convulsões, guerras civis e mesmo falência do país.
Como é bem conhecido, a Democracia não existe sem partidos políticos que permitam aos cidadãos associar-se colectivamente em volta de ideias programáticas comuns, respeitando a diferença de opinião do outro. Perante as diferentes propostas e as pessoas que as defendem, o povo soberano, com a sua sabedoria, escolhe quem tem o direito e a obrigação de fazer o melhor pelo bem comum presente e futuro.
Dito isto, os partidos não são perfeitos, muito longe disso. São da sua responsabilidade os governos que, nos mesmos últimos quarenta anos, nos levaram a pedir apoio financeiro internacional por três vezes para evitar a bancarrota do país.
É também da sua responsabilidade o conjunto de normas legais que regulam toda a nossa vida colectiva, desde a organização administrativa e económica, até à integração europeia passando pelo ordenamento judicial, já que as leis têm origem na Assembleia da República, onde os Deputados dos diversos partidos eleitos pelos portugueses têm a responsabilidade de as fazer e aprovar.
Sucede que, nos dias de hoje, muita coisa da nossa vida em democracia parece estar a chegar ao fim de um ciclo, sendo necessário ter consciência disso para que esse ciclo não venha a coincidir com o fim do próprio regime.
Os anos de intervenção estrangeira através da Troika alteraram muitos aspectos da nossa organização social na percepção colectiva de que só é possível distribuir aquilo que se produz e que o Estado não pode continuar a gastar mais do que recebe de impostos.

 Esta simples constatação tem consequências enormes: o Estado não pode continuar a endividar-se até ao infinito para pagar a sua própria dívida e a vida económica tem que se virar para a produção de bens transacionáveis em vez dos bens não transacionáveis que praticamente não introduzem valor no sistema. Isto, se quisermos continuar a pertencer à União Europeia e não passarmos a ser um Estado pária orgulhosamente só no continente europeu.
A convulsão económica está bem à vista de todos, sendo o que se passa no Grupo Espírito Santo e respectivas ondas de choque o sinal claro de um fim de ciclo.
Mas a vida política está também a passar por uma fase de mudança profunda. Os partidos percepcionaram o fim de ciclo e os sinais estão bem à vista. O Bloco de Esquerda, falando sempre em união à esquerda está a desfazer-se à frente de todos nós e o PCP regressou à linguagem de 1975 e da guerra fria, porque percebe que o momento é de crise profunda, mas nunca procedeu à revisão ideológica necessária, pelo que parece um dinossauro em pleno século XXI. Para o provar, cito Jerónimo de Sousa num discurso recente: "A saída desta situação não se resolve com o consenso entre as forças que conduziram o país à degradação económica e social e ao abismo. A saída exige rutura com as políticas de direita e de recuperação capitalista até hoje seguidas por PS, PSD e CDS".
Curiosamente, a crise prolongada e a austeridade que trouxe não provocaram a luta de rua que os partidos mais à esquerda pretendiam, mas problemas notórios à sua própria existência e intervenção na sociedade. E, no entanto, quer os partidos que estão no poder em determinado momento, quer os da oposição, têm responsabilidades perante os cidadãos. A oposição mais à esquerda não pode colocar-se na posição de só criticar, adoptando tantas vezes posturas moralistas, sem dizer nunca o que faria em concreto se fossem governo, isto é, apresentando propostas concretas e o seu significado e consequências para o futuro.
O que se passa no partido Socialista parece uma simples luta pelo poder, mas pode ser muito mais do que isso. Seja por motivos mais nobres ou por razões mais prosaicas, o PS concluiu que se deve abrir à sociedade, abandonando velhos dogmas e afrontando aristocracias internas que se foram cristalizando ao longo dos anos. A experiência das eleições primárias abertas a simpatizantes coloca os militantes que pagam quotas perante a opinião dos “de fora”, com as consequências que isso pode trazer, mas com a crescente consciencialização de que as pessoas à frente das instituições é que importam. Mas também pode dar ao escolhido uma legitimidade e capacidade de intervenção muito maior e até mais liberdade ideológica, digamos assim, se e quando for governo.
Os partidos que são governo não podem, por razões óbvias, transformar-se enquanto têm essa responsabilidade. Mas sentem, talvez melhor que ninguém, o fim do ciclo político e económico e a necessidade de o próprio país se dotar de meios para fugir de vez à pobreza sistémica e, acima de tudo, quebrar definitivamente a força do corporativismo herdado do antigo regime e agarrado com toda a força por interesses profissionais, económicos e políticos diversos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 21 Julho 2014