Os últimos quarenta anos constituem o período mais longo de democracia e paz entre os portugueses desde há muito, quer em república porque bem mais de três quartos do século XX foram ainda vividos longe da democracia, quer mesmo em monarquia, dado que o século XIX foi marcado por grandes convulsões, guerras civis e mesmo falência do país.
Como é bem conhecido, a Democracia não existe sem partidos políticos que
permitam aos cidadãos associar-se colectivamente em volta de ideias
programáticas comuns, respeitando a diferença de opinião do outro. Perante as
diferentes propostas e as pessoas que as defendem, o povo soberano, com a sua
sabedoria, escolhe quem tem o direito e a obrigação de fazer o melhor pelo bem
comum presente e futuro.
Dito isto, os partidos não são perfeitos, muito longe disso. São da sua
responsabilidade os governos que, nos mesmos últimos quarenta anos, nos levaram
a pedir apoio financeiro internacional por três vezes para evitar a bancarrota
do país.
É também da sua responsabilidade o conjunto de normas legais que regulam
toda a nossa vida colectiva, desde a organização administrativa e económica,
até à integração europeia passando pelo ordenamento judicial, já que as leis
têm origem na Assembleia da República, onde os Deputados dos diversos partidos
eleitos pelos portugueses têm a responsabilidade de as fazer e aprovar.
Sucede que, nos dias de hoje, muita coisa da nossa vida em democracia
parece estar a chegar ao fim de um ciclo, sendo necessário ter consciência
disso para que esse ciclo não venha a coincidir com o fim do próprio regime.
Os anos de intervenção estrangeira através da Troika alteraram muitos
aspectos da nossa organização social na percepção colectiva de que só é
possível distribuir aquilo que se produz e que o Estado não pode continuar a
gastar mais do que recebe de impostos.
Esta simples constatação tem
consequências enormes: o Estado não pode continuar a endividar-se até ao
infinito para pagar a sua própria dívida e a vida económica tem que se virar
para a produção de bens transacionáveis em vez dos bens não transacionáveis que
praticamente não introduzem valor no sistema. Isto, se quisermos continuar a
pertencer à União Europeia e não passarmos a ser um Estado pária orgulhosamente
só no continente europeu.
A convulsão económica está bem à vista de todos, sendo o que se passa no
Grupo Espírito Santo e respectivas ondas de choque o sinal claro de um fim de
ciclo.
Mas a vida política está também a passar por uma fase de mudança profunda.
Os partidos percepcionaram o fim de ciclo e os sinais estão bem à vista. O
Bloco de Esquerda, falando sempre em união à esquerda está a desfazer-se à
frente de todos nós e o PCP regressou à linguagem de 1975 e da guerra fria,
porque percebe que o momento é de crise profunda, mas nunca procedeu à revisão
ideológica necessária, pelo que parece um dinossauro em pleno século XXI. Para
o provar, cito Jerónimo de Sousa num discurso recente: "A saída desta situação não se
resolve com o consenso entre as forças que conduziram o país à degradação
económica e social e ao abismo. A saída exige rutura com as políticas de
direita e de recuperação capitalista até hoje seguidas por PS, PSD e CDS".
Curiosamente, a crise prolongada e a austeridade que trouxe não provocaram
a luta de rua que os partidos mais à esquerda pretendiam, mas problemas
notórios à sua própria existência e intervenção na sociedade. E, no entanto,
quer os partidos que estão no poder em determinado momento, quer os da
oposição, têm responsabilidades perante os cidadãos. A oposição mais à esquerda
não pode colocar-se na posição de só criticar, adoptando tantas vezes posturas
moralistas, sem dizer nunca o que faria em concreto se fossem governo, isto é,
apresentando propostas concretas e o seu significado e consequências para o
futuro.
O que se passa no partido Socialista parece uma simples luta pelo poder,
mas pode ser muito mais do que isso. Seja por motivos mais nobres ou por razões
mais prosaicas, o PS concluiu que se deve abrir à sociedade, abandonando velhos
dogmas e afrontando aristocracias internas que se foram cristalizando ao longo
dos anos. A experiência das eleições primárias abertas a simpatizantes coloca
os militantes que pagam quotas perante a opinião dos “de fora”, com as
consequências que isso pode trazer, mas com a crescente consciencialização de
que as pessoas à frente das instituições é que importam. Mas também pode dar ao
escolhido uma legitimidade e capacidade de intervenção muito maior e até mais
liberdade ideológica, digamos assim, se e quando for governo.
Os partidos que são governo não podem, por razões óbvias, transformar-se
enquanto têm essa responsabilidade. Mas sentem, talvez melhor que ninguém, o
fim do ciclo político e económico e a necessidade de o próprio país se dotar de
meios para fugir de vez à pobreza sistémica e, acima de tudo, quebrar
definitivamente a força do corporativismo herdado do antigo regime e agarrado
com toda a força por interesses profissionais, económicos e políticos diversos.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 21 Julho 2014
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