Quando um cronista vai estabelecendo o seu plano de textos, o
próximo vai surgindo e desenvolvendo-se na sua mente logo após a publicação do
anterior que, depois de aparecer na página do jornal, lhe foge e rapidamente se
torna em algo estranho ao próprio autor. No entanto, por vezes sucede que a
realidade do quotidiano surge com tal força que se impõe, não deixando espaço
para as ideias anteriores.
A carnificina da passada quarta-feira
na redacção do jornal satírico Charlie Hebdo e desenvolvimentos posteriores que
incluíram a morte de clientes num supermercado em Paris e só terminaram com a
morte dos assassinos confessos, é um assunto que grita tão alto que ninguém
pode ficar indiferente ou passar ao lado.
O extremismo islâmico não se contenta
com as decapitações de jornalistas que fazem o seu trabalho onde as coisas
acontecem, como é o caso do chamado “estado islâmico”, e vem agora trazer a
morte ao interior das redacções dos próprios jornais, ainda que em locais
longínquos como Paris. Falo no presente e não no passado, porque nada garante
que esta acção seja isolada, antes pelo contrário, como responsáveis da al
Qaeda se apressaram a avisar e ameaçar.
Terroristas lhes chamaram todas as
pessoas que se referiram aos atentados. E bem, porque se trata na realidade de
tentar levar o terror e infundir o medo a todos os cidadãos do mundo livre,
fazendo-lhes sentir que não estão seguros em lado nenhum nem em qualquer
momento. Incluindo os muçulmanos que vivem nesse mundo e que, na realidade,
fugiram desse outro mundo que os extremistas pretendem levar a todo o lado.
Dizem agir em nome de Alá, o seu Deus e falam de guerra santa contra os
infiéis, que são todos os que não seguem Alá como eles acham que deve ser seguido.
O que se passa na Síria, no Iraque, na Nigéria e no Iémen não pode ser
esquecido nem escondido. A barbárie terrorista praticada pelos extremistas islâmicos
exercida contra todos mas na sua maioria contra muçulmanos pacíficos e
indefesos, tem que ser encarada e combatida com urgência. Assistimos a mais uma
guerra religiosa levada a cabo por fanáticos que desvirtuam a sua própria
crença como, infelizmente, se tem visto ao longo da História da Humanidade, com
consequências sempre trágicas. Têm que ser tratados como puros terroristas e
não como representantes de uma religião ou de uma civilização diferente das
nossas.
O semanário “Charlie Hebdo” é um
jornal satírico, praticando uma crítica social mordaz que segue uma tradição de
séculos nos países ocidentais. Muitas vezes criticou situações ligadas às
religiões, à sociedade e aos nossos modos de vida, frequentemente de forma
ácida e corrosiva, que desagradava a muita gente. Estava no pleno direito de o
fazer. Se alguém se sentisse injustamente atingido, poderia recorrer aos
tribunais, como é normal em sociedades civilizadas, o que aliás sucedeu por
várias vezes. O ataque de que foi vítima vem na sequência da tentativa de
censura que atacou também Salman Rushdie e tantos outros autores anteriormente.
No fundo, mais uma vez a luta das trevas a quererem tapar a luz da Liberdade.
Desta vez o ataque foi em Paris, o
que traz uma enorme carga simbólica. No Panteão de Paris repousam os restos
mortais de Voltaire, o grande iluminista e lutador pela Liberdade que
introduziu em França a tolerância religiosa e a liberdade de imprensa. Dele foi
dito que a melhor maneira de definir o seu espírito seria: "Posso não
concordar com nenhuma palavra do que você disse, mas defenderei até a morte o
seu direito de dizê-lo". Voltaire morreu há cerca de 250 anos. É
verdadeiramente trágico que, ainda hoje, seja necessário lembrar o seu espírito,
devido a carnificinas de homens e mulheres levadas a cabo em solo de Paris,
motivadas por ataques à liberdade de expressão e de imprensa.
Pelo que todos temos observado, o
resultado imediato destes actos brutais de terrorismo tem sido uma enorme onda
de solidariedade francesa e internacional para reafirmação da liberdade de
expressão. Espera-se que esse espírito se mantenha e se reforce, criando
barreiras ao medo que, insidiosamente, tende a instalar-se perante a violência,
preparando terreno para a falta de Liberdade.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 12 de Janeiro de 2014