segunda-feira, 18 de julho de 2016

Praia da Tocha




 De vez em quando descobrimos um pedaço de Portugal que nos surpreende de maneira positiva. Não falo das belas condições naturais em que o país é rico, que essas não dependem nem são fruto da acção humana, mas de algo que é resultado de trabalho bem feito na recuperação urbana do que existia antes e que, como quase tudo em Portugal no que respeita ao turismo, foi durante dezenas de anos estragado e delapidado.
Na costa portuguesa existem numerosas praias, umas mais conhecidas que outras, mas quase todas elas sofreram os efeitos de uma urbanização descontrolada e sem qualidade que as transformaram em imitações de bairros periféricos das grandes cidades.
Mesmo na região centro, o modelo seguido foi o da máxima ocupação do solo com possibilidade de obter visão de mar, sem que no desenho urbano seja possível detectar qualquer diferença relativamente ao usado em qualquer cidade portuguesa isto é, entre o medíocre e o muito mau.
Quando encontramos algo que não segue este cânone, a surpresa não é pequena e a satisfação é tanto maior quanto o trabalho realizado alia eficiência à obtenção de objectivos adequados.

É o que sucede numa das praias talvez menos badaladas da região centro, a Praia da Tocha, no concelho de Cantanhede. A imagem do que era antigamente esta praia surge com grande nitidez no filme “Uma abelha na chuva” de Fernando Lopes realizado sobre o romance homónimo de Carlos de Oliveira em que os palheiros da Tocha foram usados como cenário. O filme é de 1971 e, para além dos aspectos sociais e políticos inerentes à própria obra literária em que se baseia, impressiona a pobreza profunda associada aos moradores dos palheiros, num tempo ainda não tão afastado dos dias de hoje quanto a sua visão nos poderia levar a pensar.
Claro que a Tocha não poderia ficar alheia à procura de praia que se verificou a partir dos anos 70/80 do século passado, bem como da pressão urbanística que tal provocou. Há ainda sinais disso, quer no tipo de construção feita e num certo abastardamento dos velhos palheiros, quer mesmo no desenho da ocupação do solo, melhor dizendo, na falta dele. Mas nos dias de hoje tudo isso está em vias de ser completamente ultrapassado. Tem havido uma intervenção competente, séria e essencialmente muito cuidadosa, que veio dar à Tocha uma organização urbana de grande qualidade, que bem pode servir de exemplo a muitas das estâncias balneares da nossa costa atlântica.
Quer nas antigas zonas construídas, sempre paralelamente à costa, quer nas mais recentes, foram consideradas numerosas passagens para peões e ciclistas, que facilitam o acesso à praia, a partir de qualquer lugar. Os muros entre as edificações e entre elas e os arruamentos são inexistentes nas zonas novas ou de reduzida altura nas mais antigas. As edificações surgem assim de forma quase natural no espaço urbano, não obrigando as pessoas a grandes percursos à volta delas nas suas deslocações, criando uma grande transparência no espaço público, tão raro entre nós.
Os numerosos espaços públicos assim surgidos estão ocupados com relvados e jardins à volta dos percursos pedonais e, ao contrário do que é habitual em Portugal, não foram abandonados após a sua construção, surgindo todos eles verdes e cheios de canteiros com flores. Há quem repare neste aspecto e, notando o cuidado raro no tratamento de relvados, arbustos e flores, comente que as equipas de manutenção são praticamente todas elas femininas, o que explicará tal modo de acção.
Não se pense que houve gastos excessivos nos revestimentos dos percursos pedonais, todos eles realizados com materiais económicos, mas confortáveis, daí no texto desta crónica ter utilizado o termo eficiente. Várias ciclovias completam a oferta aos amantes da bicicleta.
Para além da praia que dispõe de apoios de grande qualidade, à semelhança do que se passa hoje em todas as nossas praias devido à competente acção das autoridades ambientais nos últimos anos, a Praia da Tocha oferece ainda uma zona de pinhal com a sua frescura, dotada de todos os apoios aos utentes que aí pretendam almoçar e passar uma tarde depois da manhã de praia.
Surpreendente pela qualidade de toda a sua organização, a Tocha é hoje uma pérola da nossa costa atlântica, bem longe do cenário do filme de Fernando Lopes, de que resta a pesca artesanal-arte xávega, num contexto diferente, mas bem merecedor da nossa atenção.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

A morte à distância




A história da evolução do Homem encontra-se intrinsecamente ligada à guerra (quer se goste, ou não). Desde os primórdios da Humanidade que, quando algum grupo humano conseguia alguma vantagem tecnológica, logo se sobrepunha militarmente a outros grupos. Tudo começou com as lanças que chegavam mais longe do que as espadas, permitindo atingir os inimigos evitando o contacto directo. Seguiram-se as flechas que permitiram aos combatentes levar ainda mais longe as suas capacidades de eliminar os inimigos. Surgiram depois as máquinas de guerra, com lançamento de objectos pesados a grandes distâncias, destruindo inimigos, fortalezas e mesmo navios.
A distância a que os combatentes conseguiam atingir os inimigos sofreu uma mudança radical com a utilização da pólvora. Embora tivesse sido descoberta na China no século I, a sua utilização militar só se desenvolveu naquele país a partir do século X, após o que chegou a toda a Ásia e à Europa, tendo-se difundido a sua utilização a partir do século XIII. A partir daí surgiram as primeiras armas pessoais parecidas com as actuais espingardas e desenvolveu-se enormemente a artilharia, cuja capacidade foi evoluindo até aos gigantescos canhões utilizados pelos alemães na II Grande Guerra e aos tanques de guerra.
A II Grande Guerra foi ocasião para um desenvolvimento extraordinário do ponto de vista tecnológico, induzido pela necessidade de ultrapassar tecnicamente o inimigo. Se os vectores que já vinham da I Grande Guerra como os navios, os aviões e os próprios submarinos conheceram um salto qualitativo gigantesco, a novidade essencial foram os mísseis. 

As então chamadas “bombas voadoras” inventadas pela Alemanha, as V1 e, fundamentalmente as V2, levaram a morte e a destruição à Inglaterra, tendo os londrinos sofrido na carne durante anos os efeitos mortíferos desses primeiros mísseis.
Durante a “guerra fria” assistiu-se, essencialmente, à evolução dos mísseis, quer no respeita ao raio de acção, quer quanto ao armamento que transportam (designadamente nuclear) e à precisão de atingir o alvo. Passou a ser possível levar a morte e a destruição literalmente a qualquer ponto do globo terrestre.
Mas, perto do final do século XX, outra transformação fulcral aconteceu com a arte da guerra, com a chegada da cibernética. Começou pelas telecomunicações. É conhecido o episódio de um chefe de uma determinada organização terrorista no médio-oriente ter sido morto com o próprio telemóvel; o estado que combatia descobriu o seu número de telemóvel e, à distância, provocou-lhe uma avaria, o que levou o proprietário a levá-lo a ser reparado; na oficina foi introduzido um explosivo no aparelho e, quando o utilizou morreu numa explosão, não sem que antes uma chamada tivesse permitido verificar que o utilizador era de facto o alvo a eliminar.
A internet veio permitir todo um novo conjunto de alternativas para combate à distância, agora sem qualquer contacto físico. Há alguns anos, o Irão comprou um novo conjunto de alguns milhares de centrifugadoras para enriquecimento de urânio. Para descobrir, pouco depois de começarem a trabalhar, que tinham perdido o controlo sobre elas, que rodaram violentamente até se destruírem: o vírus Stuxnet tinha chegado pela internet e provocado a destruição do equipamento.
A guerra mais sofisticada e mais letal é hoje uma verdadeira guerra de computadores. As próprias redes sociais são um dos meios utilizados. O ISIS que tão bem tem feito uso das redes com fins propagandísticos, está a descobrir quão traiçoeira pode ser a sua utilização. Mais que um militante foi enganado por mensagens enganadoras que os levaram a locais onde esperavam encontrar-se com chefes para apenas irem de encontro à morte.
As forças armadas das potências mais poderosas possuem já ciber-departamentos dentro das suas organizações que, ao contrário do que se possa pensar ou mesmo do que aceitem revelar, têm alvos específicos e bem definidos, não servindo apenas de apoio de “intelligence” para os outros departamentos militares. A ligação do mundo inteiro pela internet veio oferecer uma nova via não detectável para enviar projecteis cibernéticos a qualquer parte do mundo, por mais escondido que pense estar.

 Se no local do alvo definido ainda será necessário utilizar uma arma clássica para atingir o fim pretendido, seja bomba ou uma bala, já não deverá faltar muito para que até isso seja alterado, se é que tal ainda não aconteceu.

segunda-feira, 4 de julho de 2016

“SOMME”, 1 de Julho de 1916




Não fora estar revestido com um relvado imaculado, o solo do local onde decorreu a cerimónia da passada sexta-feira mais pareceria um mar revolto assolado por forte tempestade. Entidades oficiais, militares e povo de França e Inglaterra homenageavam os mais de um milhão de soldados caídos na batalha do Somme iniciada em 1 de Julho de 1916, na I Grande Guerra e que durou até Novembro. O resultado da investida iniciada nesse dia contra as barreiras alemãs saldou-se, no fim da batalha, num avanço da frente aliada inferior a vinte quilómetros, uma perfeita inutilidade em termos militares. Para isso morreram todos aqueles soldados na que foi, provavelmente, a batalha mais mortífera da história da humanidade.
O presidente francês François Hollande, a família real britânica, o primeiro-ministro inglês e o ex-presidente alemão Horst Köhler participaram na cerimónia do centenário do início da batalha em que, só no primeiro dia, morreram mais de 20.000 soldados ingleses.
O solo remexido em inúmeras crateras é ainda hoje o resultado visível do bombardeamento sistemático das peças de artilharia. A guerra de trincheiras teve aqui o exemplo mais trágico da incompetência das chefias militares e da sua incapacidade de conciliar velhas tácticas com as novas armas, enviando sucessivas levas de soldados de infantaria para a morte certa.

Nesta batalha participaram de forma anónima várias personalidades, como Tolkien que posteriormente escreveu “O senhor dos Anéis”, o pai de Ann Frank e até o cabo Adolfo Hitler que foi aqui ferido por duas vezes. A I Grande Guerra, cujo início se deveu a circunstâncias que de modo nenhum justificariam o enorme conflito em que se tornou num tempo em que os chefes de Estado dos países europeus eram quase todos familiares próximos, provocou o encerrar de uma era histórica com o fim de quatro impérios. O seu fim coincidiu com o surgimento das grandes ideologias que vieram a desembocar todas elas em regimes ditatoriais sangrentos, qualquer que fosse o seu objectivo. O Tratado de Versalhes que lhe pôs fim, em vez de ser fonte uma paz duradoura, veio a estabelecer as condições para que um político como Hitler tivesse sucesso na Alemanha e viesse a arrastar toda a Europa primeiro, e o resto do mundo depois, para a Segunda Grande Guerra, que muitos consideram ter sido apenas a conclusão militar da primeira.
Depois da II Grande Guerra a Europa veio a conhecer um período de paz e posteridade, que dura há setenta anos. Ao longo deste período de tempo os países europeus foram-se aproximando, estabelecendo laços económicos, sociais e políticos num crescendo em fases sucessivas. Depois da queda do mundo soviético, muitos países do leste da Europa juntaram-se aos que já integravam a União Europeia, anterior CEE.
A dificuldade de organizar uma casa comum com esta dimensão e a incapacidade de muitos dirigentes europeus assumirem as suas responsabilidades com independência têm aberto a porta às críticas, muitas vezes justas, e que devem ser tidas em conta. Mas há outras que são apenas ideológicas, vindas da parte dos que tentam aproveitar as brechas para tentar acabar com a UE que nunca quiseram.
Os movimentos populistas, à esquerda e à direita, estão também a provocar confusão nos cidadãos que sentem dificuldades nas suas vidas, não entendendo muitas decisões, mormente a nível financeiro, e que ficam vulneráveis aos discursos oportunistas, tantas vezes difíceis de desmontar, porque escondidos em camadas de mentiras e meias-verdades para parecerem lógicos e verdadeiros.
O caos em que a Grã-Bretanha está mergulhada por estes dias é paradigmático desta situação. Depois do resultado do referendo para o chamado Brexit, verifica-se que os argumentos apresentados eram falaciosos quando não completamente falsos, que os defensores mais notáveis da saída não estavam minimamente preparados para as consequências do que propunham com tanto calor e ainda que muitos eleitores que votaram pela saída não faziam ideia do que estavam a decidir.
A Paz é um bem inestimável. É também condição necessária para o progresso e o bem-estar dos povos. A Europa, embora com muitas contradições e problemas, está a passar por um dos períodos mais longos da sua História sem guerra e é uma das melhores zonas do mundo para se viver. Os populismos diversos e nacionalismos que surgem em diversos países ameaçam colocar tudo isto em questão, pelo que é altura de cerrar fileiras e mostrar solidariedade entre todos.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

segunda-feira, 27 de junho de 2016

A questão conimbricense da “via central”


 O ambiente político de Coimbra anda agitado por causa da chamada “via central”. Há mesmo quem defenda que se pergunte a opinião aos conimbricenses sobre a abertura da via, através de referendo local. Mas será que sabemos todos de que se trata?
Nos anos noventa do século passado, perante a iminência do fecho da Linha da Lousã a exemplo de outros ramais por todo o país que foram encerrados por falta de rentabilidade, surgiu a ideia do Metro do Mondego, posteriormente designado “Sistema de Mobilidade do Mondego”. A sustentabilidade económica do sistema seria garantida pelo trajecto urbano cujo eixo central uniria a linha ao longo do rio com os Hospitais da Universidade, passando pela zona do “bota abaixo” e desembocando na Rua da Sofia em frente à Caixa Geral de Depósitos. Como é sabido, as obras de construção da linha do Metro Mondego avançaram, com aquisição e demolição de prédios na baixa de Coimbra necessários à implantação da via, bem como as obras de beneficiação da antiga linha do caminho-de-ferro até Serpins/Lousã. Lamentavelmente, estas obras foram suspensas durante o governo Sócrates e durante o governo Passos Coelho não foram retomadas, com a agravante de a Sociedade Metro Mondego não poder sequer levar a cabo as obras de reabilitação/renovação dos prédios frente à Rua da Sofia e na Rua Nova, nem ser autorizada a entregar os prédios a outra entidade para realizar as obras.

O canal da travessia entre a Av. Fernão de Magalhães e a Rua da Sofia foi objecto de uma necessária DIA (Declaração de Impacte Ambiental) em 2004 que contemplava condicionantes, entre as quais a de que a faixa rodoviária que acompanha as duas ferroviárias apenas pudesse ser utilizada por veículos de emergência e de carga e descarga. Com a candidatura da Universidade a Património Mundial que incluia a Rua da Sofia, que já era no seu todo Monumento Nacional, esta rua passou a ter uma importância patrimonial acrescida, pelo que se prevê para ela uma diminuição da utilização rodoviária. A alternativa óbvia, perante a defesa do bem patrimonial maior que é a Rua da Sofia e estando as demolições já realizadas, é a utilização do canal da Metro pelo que a DIA foi alterada em 2010. A utilização rodoviária sem condições do canal do metro ficou autorizada, na condição da libertação progressiva da Rua da Sofia do tráfego rodoviário, começando pela eliminação de um dos sentidos de trânsito e alargamento dos passeios.
O atraso de decisões sobre a instalação do metro ligeiro de superfície está a ser prejudicial para a Baixa de Coimbra aos mais diversos níveis. Desde logo, as demolições realizadas são uma ferida no tecido urbano com consequências nefastas a nível social, comercial e outras. Por outro lado, a renovação urbana da Rua da Sofia só poderá avançar com a abertura do canal da Metro que dispõe de um estudo de integração urbana da autoria do Arq, Gonçalo Byrne garantindo o equilíbrio urbano entre a travessia rodo-ferroviária e os espaços e edificações envolventes. Assinalo que a ligação viária entre a beira-rio e o interior da Cidade é muito deficiente devido à orografia do terreno e ao fecho das Ruas Ferreira Borges e Visconde da Luz ao trânsito rodoviário que não pode voltar atrás.
Essa abertura implica naturalmente obras nos edifícios da Rua da Sofia onde o canal desemboca, no edifício-ponte do meio e nos dois laterais que lhe darão o apoio estrutural e os acessos, já que não terá ligação directa ao espaço público. O projecto conjunto destes edifícios aprovado com os necessários pareceres do Ministério da Cultura, que é de grande qualidade arquitectónica, é igualmente da autoria do Arq. Gonçalo Byrne.

O actual Presidente da Câmara assumiu os projectos que já vinham de trás e se encontravam parados, tendo a Câmara desenvolvido um projecto provisório que contempla uma primeira parte do futuro canal, incluindo a parte rodoviária, a que tem chamado “via central”, completamente compatível com a futura utilização rodo-ferroviária.

Perante todos estes dados, perguntar em referendo aos cidadãos se concordam com esta obra é, a meu ver, o mesmo que perguntar a alguém que anda de cadeira de rodas se quer caminhar sozinho, já que a alternativa é manter o que está e que é inaceitável. Os diversos partidos e movimentos de cidadãos têm, naturalmente, todo o direito a ter as suas próprias opiniões e opções. Mas neste caso concreto há um partido, para além do que actualmente governa a Câmara, que tem responsabilidades acrescidas e que é o PSD. Todos os projectos em causa se iniciaram, ou foram mesmo totalmente desenvolvidos, nos anteriores mandatos da sua responsabilidade e é claramente o interesse da Cidade que está em causa, acima das contingências políticas imediatas. Só lhe ficará bem assumir publicamente este projecto que iniciou e foi assumido pela actual Câmara, apoiando a sua execução no mais curto prazo possível.

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Vasco Martins, Artista do mundo


Há duas semanas tivemos a oportunidade de ouvir em Coimbra, e ao vivo, um grande artista cabo-verdiano que tem também nacionalidade portuguesa. Vasco Martins esteve entre nós para participar na apresentação do seu CD “Viagens no imaginário da Morna” editado pela Orquestra Clássica do Centro tendo ainda, no dia seguinte, apresentado o seu mais recente livro, “SINFONIAS”.
Vasco Martins é muitas vezes apresentado como o maior compositor actual de música erudita de África, o que é na verdade redutor perante a sua personalidade artística. Vasco Martins é, antes de tudo, um artista multifacetado, sendo um grande compositor de música clássica que acontece ter escolhido viver em Cabo-Verde não sendo capaz, nas suas próprias palavras, de estar mais de um mês afastado de Vale da Ribeira de Calhau onde actualmente reside, na ilha de S. Vicente.
Vasco Martins é também escritor, tendo editado vários livros de entre os quais o já referido “Sinfonias”, mas também os seus trabalhos sobre a Música Tradicional Cabo-Verdiana (Morna), as obras “A Verdadeira Dimensão”, “Tempos da Moral moral” sobre a sua mundividência e ainda os livros de poemas “Universo da Ilha” e “Navegam os olhares com o voo do pássaro”. Foi ainda co-autor, juntamente com o pintor Tchalé Figueira, de um livro sobre a vida de Cesária Évora (Cesária – A rota da Lua vagabunda) editado em Coimbra pela Orquestra Clássica do Centro.
Pela sua ligação afectiva e intelectual à Morna é o responsável pelo Centro de Estudos da Morna que tem como um dos seus objectivos o reconhecimento deste género musical como património mundial pela Unesco. Como o próprio Vasco Martins escreve, “a Morna é sem dúvida uma das mais belas manifestações do mundo da chamada ‘música popular urbana” e está, sem dúvida, no interior de muita da sua produção musical.

Mas Vasco Martins vai muito para além disso, como compositor. A sua formação musical iniciou-se com Fernando Lopes Graça após o que continuou os seus estudos em Paris com Henri-Claude Fantapié. Teve contacto próximo com a música dita contemporânea modal e dodecafónica, tendo-se, no entanto, afastado dela por a achar puramente intelectual, afastando-se do prazer que esta forma de arte deve proporcionar a quem dela desfruta.
Vasco Martins é um compositor prolífico, tendo escrito nove sinfonias entre 1997 e 2013, estando neste momento a terminar a décima. Em vez de as numerar designa-as com nomes próprios que remetem claramente para o ambiente geográfico, cultural e artístico de Cabo Verde. Assim surgem as sinfonias “Equinócio”, “Erupção”, “Arquipélago”, “Oceano Atlântico”, mas também “Buda Dharma” ou “Himalaias” que reflectem as suas preocupações cosmogónicas. Para além das sinfonias, Vasco Martins tem ainda obras para guitarra, piano e sintetizador, reflectindo os seus diversos interesses musicais para além da música clássica, como o jazz ou a música new-wave, para além da Morna, claro.
O facto de a sua obra musical ter frequentemente referências à música de Cabo–Verde não significa que fique confinada a um estilo “nacionalista” ou mesmo folclórico. Longe disso. Como o próprio Vasco Martins acentua, muitos compositores clássicos integraram elementos musicais das suas terras como Chopin, Mahler, Stravinsky, ou o próprio Bach, para além de muitos compositores que incluíram elementos musicais das terras de que gostavam como Debussy ou Messiaen. 
A música sinfónica de Vasco Martins é belíssima em qualquer parte do mundo, sendo a prova do seu enorme talento, mas também da justeza das suas opções musicais. Nas suas sinfonias Vasco Martins utiliza a orquestra como um instrumento, muito para além da variedade de sons dos seus instrumentos musicais constituintes, sendo perceptível a sua admiração por esse instrumento colectivo complexo.

A edição do CD “Viagens no imaginário da Morna” com composições sobre temas da música tradicional de Cabo-Verde é um acontecimento invulgar entre nós, tanto mais importante quanto o Fado não se encontra tão longe da Morna quanto se poderia pensar.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

“Leva muito tempo tornarmo-nos jovens”


Picasso é um dos pintores mais conhecidos do séc. XX, estando algumas das suas pinturas entre as obras de arte mais significativas da História da Humanidade. O seu génio como pintor revelou-se muito cedo, tendo sido orientado nos primeiros anos pelo pai, ele próprio pintor, mas convencional e sem rasgo. Conta-se que, com menos de catorze anos, entrou directamente para o último ano de uma escola de pintura, tendo terminado num único dia um estudo sobre um nu que normalmente seria trabalho para um mês.
São conhecidos e sempre referidos os seus diversos períodos na pintura, como o azul, o cor-de-rosa ou o cubista. No entanto, há outros aspectos da sua vida artística que merecem atenção. A sua admiração pelos grandes pintores espanhóis é evidente. Não foi por acaso que pintou uma extraordinária versão de “Las meninas” de Velasquez. Tal como, ao observarmos a “”Guernica”, não podemos deixar de lembrar Goya e o seu “fuzilamento de Maio de 1808”. Quanto a El Greco, Picasso manteve uma admiração constante ao longo de toda a sua vida, com inúmeras obras inspiradas em quadros do extraordinário pintor nascido em Creta, mas que desenvolveu grande parte da sua vida artística em Espanha, depois de ter passado por Veneza e Roma.

Há poucas semanas tive a oportunidade de, mais uma vez, visitar o museu Picasso em Barcelona. Para nosso deleite lá está o seu “Las Meninas”, bem como muitos dos estudos que fez para esse quadro, além de outras obras-primas. Mas há algo que chama a atenção naquele museu e que é essencial para perceber como se desenvolveu a obra moderna de Picasso. Antes de se tornar no pintor vanguardista que tanto influenciou a pintura moderna do século XX, Picasso passou por todo um processo de aprendizagem, tendo retratos, paisagens e naturezas-mortas de uma qualidade clássica irrepreensível, como o comprovam as obras existentes no museu. Sentiu depois a necessidade de se libertar do academismo representativo da realidade como a vemos exteriormente, como que passando para dentro dessa mesma realidade e dando-nos a conhecê-la pelos diversos elementos que a constituem. A beleza da pintura deixou de ser estática, interpelando intimamente e de forma inquietante quem a observa e aí está o génio de Picasso. Da complexidade estrutural da pintura representativa clássica, evoluiu para uma “aparente” simplicidade quase infantil resultante da “explosão” dos diversos elementos integrantes do motivo do quadro e transformando-os em simples objectos geométricos.
Por isso Picasso brincava dizendo o que aparece no título desta crónica. Conta-se, a este propósito, a história de uma senhora que lhe pediu um retrato que o pintor executou com meia dúzia de traços e em poucos minutos. Quando lhe pediu a conta, a senhora exclamou que era muito dinheiro para tão pouco tempo de trabalho ao que o pintor respondeu que aquilo era o resultado do trabalho de uma vida inteira, pelo que até era barato.
Além do tempo que demora a ficarmos jovens, aqueles que ficamos, claro, é preciso reconhecer que isso dá muito trabalho. E, como é evidente, tal não sucede apenas na arte mas também na nossa vida. A simplicidade que advém do conhecimento interior da sociedade e das pessoas permite distinguir o que é essencial do que é acessório e o que é apenas revestimento artificial da realidade, escolhendo a verdade e excluindo a mentira.

Pablo Picasso deixou-nos no fatídico ano de 1973, em que a Humanidade perdeu três dos maiores artistas do século XX, todos chamados Pablo. 
Felizmente nos dias de hoje podemos dizer que os artistas ficam para sempre connosco. Através das gravações podemos continuar a ouvir Pablo Casals a tocar as suites de Bach no seu violoncelo e pelos livros lemos os poemas eternos de Pablo Neruda. 
Ambos com uma vantagem sobre Picasso: é que para apreciar verdadeiramente as pinturas de Picasso temos que nos deslocar perante elas como já fiz várias vezes com a Guernica, o que não sucede com a audição de Casals e a leitura de Neruda que podemos apreciar em casa. 

segunda-feira, 6 de junho de 2016

A crítica gestão de territórios urbanos


 É hoje pacífico reconhecer que, se o choque político, cultural, económico e social do fim dos anos 70 e inícios dos anos 80 no nosso país teve aspectos muito positivos, outros houve com uma enorme carga negativa que ainda hoje estamos a pagar. Um deles foi certamente a ocupação do território e a evolução das cidades.
A súbita libertação de forças sociais que se encontravam abafadas aliada a um esvaziamento temporário da capacidade de intervenção da autoridade do Estado nos seus diversos níveis, desde o nacional ao local, levou a uma explosão da actividade urbanística que demorou muito tempo a ser controlada por legislação adequada. Não estou tanto a falar da construção clandestina que se desenvolveu principalmente junto das maiores cidades e também nas praias de maior procura, como foi o caso do Algarve e que obrigou a programas governamentais específicos para resolução desse problema. 

Refiro-me mais ao crescimento das cidades em mancha, muito por culpa de uma figura legislativa que vinha dos anos sessenta, utilizada e aprovada sistematicamente pelos municípios de forma abastardada relativamente aos seus princípios, que dá ainda pelo nome de loteamento e que permite a transformação do uso do solo, gerando mais-valias privadas de forma absurda.
Tudo isto é hoje uma evidência reconhecida por todos, não carecendo de prova, para além do que se encontra à vista de todos.
Só bem dentro da década de oitenta começaram a surgir respostas de planeamento urbanístico, definindo princípios gerais de ocupação do solo. Foi a época dos Planos Directores Municipais, que todos os municípios foram obrigados a elaborar para os seus territórios, muitas vezes sob a ameaça de que, se não o fizessem, ficariam impedidos de aceder a determinadas verbas. Muitos PDM´s tipo copy/past se fizeram nessa altura mudando só o nome do município, com a agravante de serem feitos sem qualquer relação com os dos municípios vizinhos, anulando toda a possibilidade de economia de escala, e levando à existência de equipamentos redundantes a poucos quilómetros uns dos outros. Mais tarde, muito mais tarde, também esse problema foi objecto de solução através de planos regionais e mesmo nacional, numa altura em que praticamente todo o mal (custos desnecessários) já estava feito.
Mas o pior ainda está por aí a acontecer. Os PDM’s, que entretanto já foram todos eles objecto de revisão, dadas as novas condicionantes técnicas, ambientais e mesmo de princípios políticos orientadores, continuam em muitos municípios a servir para aquilo para que não foram feitos. São destinados ao planeamento do território a nível municipal e não à gestão urbanística que todos os dias é praticada pelos municípios e que tem a ver com as operações urbanísticas de “licenciamento de obras particulares” que exige uma escala completamente diferente. Quando surgiu a necessidade que acima referi de controlar de forma sistemática e com algum critério mínimo as operações urbanísticas edifício a edifício no interior das cidades, os urbanistas lançaram mão de um instrumento que poderia ser usado de imediato, o “índice de construção”. Só por si ou associado a outros conceitos como a profundidade do terreno, a sua frente de rua ou até o limite de impermeabilização do solo, servia para limitar a ocupação do território, evitando excessos volumétricos desadequados. Trata-se, como é bom de ver, de um instrumento claramente provisório, a utilizar apenas enquanto não avançassem outros instrumentos urbanísticos mais adequados, com o Plano de Urbanização da cidade à cabeça e outros planos mais restritos e ainda mais agarrados à realidade concreta do território, como os Planos de Pormenor.

E é por esta razão, caro leitor, que na actualidade ainda é possível encontrar edifícios completamente desgarrados volumetricamente e fora da “moda local” em construção na nossa cidade. De forma inteiramente legal e sem que a Autarquia o possa impedir porque não se apetrechou, ao longo destas dezenas de anos, com os necessários instrumentos para uma gestão urbanística moderna e eficaz.