segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Rússia: um interregno de 70 anos




Começou em Novembro de 1917, faz agora cem anos, quando reinava o fraco e incapaz Nicolau II que viria a ser o derradeiro czar da Rússia. Terminou em Dezembro de 1991 quando Mikhail Gorbachev, último líder da União Soviética, transferiu o poder para o primeiro presidente russo, Boris Yeltsin.

Entre 1917 e 1991, a União Soviética foi a primeira e mais importante experiência de realização do socialismo. Quando a Alemanha ajudou Lenine a sair do seu exílio na Suíça e a dirigir-se até Petrogrado tentando retirar a Rússia da guerra, colaborou de forma decisiva com a eclosão da Revolução Russa que viria a influenciar o século XX quase até ao seu fim.

Após a sua chegada a Petrogrado em Abril de 1917, Lenine junta-se aos bolcheviques e sistematicamente promove a destruição de qualquer hipótese de estabelecimento de uma democracia parlamentar, minando os sucessivos governos provisórios de Kerensky. Em 7 de Novembro de 1917 eclode a chamada “revolução de Outubro” assim chamada dado que na altura ainda vigorava na Rússia o calendário Juliano. No dia seguinte foi formado um governo presidido por Lenine saído do Congresso dos Sovietes e em Janeiro de 1918 é dissolvida a Assembleia Constituinte, tendo os comunistas tomado todo o poder.

Desde 1917 até 1991, após Lenine que morreu em 1924, a União Soviética foi dirigida sucessivamente, excluindo algumas lideranças curtas e provisórias, por Joseph Stalin, Nikita Khrushchev, Leonid Brezhnev, Yuri Andropov, Konstantin Chernenko e, finalmente, por Mikhail Gorbachev. De todas as lideranças, a de Stalin ficou na História pela sua duração desde 1922 até à sua morte em Março de 1953, mas sobretudo pela forma como marcou a experiência do socialismo real. Foi sob a sua liderança que a URSS defrontou a invasão nazi da II Grande Guerra, numa luta terrível que se saldou na derrota da Alemanha, mas com mais de vinte milhões de mortos do lado soviético. Com Stalin a repressão comunista atingiu patamares inimagináveis já que, se com Lenine se matavam não comunistas para implantar o novo regime pelo terror, na era estalinista nem os próprios comunistas estavam a salvo.

Nos anos setenta, mas sobretudo nos oitenta, ficou patente a incapacidade da URSS em acompanhar o desenvolvimento económico e tecnológico do Ocidente. A pobreza generalizada não podia mais ser escondida e até a famosa e real democratização da cultura, bandeira dos países comunistas, entrava em colapso, com muitos artistas a fugir para o Ocidente, fugindo às directivas partidárias sobre a sua criatividade.

Quando Mikhail Gorbachev chegou ao poder em Março de 1985 tentou levar a cabo as reformas que, no seu entender, seriam necessárias para revitalizar o regime, dando início às famosas Glasnost e Perestroika. Gorbachev, apesar de ter feito carreira dentro do partido Comunista, não colocou o dogmatismo marxista e a ideologia soviética à frente da sua formação moral e isso viria a tornar-se fatal para ele como líder e para o próprio regime. Gorbachov era o paradigma do chamado “homem soviético” sem gostos burgueses e acreditando completamente nas virtudes do socialismo idealista o que, na realidade, não tinha nada a ver com o regime. A abertura política e a liberdade de expressão trazidas pela Glasnost libertaram as forças que, depois de reprimidas durante tantos anos se julgaria já não existirem, e a situação política tornou-se incontrolável, ditando o fim da URSS em Dezembro de 1991.

Com a implosão da URSS veio também o fim da Guerra Fria, o desmontar do mito do socialismo real e uma nova ordem mundial, ainda em definição. A Rússia é hoje, para o bem e para o mal, governada por um Presidente de uma forma que em nada fica a dever ao poder dos antigos Czares. A ironia de o fim da URSS ter sido ditado por aquele que foi provavelmente o seu único líder que acreditava verdadeiramente no sistema e que apenas o queria aperfeiçoar deveria fazer-nos pensar. É que, num mundo capitalista, assistimos hoje a um presidente americano que é, não um político, mas um capitalista inculto e narcisista. E que, com a sua atitude disruptiva, bem pode vir a ser o Gorbachev dos Estados Unidos da América que toda a vida conhecemos, apesar do complexo sistema de “check and balances” daquele país.

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Poder e assédio sexual




O que andava escondido ou apenas calado desde há muitos anos veio finalmente para a luz do dia e não é bonito de se ver. A exposição pública do caso de Harvey Weinstein abriu a caixa de Pandora do assédio sexual no cinema americano, algo que ao longo dos anos foi sendo motivo de comentários mais ou menos públicos, mas que nunca levaram a uma atitude pública. Todos sabemos como Marilyn Monroe se referiu aos anos em que tentava ser alguém no mundo da arte cinematográfica, não sendo necessário repetir aqui como ela os descreveu de forma crua.

Após dezenas de mulheres o terem acusado publicamente de assédio sexual no momento em que tentavam ser escolhidas para papéis em filmes da sua produtora, uma das mais importantes de Hollywood, responsável por filmes como “O Discurso do Rei” ou “A Paixão de Shakespeare”, Harvey Weinstein ainda tentou o caminho da desresponsabilização do “todos o faziam nos anos 60 e 70” ou “era um homem que gostava demasiado de mulheres”. Contudo, a onda cresceu tanto que de imediato teve que se demitir da empresa que ele próprio tinha fundado há anos. O facto de estrelas do nível de Angelina Jolie ou Gwyneth Paltrow, entre outras, terem assumido que foram vítimas de assédio sexual por parte de Weinstein quando jovens pretendentes a actrizes não deixou muito espaço livre ao produtor para continuar.

Mas o caso de Weinstein provocou uma autêntica enxurrada de acusações a outras personalidades de referência no mundo do cinema e não só, já que se alastrou a outras áreas da indústria de “media”, havendo mesmo quem diga que o assédio sexual é aí endémico. É sabido que as mulheres vítimas destas acções raramente falam sobre isso, seja com medo de perder trabalho, ou temendo que ninguém acredite nelas dada a proeminência social dos abusadores. Neste momento, porém, algo mudou, havendo muitas mulheres abusadas a utilizar a internet através da referência “hash-tag#metoo” para tornar públicos os seus casos pessoais. E os acusados são já muitos e bem conhecidos do público. O actor Ben Affleck começou por comentar negativamente o comportamento de Weinstein e é hoje também acusado de atitudes do mesmo tipo, o mesmo acontecendo ao conhecido Steven Seagal. O consagrado realizador Oliver Stone chegou mesmo a defender Weinstein, para logo ser acusado de assédio sexual por uma atriz. Um dos mais conceituados fotógrafos de moda, Terry Richardson, viu já serem-lhe fechadas as portas das principais revistas dessa área, depois de surgirem acusações de assédio sexual praticado ao longo de dezenas de anos. E a lista continua por aí fora, parecendo não ter fim, não se devendo esquecer outros mais antigos, como o caso de Roman Polanski.

Há algo de comum em todas estas acusações de assédio sexual, que é a posição de poder dos homens acusados. Embora os casos que agora vão sendo públicos se referiram ao mundo dos “media”, um pouco por todo o mundo já que não é exclusivo de Hollywood, a realidade é que essas situações de poder são muitas vezes usadas no mundo empresarial ou de outras instituições públicas ou privadas, e mesmo no mundo da política. Basta que quem tem algum poder sobre outros o use de forma a satisfazer os seus instintos sexuais, abusando da vontade e da liberdade de quem de alguma forma dele dependa.

Felizmente, em grande parte dos países, já não é aceite que empregos ou promoções sejam obtidos através da troca de favores sexuais. O silêncio de colegas, tantas vezes com comentários jocosos do género “ela trepou até ao cimo, sempre deitada” e das própria vítimas pelas razões já indicadas criou durante muito tempo um clima favorável à impunidade dos predadores sexuais nas empresas, que é necessário desmontar. As próprias empresas podem vir a ser gravemente afectadas por casos destes, como a produtora de Weinstein que provavelmente será encerrada, pelo que será do interesse delas evitar situações destas.

Será sempre difícil definir até que ponto algumas atitudes possam ser consideradas assédio sexual, já que entre homens e mulheres parece haver alguma discordância sobre o assunto, embora a situação esteja a evoluir. Mas há realidades que são indiscutíveis e que um ambiente saudável dentro das instituições nunca permitirá, não sendo aceitáveis desculpabilizações de qualquer género. Trata-se de uma questão de respeito entre as pessoas: os papéis dentro das instituições são diferentes na responsabilidade e mesmo no poder, mas isso não deverá nunca reflectir-se em abuso pessoal, seja sexual ou qualquer outro.

Imagem retirada de:   www.economist.com

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Um país de luto



No dia 17 de Junho deste ano, ainda o Verão não tinha começado, ocorreu a grande tragédia de Pedrógão Grande, provocando a morte de 64 mortos, nas condições de que todos estamos recordados. Naquele dia, o Estado falhou numa das suas funções mais básicas, que é garantir a segurança dos cidadãos.

O tempo foi passando, o Verão decorreu sem incidentes de maior no que toca a incêndios, veio Outubro, o Governo como habitualmente entregou a sua proposta de Orçamento Geral de Estado para 2018 no último momento legal e a Comissão Técnica Independente entregou o seu relatório dentro do prazo estabelecido o qual, por uma vez, foi imediatamente tido como sendo de excepcional qualidade.

No que respeita aos incêndios, a proposta de OGE para 2018 pouco alterava em relação ao anterior mostrando que, apesar do sucedido em Pedrógão, os incêndios não constituíam uma prioridade governamental. Quanto relatório da CTI, o Governo informou o país que iria promover alterações na organização da prevenção e combate aos incêndios de acordo com o aí proposto. Numa completa modorra governativa, esquecia-se deliberadamente a gravidade do que no relatório se escreveu sobre as causas do sucedido em Junho. Nada na actuação do Governo indiciava que reconhecesse responsabilidades das suas estruturas de combate aos incêndios no sucedido em Pedrógão.

Estava tudo na paz dos anjos como se costuma dizer, quando surgiu o fim de semana de 15 de Outubro. Já se tinha ultrapassado a fase crítica designada por “charlie” no que toca a incêndios e passado à fase “delta” no dia 1 de Outubro. Em consequência, os meios de combate aos fogos tinham sido drasticamente reduzidos. A definição burocrática da época de incêndios desenhada pela ANPC assim o mandava fazer. E a tragédia aconteceu. Um incêndio iniciado na Serra da Lousã encontrou as condições climatéricas óptimas para se desenvolver e quase toda a Beira ardeu, deixando novamente dezenas de pessoas mortas, centenas de casas ardidas, inúmeras fábricas destruídas, mais de duzentos mil hectares ardidos numa devastação inaudita incomparável a qualquer situação desse tipo acontecida antes.

O mais grave e mesmo aflitivo em toda esta situação é constatar que, entre 18 de Junho e 15 de Outubro nada, mas mesmo nada, foi feito para prevenir uma nova tragédia que globalmente contabiliza mais de cem mortos, pessoas que viviam entre nós e que desapareceram, vítimas da falência do Estado em todas as suas dimensões. A coberto de aguardar por um relatório o Governo ficou burocraticamente à espera que o tempo passasse e eventualmente fosse esquecido Pedrógão como um azar pontual mostrando que o Governo, no seu conjunto, não tinha aprendido nada com a tragédia de Junho.

As atitudes pessoais dos governantes durante os incêndios de Outubro, com o Primeiro Ministro à cabeça, vieram sobrepor-se à manifesta incapacidade do governo lidar com esta crise. A arrogância patenteada evidenciou a soberba e falta humildade de uma determinada classe política cujo poder ofusca a visão do país real que é Portugal.

Salvou-se o Presidente da República que, ao contrário daqueles, se juntou aos portugueses no seu imenso sofrimento e, a partir de Oliveira do Hospital, resolveu dar um murro na mesa da insensibilidade e incapacidade de tomada de decisões. Obrigado, Presidente Marcelo.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Os portugueses votaram, está escolhido



Passados que estão quinze dias sobre as eleições autárquicas, é já possível observar os respectivos resultados com algum distanciamento que permita uma abordagem fria dos números e de algum do seu significado político.

Há muito tempo que defendo que os eleitores fazem as suas opções eleitorais através de um conjunto de factores pessoais, numa simbiose de pura opção política com um sentimento de adesão afectiva a pessoas que se apresentam a escrutínio, mais ainda que a projectos. Este último factor é ainda mais visível e frequente nos casos de rejeição, do que nos de adesão. O paradigma nacional desta situação é o caso do PRD que, surgido do nada, obteve praticamente 19% nas eleições legislativas de 1985 que saíram do eleitorado habitual do PS. Aquele partido serviu apenas para cortar o vínculo afectivo ao PS daqueles eleitores, que ficaram “soltos” para votar em massa no PSD nas eleições seguintes em 1987, naquela que foi a primeira maioria absoluta de um partido desde 1974. É minha convicção que o PSD não receberia nunca aqueles votos, se antes não tivessem saído do PS para um receptor intermédio, dado que PS e PSD são os dois maiores partidos do nosso sistema político e, portanto, os maiores rivais entre si.

Nestas eleições autárquicas de Coimbra observou-se um fenómeno de transferências de votos com algumas semelhanças com aquela situação. Em minha opinião não é possível fazer uma análise coerente e sustentada de uns resultados eleitorais sem atender também aos resultados de eleições semelhantes anteriores, interessando mais olhar para os grandes números do que para o pormenor dos resultados a nível de freguesias. Irei aqui utilizar os resultados a partir de 2009, último ano em que o PSD ganhou a Câmara Municipal com Carlos Encarnação, a quem daqui saúdo.

Assim, em primeiro lugar, é evidente a grande estabilidade das votações no Partido Socialista: para a Câmara Municipal, que aqui servirá de referência em todos os números, em 2009 o PS, não vencendo, obteve 24.377 votos, em 2013 obteve 22.631 votos ganhando a Câmara e em 2017 teve 24.232 votos, vencendo de novo as eleições. Aproveito para aqui felicitar Manuel Machado pela sua nova vitória, extensiva a Carlos Cidade pelo seu trabalho político eficiente à frente do PS de Coimbra.

No que respeita aos resultados do Partido Social Democrata, deve-se fazer uma análise em conjunto com o Centro Democrático Social. Embora em 2013 não tenham ido coligados, utilizarei aqui a soma dos dois partidos nessas eleições, dado que nas restantes aqui abordadas houve coligação. Não refiro aqui os outros partidos dessas coligações que, pela sua reduzida dimensão, não alteram os resultados finais das votações tendo apenas um valor simbólico, ainda que possam ser importantes por isso mesmo. Nas eleições de 2009, a coligação PSD/CDS obteve 29.357 votos, ganhando a presidência da Câmara. Em 2013 a soma dos resultados do PSD e do CDS foi de 21.439 votos, o que significou uma perda de 7.919 votos relativamente a quatro anos antes. Nestas últimas eleições do passado dia 1 a coligação obteve 18.151 votos, numa significativa e algo surpreendente perda de 3.287 votos, comparando com 2013. Na realidade a coligação, desde a última eleição em que obteve a vitória, que foi em 2009, perdeu no total o apoio de 11.206 eleitores.

Como é evidente que aqueles votos não foram para o Partido Socialista que mantém uma grande estabilidade eleitoral há muitos anos, para algum lado haveriam de ir dado estarem “soltos” em termos eleitorais e não se verificar subida na abstenção. O surgimento de uma nova alternativa corporizada pela candidatura “Somos Coimbra” encabeçada por José Manuel Silva veio proporcionar àqueles eleitores a possibilidade de fazerem a sua escolha sem regressarem ao PSD/CDS, nem se voltarem para o PS. O resultado da candidatura Somos Coimbra foi de 10.976 votos, o que corresponde, com uma aproximação impressionante, ao número de eleitores perdidos pelo PSD/CDS nos últimos anos (11.206). São cerca de 11.000 eleitores que passaram directamente da coligação para uma proposta política surgida do nada, embora personificada em alguém bem conhecido e com uma afirmação própria evidente com o seu passado à frente da Ordem dos Médicos, ainda por cima numa cidade em que a área da saúde tem a relevância que todos conhecemos.

Ao contrário do que muitos pensarão, não me parece que, hoje em dia, as campanhas eleitorais tenham uma grande influência nos resultados eleitorais, por maior voluntarismo que evidenciem. Evidentemente têm que ser feitas, se possível com o mínimo de custos possível, mas pouco alteram no sentir dos leitores que é formado ao longo de quatro anos na observação do exercício das responsabilidades políticas dos eleitos, quer os escolhidos para governar, quer os que têm que fazer oposição. E aqui, permitam-me que o diga, os partidos de oposição não podem restringir a sua acção política à comparência nas sessões do executivo municipal, apenas esperando pelas novas eleições. Quando tal sucede, em vez de exercerem um trabalho político permanente e construtivo junto das pessoas e dos seus problemas, perdem o contacto directo com a sociedade com óbvias consequências, também a nível eleitoral.

Quanto aos partidos mais à esquerda, não haverá muito a dizer, a não ser constatar a descida eleitoral, quer da CDU/PCP que perdeu quase 1.500 votos mantendo ainda assim o seu vereador, quer dos Cidadãos por Coimbra desta vez mais conotados com o BE que perderam 1.100 eleitores não conseguindo entrar no executivo municipal.

Publicado no Diário de Coimbra em 16 de Outubro de 2016