É uma evidência
que salta aos nossos olhos: os regimes democráticos, tal como os conhecemos,
passam por transformações profundas que poderão mesmo vir a colocá-los em
questão.
Não me refiro a
aspectos pontuais em que políticos mais ou menos conspícuos se servem de
mentiras camufladas ou mesmo descaradas para justificarem as suas actuações.
Tal sempre houve em todas as sociedades e, perdoe-se-me o pessimismo, sempre
haverá. Tal como é de todos os tempos a capacidade de dizer mal dos
adversários, inventando mesmo mentiras sobre eles.
Mas os regimes
democráticos têm como substância a possibilidade de o povo escolher entre as
diversas opções que lhe são propostas na altura das eleições. As campanhas com
os programas e os candidatos permitem aos eleitores perceber quem lhes convém,
de acordo com os seus interesses. Estes até poderão ser diferentes entre os
mais diversos sectores sociais, e são-no normalmente, permitindo o resultado
global atribuir as funções governativas da comunidade como um todo às maiorias
que se possam constituir ou ao candidato que recolher mais votos, no caso de
candidaturas individuais.
Contudo, nos
últimos anos assiste-se, um pouco por todo o mundo, a uma mudança neste
paradigma democrático que está a produzir resultados inesperados e a causar
espanto em quem não percebe o que se passa e que, na realidade, é tantas vezes
responsável pela mudança. As razões poderão ser muitas, desde o fim do mundo bipolar
em que duas potências dominavam completamente as suas respectivas áreas de
influência até à globalização, passando pelas profundas mudanças trazidas pela
tecnologia da informação. O que é visível é uma crescente fuga dos eleitorados
para os extremos políticos, abandonando um centrismo que é sempre algo
conservador e que, pelo menos na minha opinião, durante décadas foi gerador de
uma prosperidade generalizada sem paralelo na História.
A sociedade passou
a dividir-se entre bons e maus, para além das clássicas diferenças entre
esquerdas e direitas. Perante as mais diversas situações, criam-se ondas de
indignação e campanhas mediáticas instantâneas que a internet se encarrega de
transformar em manifestações à escala global. E ninguém tem capacidade para
colocar os factos que deram origem a essas ondas de indignação em questão
porque ninguém quer ficar do “lado dos maus”, abandonando-se a razão e mesmo o
bom-senso. A sociedade mundial é hoje, mais do que uma sociedade da informação,
uma sociedade da indignação. O “somos todos Charlie” ou “me-too” são apenas
exemplos dessas vagas que tantas vezes acabam por engolir, levar na frente e
destruir os próprios que lhes deram origem.
E tudo isto se transferiu
para as democracias. Vimos este fenómeno nos Estados Unidos da América nas
últimas eleições presidenciais e também no referendo do Reino Unido que deu
origem ao Brexit. Nas eleições presidenciais no Brasil a demonização do
adversário atinge níveis nunca vistos. Chega-se a afirmar que não interessa
quem está com quem e o que fez, mas sim impedir que o adversário vença, e não
estou aqui a defender ou atacar seja quem for em concreto, mas apenas a descrever
o que se passa, como exemplo das mudanças a que assistimos em todo o mundo.
As discussões
políticas transferiram-se do campo das ideias para o campo da moral, em que
sistematicamente cada lado extremado se arroga de superioridade nessa matéria.
Como sabemos da História, sempre que alguém, de esquerda ou de direita, se
arroga de superioridade moral e chega ao poder, quem fica a perder é a
Liberdade.
Os resultados
estão à vista e não são animadores para quem acredita no valor da Democracia.
Quem sai sistematicamente vencedor destas lutas são populistas que defendem
velhas ideias que ressumam nacionalismos, xenofobias e mesmo racismos,
aproveitando-se oportunisticamente dos medos que eles próprios fomentam e a
tecnologia difunde. Num futuro próximo, estes vencedores até poderão dar a
ideia de que continuam a respeitar os cânones democráticos mas, na realidade,
os regimes aproximar-se-ão cada vez mais de fachadas normalizadas de sistemas
destruidores da cidadania e da liberdade.