segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

«POESIA É MAIS SABOR QUE SABER»


Há alturas em que revisitar o passado nos oferece, não só a possibilidade de trazer à tona factos e personagens históricas que nos podem apontar caminhos de dignidade e progresso, mas também relembrar como a mentira e a traição constituem parte integrante da vida e tantas vezes elas próprias moldam o futuro.
A descrição da vida de quase todas as figuras históricas ligadas a Coimbra chega até nós de uma forma em que o mito impregna a realidade de uma tal forma que se diria que esta se dissolve naquele, construindo uma figuração em que a pessoa concreta que a originou provavelmente se reveria com dificuldade.
O Duque de Coimbra Dom Pedro foi vítima de manipulações, mentiras e traições quer em vida, quer depois de morto, através dos textos que os cronistas oficiais sobre ele deixaram escritos. A exaltação do rei D. Afonso V passou, para Rui de Pina, pelo apoucamento de Dom Pedro, na senda de Gomes Eanes de Azurara.
A manipulação histórica foi tão profunda e tão eficaz que ainda hoje, se formos pelas nossas ruas perguntar quem foi Dom Pedro, a probabilidade de encontrar quem saiba alguma coisa sobre essa relevantíssima figura da nossa História, e em particular da de Coimbra, é praticamente nula. Não há na nossa cidade um monumento, uma instituição, algo que leve as pessoas a terem a curiosidade de se perguntar sobre quem foi. Na toponímia há um arruamento entre a Fonte da Cheira e a Rua dos Trabalhadores.
O facto é que Coimbra ainda hoje não se reencontrou com o Infante Dom Pedro, Duque de Coimbra. E no entanto…
Dom Pedro era filho do rei D. João I e de D. Filipa de Lencastre pertencendo, portanto, àquela a que Camões chamouÍnclita geração, altos Infantes". Na sequência da tomada de Ceuta, em 1415, foi um dos dois primeiros Duques portugueses, ele de Coimbra, e o irmão Dom Henrique, de Viseu.
Na infância, esteve na corte de Inglaterra onde aprendeu línguas, mas também tomou conhecimento de outros viveres e adquiriu uma cultura excepcional para um jovem português da época. Depois viajou pela Europa, tendo ficado conhecido como o «Príncipe das Sete Partidas». Ao seu irmão mais velho Dom Duarte que seria Rei, enviou em 1427 aquela que ficaria conhecida como «Carta de Bruges», com conselhos para a futura governação. Entre outras coisas, nela propunha que na Universidade de Lisboa fossem instituídos colégios à imitação dos de Oxford e de Paris, reconhecendo que os clérigos portugueses tinham uma instrução muito deficiente. Dava ainda conta a seu irmão do atraso português relativamente aos países mais evoluídos da Europa.

Enquanto foi regente do reino, após o falecimento de D. Duarte e até à maioridade de D. Afonso V, Dom Pedro promoveu a compilação das leis do Reino no que ficaria conhecido como «Ordenações Afonsinas», um verdadeiro código em cinco volumes, regulando a vida dos súbditos portugueses.
Com base no tratado de Séneca «De Beneficiis», Dom Pedro foi autor, a partir de certa altura com o seu padre confessor Frei João Verba, do livro “Da Virtuosa Benfeitoria” que muitos consideram ser o primeiro tratado de filosofia e política moral escrito em língua portuguesa. Dedicado a seu irmão D. Duarte e escrito por insistência deste, nele se dão indicações sobre a melhor conduta de um príncipe. No «Tratado da Virtuosa Benfeitoria» se distinguem os vários tipos de benefícios, como devem ser requeridos, como devem ser recebidos, as formas de agradecimento e como pode ser destruída a relação entre o autor e os destinatários dos benefícios.
Dom Pedro concebeu o projecto de uma universidade em Coimbra, sede do seu Ducado, tendo mesmo estabelecido os processos para o seu estabelecimento e financiamento, ideia abandonada após a sua morte.
Sobre a personagem fascinante de Dom Pedro que foi o primeiro Duque de Coimbra, príncipe da Idade Média com uma sensibilidade que lhe permitia afirmar que «POESIA É MAIS SABOR QUE SABER» e que morreu de forma traiçoeira e trágica na chamada batalha de Alfarrobeira em 20 de Maio de1448, aqui ficam apenas alguns apontamentos. São mais do que suficientes para mostrar o Príncipe das Sete Partidas como uma figura cimeira das mais cimeiras da História da Cultura da nossa Cidade.
Como de Coimbra, que se quer candidata a Capital Europeia da Cultura, continua a ser difícil extrair algo sobre o seu primeiro Duque, aqui se cita o PRANTO PELO INFANTE D. PEDRO DAS SETE PARTIDAS de Sophia de Mello Breyner Andersen:

Nunca choraremos bastante nem com pranto
assaz amargo e forte
aquele que fundou glória e grandeza
e recebeu em paga insulto e morte


Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 20 de Janeiro de 2020

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

A EPIFANIA DA ESQUERDA


Numa reunião de apresentação da proposta governamental do Orçamento Geral de Estado para 2020 ao partido Socialista, o ministro das Finanças Mário Centeno garantiu, por mais de uma vez, ser este OGE de esquerda. Ao contrário de muita gente, à direita e mesmo na comunicação social, eu dou toda a razão ao ministro das Finanças nesta sua observação.
As «contas certas», como agora o Primeiro-ministro não se cansa de dizer, são fundamentais para o funcionamento da economia e, essencialmente, para o pagamento da dívida pública que cresce nominalmente de cada vez que o Estado tem défice. Para a esquerda, trata-se de uma verdadeira descoberta e só podemos ficar satisfeitos com isso, já que deixa de ser apenas a direita a defender as «contas certas», passando as mesmas a ser uma base comum, o que só pode ser saudado pela própria direita ao ver a esquerda juntar-se a ela neste seu novo entendimento. Para não ir mais longe, todos nós nos recordamos de José Sócrates, ainda há poucos anos, defender que «a dívida pública não é para se pagar, é para se ir gerindo». Um proeminente político socialista, hoje ministro, chegou mesmo a declarar que «basta ameaçarmos não pagar, que as pernas dos banqueiros alemães até se lhes tremem». E atribui-se a outro político socialista, que foi presidente da República, a afirmação de que «há mais vida para além do défice», em que se resumia uma posição política de toda a esquerda naquela matéria que seria, precisamente, a que estabelecia a maior clivagem ideológica entre esquerda e direita portuguesas. Não será preciso mais para concluir que houve, portanto, uma alteração radical da posição da esquerda portuguesa sobre o significado do défice e da dívida pública. As razões profundas desta mudança crucial serão, eventualmente, conhecidas um dia, mas não deverão andar longe da imposição da realidade sobre a fantasia, muito pela participação na União Europeia e, em particular, pelas ambições de alguns políticos socialistas.
Digo epifania da esquerda, e não apenas do partido Socialista, por boas razões. Bem poderão o PCP e o BE soltar uns resmungos (chamam-lhes avisos) sobre a falta que os dinheiros para pagar a dívida fazem na falta de investimento público e na degradação da prestação dos serviços públicos, de cujo estado os portugueses começam, finalmente, a aperceber-se. Na realidade, andaram quatro anos a aprovar OGE’s cuja principal característica era precisamente fazer aproximar o défice de zero, a todo o custo. E no OGE para 2020 não deverá ser diferente, ainda que por abstenção, já que o objectivo será o mesmo: conseguir que o Orçamento seja aprovado.
Eis-nos, portanto, chegados, finalmente, ao primeiro OGE, depois do 25 de Abril, em que não se discute a necessidade de «contas certas». Demorou, mas chegámos. A partir daqui, já não se discutirá o défice zero ou mesmo excedente, mas partir-se-á desse ponto para depois se discutir o resto. E o resto são a qualidade da despesa pública e o montante e justiça dos impostos, isto é, a receita. Aqui, sim, entram as diferentes propostas da direita e da esquerda.
É nesta perspectiva que, pessoalmente, defendo que o ministro das Finanças tem toda a razão em considerar o OGE para 2020 como sendo de esquerda. A carga fiscal é altíssima, talvez a maior de sempre, já não se devendo tal apenas aos impostos indirectos que, como todos sabemos, são os socialmente mais injustos, mas também à subida do próprio IRS para as famílias. Bem pode a esquerda argumentar que não somos o país europeu com a carga fiscal mais elevada, porque o que as famílias sentem é a «pressão fiscal» que relaciona os impostos com o nível salarial e, aí, somos mesmo dos piores. Como é bem conhecido, se há matéria em que direitas e esquerdas divergem é precisamente nos impostos, com a direita a propor a sua diminuição e a esquerda a usar todos os argumentos para os manter ou aumentar. A outra diferença histórica entre direita e esquerda reside na despesa. À defesa pela direita da reestruturação do Estado para a reduzir, as tais reformas estruturais, a esquerda tem respondido sistematicamente que está a defender o «estado social». Também aqui o OGE 2020 é bem de esquerda.
Tal como na questão do défice e da necessidade de diminuição da dívida a esquerda se juntou à direita, resta aguardar que o faça noutras matérias essenciais para que o crescimento efectivo e sustentável de Portugal se torne numa realidade. 

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 13 de Janeiro de 2019

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

E TUDO O RIO LEVOU


Uma conversa que ouvi na rua na semana passada levou-me a escrever sobre o sucedido no baixo-Mondego, em consequência da passagem da tempestade Elsa nos dias 19 e 20 do passado mês de Dezembro. Nessa conversa aludia-se a que «quando se vai contra a Natureza, ela viga-se sempre». Trata-se de uma consideração que se ouve entre nós com frequência e que reflecte algum pessimismo crónico mas, sobretudo, uma aceitação de inevitabilidade de derrota do Homem perante a Natureza, com a consequência imediata de desculpabilizar eventuais responsabilidades. Esquece-se que toda e qualquer obra de Engenharia desafia a Natureza, ao criar ambientes artificiais que permitem ao Homem não só proteger-se de ambientes naturais agressivos, mas igualmente desenvolver tecnologias que permitem fabricar dispositivos para ultrapassar as leis naturais limitativas como a gravidade. As cidades, as estradas, as barragens, mas também os aviões, os automóveis, os telemóveis ou a internet são a prova diária disso mesmo, tal como o foi a ida do Homem à Lua. Claro que, daqui a uns 5 mil milhões de anos o Sol, a estrela que nos fornece a energia para existirmos, entrará em processo de expansão e posterior redução drástica até se tornar numa inofensiva anã branca. A vida na Terra terá terminado há muito com o aumento extremo da temperatura e o nosso planeta provavelmente vagueará morto pelo espaço. Mas isto é a uma escala de tempo que não nos diz nada a nós que aqui vivemos, hoje.
O chamado «empreendimento do Baixo Mondego» é uma obra pensada precisamente para defender os terrenos agrícolas dessa área contra as cheias do rio que, periodicamente, destruíam tudo com grandes prejuízos. É uma obra projectada e construída nos anos 70 e 80, constituída por diversas grandes obras hidráulicas: as barragens da Aguieira, Fronhas e Raiva e os diques de contenção do Baixo-Mondego. Também o Açude-Ponte fez parte desta obra enorme, criando um lençol de água permanente em Coimbra. 
Curiosamente, embora poucos conimbricenses o saibam, dele sai um canal dedicado apenas a fornecer água às celuloses da Figueira da Foz que, aliás, não permite que a cota de água desça abaixo de determinado valor. O projecto do «empreendimento do Baixo Mondego», contudo, não foi executado na sua totalidade. Por construir ficou a barragem de Girabolhos, necessária para o controlo das cheias. A sua construção foi iniciada mas, em 2016, o anterior governo decidiu pará-la e suspender o Plano de Barragens do governo Passos Coelho. Uma obra desta dimensão e com estas características necessita de duas coisas; manutenção e adaptação. A necessidade da manutenção é óbvia mas, como é tantas vezes habitual entre nós, não tem praticamente existido, não havendo sequer uma entidade específica com essa finalidade. Por exemplo, das seis bombas de extracção de água previstas, apenas uma funciona e os sifões de escoamento encontram-se sistematicamente entupidos com vegetação. Já a necessidade de adaptação deve-se a vários factores: as alterações climáticas que provocam regimes de chuva muito diferentes dos que se verificavam quando o projecto foi elaborado e que são agora mais gravosos com grandes picos de chuva intensa e períodos mais longos de estiagem; o número elevado de incêndios na área altera também gravosamente as condições hidrológicas, ajudando a aumentar as cargas no sistema.
E vieram os dois dias de chuva muito intensa na bacia hidrográfica do Mondego que provocaram caudais no Açude-Ponte, dizem-nos que de 2.400 m3 por segundo, quando o projecto previa um máximo de 2.000.
O inevitável sucedeu: as águas do Mondego tudo levaram na frente. Os diques do canal ficaram danificados a juzante do Açude-Ponte, logo a partir do Choupal e rebentaram mesmo em dois locais, provocando a invasão dos terrenos agrícolas pelas águas, com prejuízos económicos que ainda ninguém sabe contabilizar. Boa parte das areias retiradas do rio no último ano e que foram depositadas a juzante do Açude-Ponte pela Câmara Municipal de Coimbra sob indicação impositiva da (in?)competência técnica da Agência Portuguesa do Ambiente foi também levada pela águas, espalhando-se pelos terrenos agrícolas, ajudando aos prejuízos.
Mas houve algo mais levado pelas águas: a credibilidade de governantes e instituições. Desde logo a credibilidade do ministro do Ambiente que, perante o sucedido, não encontrou nada mais oportuno do que afirmar que as aldeias têm que mudar de local. Depois, o governo da «geringonça» que suspendeu a construção da barragem de Girabolhos; uma das suas personalidades mais representativas, quando a necessidade de acumular água para os verões secos é premente, chegou a afirmar que as barragens têm um problema, «a água evapora-se»! Apetece citar o meu colega e Prof. Catedrático de Hidráulica Alfeu Sá Marques que costuma dizer que «até os camelos sabem que, para atravessar o deserto, é preciso levar uma reserva de água». Por fim, todos os governos que, desde os anos oitenta, se mostraram incapazes de completar a obra e, em particular, de constituir uma entidade responsável pela exploração deste importante dispositivo económico da região.

Texto publicado originalmente no Diário de Coimbra em 6 de Janeiro de 2020

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

DA AVALIAÇÃO POLÍTICA


Quando se aproxima o fim de períodos de tempo como sejam anos, décadas ou séculos, é quase obrigatório fazer-se uma avaliação do que sucedeu ou do que foi conseguido. Mas há avaliações, particularmente de governantes, que só se tornam possíveis de fazer algum tempo depois da sua saída definitiva do poder. Os critérios para fazer essa avaliação variam também muito sendo quase sempre impossível encontrar unanimidades de opinião.
Apesar das diferenças de critérios, uma pergunta será fácil de responder para avaliar uma governação: o seu país ou o mundo, ficaram melhores ou piores à saída do poder, relativamente ao seu início de funções? Ou dito de outra forma, qual foi a herança que deixaram?
Félix Houphouët-Boigny foi o primeiro presidente da Costa do Marfim, tendo governado o país entre 1960 e 1993. Foi um presidente moderado, que conseguiu notáveis sucessos económicos para o seu país. A sua acção internacional, em particular em África, foi reconhecida, levando a que, em 1989, a UNESCO tivesse criado o Prémio pela Paz Félix Houphouët-Boigny. 
Contudo, a governação de Houphouët-Boigny teve igualmente aspectos que, no mínimo, se poderão considerar controversos. Transferiu a capital do país de Abidjan para a sua terra natal, Yamoussoukro, onde construiu um aeroporto capaz de receber o Concorde e erigiu a maior catedral do mundo, que custou 300 milhões de dólares. Construiu ainda um grande palácio presidencial rodeado por um lago artificial onde mandou colocar crocodilos. Como é natural, depois da sua morte em 1993, a capital voltou a ser Abidjan, tendo a anterior sido praticamente abandonada. O país regrediu económica e socialmente de forma acentuada e é, de novo, um dos países mais pobres de África. Mas houve algo de que toda a gente se esqueceu, os crocodilos do lago do antigo palácio presidencial, cujo número aumentou de uma forma assustadora, tendo invadido os cursos de água naturais da região. E é assim que, hoje, as pessoas não se podem aproximar de rios e ribeiras sob pena de serem atacadas pelos animais. A herança da governação de Félix Houphouët-Boigny, na terra em que nasceu, acaba por ser a praga de crocodilos perigosos.
Este pequeno exemplo serve para mostrar como a governação de alguém que foi no seu tempo tido como um exemplo foi atravessada por incongruências que, anos depois, acabaram numa herança negativa. Neste caso, para além de despesas sumptuárias dispensáveis, houve algo que falhou gravemente na governação: a falta de sustentabilidade do desenvolvimento económico. A única herança que é sentida actualmente é mesmo o perigo que os crocodilos representam para a população.
E entre nós? Qual a herança deixada por cada um dos responsáveis políticos que temos escolhido em eleições? Desde os diferentes presidentes de Câmara até aos primeiros-ministros e presidentes da República, quais foram os legados que nos deixaram com as suas governações? No caso dos presidentes da República as suas eleições são pessoais, pelo que as responsabilidades das suas actuações também o são, sendo fácil apreciar os legados políticos de Eanes, Soares, Sampaio, Cavaco e, daqui a uns anos, Marcelo. Já quanto aos outros governantes, locais e nacionais, foram escolhidos através dos resultados eleitorais dos partidos que os indicaram para tal. 
Por mais personificadas que sejam as suas actuações, não é possível separá-las dos respectivos partidos, em função do estabelecido constitucionalmente. Sendo assim, quais as heranças que Mendes Abreu, Moreira, Mendes Silva, Machado, Encarnação, Barbosa de Melo deixam para Coimbra e seus munícipes? Tal como Soares, Sá Carneiro, Balsemão, Cavaco, Guterres, Barroso, Santana, Sócrates, Passos, Costa nos governos PS e PSD. Será que algum nos deixou crocodilos, ainda que de forma simbólica? Depois de amanhã entramos num novo ano. Não nos fará mal, fora de campanhas eleitorais, fazer um pequeno esforço de memória e tentarmos proceder a uma avaliação do que a acção de todos estes governantes nos legou, deixando de lado o dia-a-dia e, se possível, as palas partidárias ou ideológicas que tantas vezes nos enviesam as perspectivas da realidade.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 30 de Dezembro de 2019