segunda-feira, 3 de agosto de 2020

OLHAR O FUTURO

A pandemia COVID 19 veio abalar a normalidade das vidas em todo o mundo e também entre nós e na Europa o que nos interessa sobremaneira. Em Portugal as alterações a nível económico e político ainda não são claramente visíveis, mas vão ser profundas. Até porque não será mais possível manter um sistema disfuncional e, porque não dizê-lo frontalmente, corrupto, que não nos deixa crescer até finalmente nos podermos considerar na média europeia, já que acima disso parece ser mesmo uma impossibilidade.

A União Europeia, finalmente, foi ao mercado financiar-se para entregar dinheiro aos estados membros em aflição por causa do coronavirus. Muita gente bateu palmas a esta atitude em que, pela primeira vez, a U.E. distribui dinheiro não proveniente dos orçamentos dos estados membros, não percebendo que se está a dar um passo gigantesco rumo ao federalismo que, se calhar, não querem. E que, neste momento, a União não tem um governo democrático eleito pelos cidadãos europeus, pelo que a regra universal das democracias de «no taxation without representation» não está a ser seguida na União, o que vai ter consequências.

Pelo menos as últimas duas dezenas de anos têm sido um desastre para Portugal. A vinda da troica em 2011 não caiu do céu aos trambolhões: foi consequência de opções políticas erradas, mas fundamentalmente da captura do Estado por inúmeras corporações. O que se passou com o BES, com a PT e o que se vai agora descobrindo, também com a EDP, significou uma capacidade de criar rendas para alguns à custa dos portugueses. A perda de valor com o BES e com a PT está a ser paga pela falta de crescimento da economia portuguesa, sistematicamente descapitalizada, apesar dos milhares de milhões vindos da União Europeia desviados pelo Estado do crescimento económico para financiar o seu funcionamento corrente, para o qual não chega uma carga fiscal gigantesca. As rendas das PPP rodoviárias que se mantêm, os CMEC (custos de manutenção de equilíbrio contratual) da electricidade, as garantias de preços das eólicas são alguns dos pesos que os portugueses e o resto da economia têm de suportar e que não os deixam levantar a cabeça. O que se passa agora com a venda de activos do Novo Banco é apenas o «resto» dos custos do BES, que o Estado resolveu assumir contratualmente de forma ínvia, para se livrar do problema. Tudo o resto que se discute é areia atirada para os olhos dos portugueses pela classe política, do governo à oposição.

Apesar de os líderes políticos, desde o presidente da República ao primeiro-Ministro passando pelos líderes da oposição, tudo fazerem para transmitir segurança provavelmente assustados com o que vão sabendo, na verdade a realidade, apenas colocada a nu mais cedo pela pandemia, vai-se impor a curto prazo de uma forma avassaladora e pouco restará do que tem sido a nossa «normalidade». Um sintoma disso mesmo foram as duas entrevistas a dois políticos socialistas fora do actual sistema, Francisco Assis e Sérgio Sousa Pinto que vieram neste momento agitar as águas políticas, mostrando que, muito provavelmente, o futuro do PS não passará nem por Pedro Nuno Santos nem por Fernando Medina, lídimos representantes do PS que nos trouxe até aqui. A mão dada por Rui Rio a Costa com a mudança dos debates parlamentares com o PM de quinzenais para de dois em dois meses é igualmente sinal de fragilidade perante as mudanças profundas que se anunciam. Que o desconforto comece dentro do partido do poder é perfeitamente normal, porque é o que, de momento, mais tem a perder.

A evidência de que não temos capacidade financeira para enfrentar as consequências da pandemia no produto, no desemprego e no desaparecimento de empresas surgiu patente na necessidade absoluta de mais transferências urgentes da União Europeia. O plano/catálogo apresentado por um consultor do Governo é uma lista de «desejos» a maior parte deles irrealizável, já que se os dinheiros europeus chegarem para recuperar da pandemia rapidamente já não será mau. Apresentar como salvação nacional uma relação de todos os projectos de investimento público que têm sido falados ao longo de dezenas de anos, a que se juntam alguns novos, de novo rentistas, como o hidrogénio verde, é pensar que a «normalidade» vai continuar e fechar os olhos perante a realidade. Ainda não perceberam, ou tentam desesperadamente evitá-lo, que o sistema de que têm vivido à custa do crescimento vai ser inevitavelmente desmantelado.

O passado e o presente deveriam fazer parar os responsáveis para tentar perceber o que nos trará o futuro. Tal não está a acontecer, estando os actuais políticos apenas a pensar no seu próprio futuro imediato, ainda que, de vez em quando, vão reconhecendo que esta é a maior crise desde o «crash da bolsa» de 1929, ou mesmo pior. Vão ser destroçados por uma realidade que se imporá sem contemplações e que não deixará pedra sobre pedra do actual sistema.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 3 de Agosto de 2020

sábado, 1 de agosto de 2020

Rentes de Carvalho explica o fascínio dos portugueses - DN

Rentes de Carvalho explica o fascínio dos portugueses - DN: Cresceu pelo quarto ano consecutivo o número de portugueses que foi viver para a Holanda. O escritor português José Rentes de Carvalho vive há décadas nesse país e não o trocava por nenhum outro.

sexta-feira, 31 de julho de 2020

«Karma is a bitch»

A ver o ministro Siza Vieira na RTP. A explicar o inexplicável. Até tenho pena dele. O governo tenta responder a uma crise que não provocou, mas que tem a responsabilidade de enfrentar. Tal como Passos Coelho em 2011. É assim a vida.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Alma portuguesa


Celebramos por estes dias «do tempo das cerejas» os cem anos do nascimento de uma das mais impressivas figuras da Cultura portuguesa do século XX. No início desta crónica devo fazer uma declaração de interesse, já que a minha admiração pessoal sobre Amália Rodrigues vem de muito novo, não tem limites e não assegurará uma opinião independente sobre a artista. Penso que todos temos este ou aquele artista, nas mais diversas áreas que, de forma algo instintiva, nos toca os sentidos de uma forma especial para a qual não precisamos de encontrar explicação. É o que me sucede com Bach ou Mahler na música, mas também com Caravaggio na pintura, ou Cardoso Pires na literatura. Tal como todos teremos artistas que nos tocam de forma negativa sem uma explicação imediata, reservando-me o direito de manter os meus na intimidade, por respeito para com eles e para com quem os aprecia, com todo o direito, igualmente. É por isso que a Arte está para lá do conhecimento e da própria racionalidade pura, tendo a capacidade de nos provocar e elevar os sentimentos a níveis superiores. Contrario igualmente uma ideia muito comum, segundo a qual o Artista bom é o que já morreu, que mostra uma incapacidade generalizada de entender as atitudes e forma de ser dos grandes artistas, tantas vezes desinseridos do modo comum de ser e viver, precisamente por o serem.
Amália Rodrigues não foi uma mulher comum. De uma inteligência e uma sensibilidade absolutamente fora do vulgar conseguiu, por si mesma, ultrapassar os estreitos limites do meio social onde nasceu, muito pobre, bem como do ambiente muito próprio em que o fado era praticado, de que o quadro de José Malhoa com esse título é um retrato bem expressivo.
Em 1935, com 15 anos, descarregava carvão no cais de Alcântara e vendia fruta, artesanato e souvenirs a turistas no Cais da Rocha. Mas já frequentava verbenas de fado com um tio, assustando as outras cantadeiras que lhe receavam as capacidades de canto que evidenciava. E aos 19 anos era fadista profissional e cabeça de cartaz no Retiro da Severa. Não foi preciso muito tempo para cantar em Madrid e depois no Brasil e, basicamente, em todo o mundo, incluindo Nova Iorque e Moscovo. Participa ainda em documentários e filmes como «Abril em Portugal» e «Les Amants du Tage». Tornou-se uma das melhores vozes do mundo e como tal era reconhecida, em Portugal e no Estrangeiro. Ela própria reconhecia que cantar apenas fado era redutor, pelo que o seu repertório ao vivo abrangia sempre outros géneros musicais, cantando em várias línguas. A sua sensibilidade cedo a levou a cantar poetas contemporâneos como Pedro Homem de Mello, David Mourão Ferreira, Alexandre O’Neil, José Régio, Manuel Alegre ou Ary dos Santos, entre outros. A partir de 1962 começou a cantar composições de Alain Oulman sobre poemas de todos aqueles autores incluindo, curiosamente, um tema da sua autoria que diz bem de si: «Estranha forma de vida». E em 1965 chocou as intelectualidades da época ao cantar Camões musicado por Oulman, recebendo críticas ácidas de José Gomes Ferreira e José Cardoso Pires, mas também da fadista Maria Teresa de Noronha. O disco «Com que voz» ficará sempre marcado a ouro na discografia portuguesa.

A seguir ao 25 de Abril Amália foi vítima de ataques por ser a figura cimeira do Fado, tido por alguns como um dos pilares do regime anterior, mas também acusada publicamente de ser protegida da PIDE ou mesmo sua informadora. Logo Amália, que com o seu espírito livre retirou o fado das catacumbas em que existia antes e tinha ajudado financeiramente, de forma discreta, alguns perseguidos ligados ao PCP através de amigos. Sabe-se hoje que foi mesmo investigada pela polícia política que só não lhe tocou por receio das consequências, pela sua notoriedade.
A alma portuguesa, se existe, encontrou em Amália um exemplo, a todos os títulos. Mulher independente e capaz de ultrapassar todos os obstáculos afirmando-se pela sua personalidade, mas com uma óbvia necessidade de ser amada pelo seu público. Atingiu um estatuto de diva a nível internacional, mas nunca quis deixar o povo a que pertencia e a que se ligava afectivamente. A alma portuguesa tem também zonas escuras e por isso ela foi vítima de hipocrisia, falsidade e inveja de uma forma que a afectou para o resto da vida.
Os seus restos mortais encontram-se desde 2001 no Panteão Nacional, espera-se que para sempre e, muito sinceramente, não vejo ninguém que mereça mais essa homenagem do que ela.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 27 de Julho de 2020