Celebramos por estes
dias «do tempo das cerejas» os cem anos do nascimento de uma das mais
impressivas figuras da Cultura portuguesa do século XX. No início desta crónica
devo fazer uma declaração de interesse, já que a minha admiração pessoal sobre
Amália Rodrigues vem de muito novo, não tem limites e não assegurará uma
opinião independente sobre a artista. Penso que todos temos este ou aquele artista,
nas mais diversas áreas que, de forma algo instintiva, nos toca os sentidos de
uma forma especial para a qual não precisamos de encontrar explicação. É o que
me sucede com Bach ou Mahler na música, mas também com Caravaggio na pintura,
ou Cardoso Pires na literatura. Tal como todos teremos artistas que nos tocam
de forma negativa sem uma explicação imediata, reservando-me o direito de
manter os meus na intimidade, por respeito para com eles e para com quem os
aprecia, com todo o direito, igualmente. É por isso que a Arte está para lá do
conhecimento e da própria racionalidade pura, tendo a capacidade de nos
provocar e elevar os sentimentos a níveis superiores. Contrario igualmente uma
ideia muito comum, segundo a qual o Artista bom é o que já morreu, que mostra
uma incapacidade generalizada de entender as atitudes e forma de ser dos
grandes artistas, tantas vezes desinseridos do modo comum de ser e viver,
precisamente por o serem.
Amália Rodrigues
não foi uma mulher comum. De uma inteligência e uma sensibilidade absolutamente
fora do vulgar conseguiu, por si mesma, ultrapassar os estreitos limites do
meio social onde nasceu, muito pobre, bem como do ambiente muito próprio em que
o fado era praticado, de que o quadro de José Malhoa com esse título é um retrato
bem expressivo.
Em 1935, com 15
anos, descarregava carvão no cais de Alcântara e vendia fruta, artesanato e
souvenirs a turistas no Cais da Rocha. Mas já frequentava verbenas de fado com
um tio, assustando as outras cantadeiras que lhe receavam as capacidades de
canto que evidenciava. E aos 19 anos era fadista profissional e cabeça de
cartaz no Retiro da Severa. Não foi preciso muito tempo para cantar em Madrid e
depois no Brasil e, basicamente, em todo o mundo, incluindo Nova Iorque e
Moscovo. Participa ainda em documentários e filmes como «Abril em Portugal» e
«Les Amants du Tage». Tornou-se uma das melhores vozes do mundo e como tal era
reconhecida, em Portugal e no Estrangeiro. Ela própria reconhecia que cantar
apenas fado era redutor, pelo que o seu repertório ao vivo abrangia sempre
outros géneros musicais, cantando em várias línguas. A sua sensibilidade cedo a
levou a cantar poetas contemporâneos como Pedro Homem de Mello, David Mourão
Ferreira, Alexandre O’Neil, José Régio, Manuel Alegre ou Ary dos Santos, entre
outros. A partir de 1962 começou a cantar composições de Alain Oulman sobre
poemas de todos aqueles autores incluindo, curiosamente, um tema da sua autoria
que diz bem de si: «Estranha forma de vida». E em 1965 chocou as
intelectualidades da época ao cantar Camões musicado por Oulman, recebendo
críticas ácidas de José Gomes Ferreira e José Cardoso Pires, mas também da
fadista Maria Teresa de Noronha. O disco «Com que voz» ficará sempre marcado a
ouro na discografia portuguesa.
A seguir ao 25 de
Abril Amália foi vítima de ataques por ser a figura cimeira do Fado, tido por
alguns como um dos pilares do regime anterior, mas também acusada publicamente
de ser protegida da PIDE ou mesmo sua informadora. Logo Amália, que com o seu
espírito livre retirou o fado das catacumbas em que existia antes e tinha
ajudado financeiramente, de forma discreta, alguns perseguidos ligados ao PCP
através de amigos. Sabe-se hoje que foi mesmo investigada pela polícia política
que só não lhe tocou por receio das consequências, pela sua notoriedade.
A alma portuguesa,
se existe, encontrou em Amália um exemplo, a todos os títulos. Mulher
independente e capaz de ultrapassar todos os obstáculos afirmando-se pela sua
personalidade, mas com uma óbvia necessidade de ser amada pelo seu público.
Atingiu um estatuto de diva a nível internacional, mas nunca quis deixar o povo
a que pertencia e a que se ligava afectivamente. A alma portuguesa tem também
zonas escuras e por isso ela foi vítima de hipocrisia, falsidade e inveja de
uma forma que a afectou para o resto da vida.
Os seus restos
mortais encontram-se desde 2001 no Panteão Nacional, espera-se que para sempre
e, muito sinceramente, não vejo ninguém que mereça mais essa homenagem do que
ela.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 27 de Julho de 2020
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