segunda-feira, 27 de julho de 2020

Alma portuguesa


Celebramos por estes dias «do tempo das cerejas» os cem anos do nascimento de uma das mais impressivas figuras da Cultura portuguesa do século XX. No início desta crónica devo fazer uma declaração de interesse, já que a minha admiração pessoal sobre Amália Rodrigues vem de muito novo, não tem limites e não assegurará uma opinião independente sobre a artista. Penso que todos temos este ou aquele artista, nas mais diversas áreas que, de forma algo instintiva, nos toca os sentidos de uma forma especial para a qual não precisamos de encontrar explicação. É o que me sucede com Bach ou Mahler na música, mas também com Caravaggio na pintura, ou Cardoso Pires na literatura. Tal como todos teremos artistas que nos tocam de forma negativa sem uma explicação imediata, reservando-me o direito de manter os meus na intimidade, por respeito para com eles e para com quem os aprecia, com todo o direito, igualmente. É por isso que a Arte está para lá do conhecimento e da própria racionalidade pura, tendo a capacidade de nos provocar e elevar os sentimentos a níveis superiores. Contrario igualmente uma ideia muito comum, segundo a qual o Artista bom é o que já morreu, que mostra uma incapacidade generalizada de entender as atitudes e forma de ser dos grandes artistas, tantas vezes desinseridos do modo comum de ser e viver, precisamente por o serem.
Amália Rodrigues não foi uma mulher comum. De uma inteligência e uma sensibilidade absolutamente fora do vulgar conseguiu, por si mesma, ultrapassar os estreitos limites do meio social onde nasceu, muito pobre, bem como do ambiente muito próprio em que o fado era praticado, de que o quadro de José Malhoa com esse título é um retrato bem expressivo.
Em 1935, com 15 anos, descarregava carvão no cais de Alcântara e vendia fruta, artesanato e souvenirs a turistas no Cais da Rocha. Mas já frequentava verbenas de fado com um tio, assustando as outras cantadeiras que lhe receavam as capacidades de canto que evidenciava. E aos 19 anos era fadista profissional e cabeça de cartaz no Retiro da Severa. Não foi preciso muito tempo para cantar em Madrid e depois no Brasil e, basicamente, em todo o mundo, incluindo Nova Iorque e Moscovo. Participa ainda em documentários e filmes como «Abril em Portugal» e «Les Amants du Tage». Tornou-se uma das melhores vozes do mundo e como tal era reconhecida, em Portugal e no Estrangeiro. Ela própria reconhecia que cantar apenas fado era redutor, pelo que o seu repertório ao vivo abrangia sempre outros géneros musicais, cantando em várias línguas. A sua sensibilidade cedo a levou a cantar poetas contemporâneos como Pedro Homem de Mello, David Mourão Ferreira, Alexandre O’Neil, José Régio, Manuel Alegre ou Ary dos Santos, entre outros. A partir de 1962 começou a cantar composições de Alain Oulman sobre poemas de todos aqueles autores incluindo, curiosamente, um tema da sua autoria que diz bem de si: «Estranha forma de vida». E em 1965 chocou as intelectualidades da época ao cantar Camões musicado por Oulman, recebendo críticas ácidas de José Gomes Ferreira e José Cardoso Pires, mas também da fadista Maria Teresa de Noronha. O disco «Com que voz» ficará sempre marcado a ouro na discografia portuguesa.

A seguir ao 25 de Abril Amália foi vítima de ataques por ser a figura cimeira do Fado, tido por alguns como um dos pilares do regime anterior, mas também acusada publicamente de ser protegida da PIDE ou mesmo sua informadora. Logo Amália, que com o seu espírito livre retirou o fado das catacumbas em que existia antes e tinha ajudado financeiramente, de forma discreta, alguns perseguidos ligados ao PCP através de amigos. Sabe-se hoje que foi mesmo investigada pela polícia política que só não lhe tocou por receio das consequências, pela sua notoriedade.
A alma portuguesa, se existe, encontrou em Amália um exemplo, a todos os títulos. Mulher independente e capaz de ultrapassar todos os obstáculos afirmando-se pela sua personalidade, mas com uma óbvia necessidade de ser amada pelo seu público. Atingiu um estatuto de diva a nível internacional, mas nunca quis deixar o povo a que pertencia e a que se ligava afectivamente. A alma portuguesa tem também zonas escuras e por isso ela foi vítima de hipocrisia, falsidade e inveja de uma forma que a afectou para o resto da vida.
Os seus restos mortais encontram-se desde 2001 no Panteão Nacional, espera-se que para sempre e, muito sinceramente, não vejo ninguém que mereça mais essa homenagem do que ela.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 27 de Julho de 2020

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