A minha última crónica foi motivo
para diversas críticas (todas amáveis e bem vindas) sobre o aspecto concreto da
formação de governos por partidos que não foram os mais votados em eleições.
Não sendo constitucionalista, nem
sequer jurista, a minha visão sobre o assunto pode e terá, certamente, erros de
perspectiva técnico-jurídica, mas já aprendi há muitos anos que nestas matérias
é fácil suceder que o bom senso e a perspectiva do simples cidadão não fiquem a
perder às doutrinas jurídico-filosóficas.
Feita esta introdução e agradecendo
que me sejam relevados erros na matéria, explico as minhas razões para abordar
de novo o assunto, porque estou convencido de que tem repercussões na forma
como é entendida a democracia e no próprio funcionamento da sociedade. Até
porque uma nova normalidade substitui uma anterior, sem que entretanto tenha
havido alteração do contexto jurídico, seja constitucional, seja na lei
eleitoral comum.
Para melhor explicar o
raciocínio, não há como colocar um exemplo concreto que não andará longe da
realidade possível. Imagine-se que um partido obtém um resultado à volta dos
39%, próximo da maioria absoluta mas sem lá chegar, e que quatro dos outros
partidos andam todos à volta dos 10-12%. Podem estes juntar-se depois das
eleições e formar eles próprios governo, não interessando para o caso se são de
direita ou de esquerda. Será que há respeito pela vontade popular? Na minha
opinião, não há!
E, no entanto, Portugal entrou nesta
nova normalidade em 2015. Já não interessa quem vence as eleições, e sim que
maiorias se podem formar depois delas na Assembleia da República.
Esquece-se que a Democracia é
muito mais que aritmética. E que, para além da simples negociação de votos entre
os partidos nesta ou naquela matéria, há todo um formalismo respeitoso da
comunidade que, quando é abandonado, coloca a nu fragilidades e hipocrisias do sistema.
É para mim evidente que o simples somatório de votos na Assembleia não pode
substituir a convergência coerente de ideias e de programas, sob pena de o país
estagnar ou retroceder nos mais diversos domínios. Coloco aqui um pequeno
exemplo, mas bem significativo do que quero significar: pode a discussão de um
Orçamento Geral de Estado assemelhar-se a um “bar aberto”, como sucedeu nestas
últimas semanas com o OGE para 2021? Como se viu, poder pode, mas não devia.
Na Assembleia da República reside
um dos pilares fundamentais da Democracia. Mas como são escolhidos os Deputados
que a compõem? Não me refiro às eleições em que os cidadãos escolhem as listas
partidárias que lhes são propostas, mas antes, quais são os procedimentos
partidários para definição dessas listas? Durante as primeiras décadas que se
seguiram ao 25 de Abril, era evidente uma preocupação dos partidos em irem
procurar, nos seus quadros ou na sociedade, personalidades cuja capacidade
profissional ou pessoal os colocava acima da média garantindo, pelo menos, uma
consciência das consequências das opções tomadas. Do PCP ao CDS, podia-se discordar
das diversas posições, mas nos diferentes partidos havia quem soubesse
perfeitamente o que defendia, porquê e para quê, muito para além da mera
barganha de votos.
O sistema foi evoluindo e, em boa
verdade, numa direcção que não é a melhor, não se vendo quem esteja na
disposição de pretender alterar as coisas. Já se sabe que as organizações
concelhias dos partidos servem para aceder aos executivos municipais e as
distritais, por sua vez, às listas de deputados da Assembleia da República. Os
resultados não têm sido os melhores provocando um distanciamento entre os
eleitores e os seus representantes que é cada vez maior. O leitor consegue
identificar os deputados do seu círculo eleitoral? Provavelmente nem sabe os
nomes dos eleitos da lista em que votou!
Para piorar a situação, a
progressiva deslocação da população do interior para o litoral tem também, além
das outras, consequências eleitorais. Entre um deputado eleito em Lisboa e
outro e outro no interior, por exemplo Portalegre, pode existir uma diferença
de um para três em número de eleitores necessários para o eleger.
Mas qualquer alteração que se
possa imaginar para alterar esta situação, com método de Hondt modificado ou
através da criação de um círculo nacional, esbarra nos interesses imediatos dos
partidos.
Sendo o respeito pela vontade popular
expressa pelo voto a essência da democracia representativa, há outro aspecto
crucial a ter em conta: A CONFIANÇA. E a confiança tem de começar pelos
partidos, que têm de a merecer pela sua prática no poder e fora dele. Sob pena
de doenças graves se instalarem, como a abstenção e o populismo, como já é
visível entre nós.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 30 de Novembro de 2020