A imagem de marca de Donald Trump no seu programa televisivo antes de se candidatar à presidência dos EUA correspondia já à sua atitude perante os outros: os vencedores são os que não têm escrúpulos em rebaixar e passar por cima de quem for preciso para se sobreporem. Os outros, bem, esses são apenas os «loosers» que não merecem mais do que ser despedidos. Devo dizer que vi uma ou outra dessas cenas de passagem na televisão, a fazer zapping, já que me punham de imediato mal-disposto.
Claro que a eleição de Trump para Presidente dos EUA me deixou surpreendido, tal como a muita gente, mas percebi que, eventualmente, teria sucedido naquela eleição o mesmo que tem acontecido tantas vezes entre nós em eleições, particularmente nas presidenciais: vota-se mais contra alguém que já se conhece e se detesta, do que a favor da personalidade em quem se coloca a cruzinha à frente do nome, principalmente se for novidade e por isso merecer o benefício da dúvida.
Como Presidente, Trump foi exactamente aquilo que eu esperava dele; um típico homem de negócios de determinado tipo imobiliário especulativo, aquilo a que em Portugal sempre se chamou «pato bravo» fosse qual fosse a dimensão dos investimentos.
A visão a longo prazo, a construção de uma economia sustentável, a educação, a saúde, um bom relacionamento internacional enfim, aquilo a que normalmente se chama política não são assuntos que o preocupem. Mesmo os supostos «maravilhosos resultados» da sua política económica não resistem a uma análise mais cuidada e levaram um trambolhão imediato com a pandemia do Covid-19. Principalmente o respeito com os mais desfavorecidos é preocupação que nunca lhe assiste porque, lá está, não passam de «loosers».
Ao fim de quatro anos a não-reeleição tirou-lhe o brinquedo, expulsou-o da Casa Branca. Tornou-o naquilo que ele mais abomina: um «looser». E Trump entrou em estado de negação, não deixando de afirmar, no seu delírio, que venceu por muitos milhões e que as eleições foram uma fraude, enquanto perdia todos os processos que meteu em tribunal para tentar alterar os resultados.
Foi feio de se ver, mas não passaria de uma fantasia de menino mimado a quem tiraram a bola, se não tivesse convencido, com as suas diatribes, milhões de americanos, na maioria evidentemente bem-intencionados que acreditam nos seus presidentes. Ao lado destes deu palco a toda uma casta de gente, essa nada bem-intencionada, que se sentiu livre para dar largas aos sentimentos mais abjectos, ideologias fascizantes ou mesmo neo-nazis e comportamentos sociais absolutamente repugnantes e inaceitáveis social e criminalmente.
O resultado foi o que se viu na passada quarta-feira 6 de Janeiro, precisamente no dia marcado para que os representantes do povo americano procedessem à certificação dos resultados eleitorais. Uma multidão de dezenas de milhares de pessoas afluiu a Washington, cercou e invadiu o Capitólio, símbolo sagrado da Democracia americana e obrigou à suspensão dos trabalhos. O caos foi total, com a polícia do Capitólio a revelar-se incapaz de suster a invasão e a ter extrema dificuldade em proteger fisicamente congressistas e senadores. Os invasores, empunhando bandeiras americanas, bandeiras da antiga confederação, cartazes com foto de Trump e vestidos da maneira mais circense que se possa imaginar incluindo camisolas com o dístico «Auschwitz camp» derrubaram portas, partiram janelas, destruíram e roubaram material, violaram o próprio gabinete da presidente da Câmara dos Representantes, sentaram-se nas cadeiras dos deputados, etc, etc. etc.
Enquanto tudo isto sucedia, Trump ao pedir-lhes para irem para casa continuava a alimentar as supostas razões que levaram aquela gente a fazer o que estava a fazer e o caos só terminou quatro horas mais tarde, com o estabelecimento do recolher obrigatório e a chegada de milhares de polícias, deixando ainda cinco mortos a lamentar.