O título desta série de crónicas semanais iniciada há (já!) mais de dezasseis anos tenta sumarizar simultaneamente a sua justificação e o seu objectivo: observar e comentar a realidade nas suas diversas componentes, sem que o autor e responsável pela opinião expressa caia na tentação de se colocar de fora dela.
Há muitos anos que adquiri a noção clara de que os sentimentos não se restringem ao nível individual, antes repassando para os grupos de pessoas, seja em associações, seja em grupos maiores e mais indefinidos, com consequências que muitas vezes desafiam a própria racionalidade. O que acontece também na política. A escolha do voto é muitas vezes ditada por factores que pouco têm a ver com considerações ideológicas ou de interesse pessoal directo, sendo condicionada por emoções, tantas vezes exploradas pelos próprios políticos para influenciar as escolhas eleitorais. A fidelização do voto é uma das situações ditadas mais pelo sentimento do que pela escolha racional e isto não se aplica apenas aos militantes partidários, mas mesmo ao eleitorado em geral. A evidência desta situação verificou-se na década de 80, quando PSD e PS eram claramente os dois pólos políticos à direita e à esquerda, sem que o PS ainda se aliasse ao PCP, porque o ano de 1975 estava fresco na memória de todos. De qualquer forma, a escolha entre os dois maiores partidos estava muito consolidada e seria difícil a qualquer um deles retirar votos ao outro. O que sucedeu foi o surgimento de outro partido, promovido pelo presidente da República Ramalho Eanes, o PRD que, nas eleições de 85, essencialmente à custa do PS, obteve 18% contra 30% do PSD e 20% do PS. Nas eleições seguintes em 87, já com Cavaco Silva a liderar o PSD, este obteve 50,2%, o PS 22,2% e o PRD implodiu para 4,9%. Isto é, uma margem significativa do eleitorado habitual do PS mudou de voto para o PSD, mas com uma passagem temporária pelo PRD. Esta mudança nunca se verificaria directamente, tendo antes havido um corte sentimental que permitiu depois que esses votos ficassem livres para serem recolhidos pelo partido concorrente.
Um dos sentimentos potencialmente mais danosos para as pessoas individualmente consideradas é, sem sombra de dúvidas, o ressentimento. Pessoas que aturam ser maltratadas durante demasiado tempo, quando não conseguem manifestar raiva ou falar a tempo para resolver o problema têm muitas vezes manifestações súbitas doentias ou de uma violência quase irracional incompreensível para o tirano, próxima do foro psiquiátrico.
Se observarmos com atenção, os últimos dias foram a prova de que o ressentimento a nível colectivo também é possível e, eventualmente irrecuperável. É a explicação mais óbvia para uma situação tida por muitos à esquerda como incompreensível ou mesmo suicidária. O voto contra do Partido Comunista Português e do Bloco de Esquerda na votação do Orçamento de Estado para 2022 colocou de forma bombástica um fim à coligação informal que, desde as eleições de 2015, sustentavam o Governo socialista presidido por António Costa. E o próprio líder parlamentar do BE destapou nos últimos discursos anteriores à votação o estado de espírito dos ex-apoiantes do governo socialista. Pedro Filipe Soares foi cristalino ao afirmar que todos anos, desde 2015, o Governo apresentava orçamentos que eram aprovados pela esquerda parlamentar para depois não os executar, viciando os compromissos tomados. Lembrando outros tempos, diria que Costa piscava para a esquerda e virava para a direita assim cumprindo as regras da União Europeia a que, na verdade, está obrigado.
Foi assim que a austeridade não nos abandonou, embora mudando de face: impostos indirectos em vez de directos, cativações e travão nos investimentos públicos. Aliás, nada que à direita não se tivesse vindo a denunciar desde pelo menos 2018, embora a verificação da execução orçamental dos governos de António Costa seja difícil de fazer, dada a sua opacidade. Basta lembrar que desde 2019 que Portugal não tem lei de Execução Orçamental que deveria existir todos os anos. Podem procurar-se as explicações mais racionais ou de oportunismo político imediato para o afastamento radical da esquerda relativamente ao governo socialista mas é mais que evidente o ressentimento desse sector político cansado de fazer papel de enganado relativamente a uma governação de António Costa considerada como arbitrária e mesmo arrogante.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 1 de Novembro de 2021
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