Uma comissária europeia de que já esqueci o nome e deve ter pouco que fazer propôs recentemente algumas directrizes de linguagem que incluíam a substituição de “Natal” por “Festividades”. A dimensão das críticas levaram a que recuasse e retirasse essas propostas. Para já. O ataque às sociedades liberais em nome de “amanhãs que cantam” com fundamento na falaciosa, ainda que atraente para muita gente, teoria da “apropriação das mais valias” acabou em desastre um pouco por todo o mundo, com massacres, pobreza generalizada e desastres ambientais. Mas os seus antigos defensores, que também pretenderam eliminar o Natal, e os seus sucessores mais modernos continuam com esse ataque, agora mais insidioso, por praticado por dentro. A linguagem do “politicamente correcto” é uma das armas mais poderosas desse ataque.
Por agora, a força simbólica do Natal resistiu a esse ataque. Esse simbolismo desenvolveu-se com grande destaque e de várias maneiras ao longo dos séculos depois do nascimento de Jesus Cristo.
Um desses símbolos é a “Árvore de Natal”. Herdada provavelmente das religiões da antiguidade, incluindo dos romanos e egípcios, a colocação de árvores em templos e casas estaria ligada à prosperidade e fertilidade. No século VIII o bispo S. Bonifácio terá adoptado esse costume assim o transferindo para o cristianismo, mas só no sec. XIX se veio a espalhar por todo o mundo. Outro símbolo é o “Pai Natal” que surgiu na Alemanha inspirado em S. Nicolau, um arcebispo da Turquia conhecido pela sua grande generosidade. A utilização em publicidade no início do sec. XX levou o Pai Natal a todo o lado.
Mas o símbolo maior do Natal é o Presépio. Embora se tenham encontrado algumas pinturas murais representativas do nascimento de Jesus dos séculos III ou IV, o presépio como o conhecemos hoje foi uma criação de S. Francisco de Assis que, em 24 de Dezembro de 1223, criou o primeiro presépio da história do cristianismo teatralizado com figuras reais. Foi numa gruta na floresta de Grécio na Lácio, perto de Assis, que S. Francisco construiu o presépio, incluindo mesmo um boi e um burro, além de um casal seu amigo representando as figuras de Maria e José e um bebé, como Jesus, estabelecendo sem o imaginar então, o retrato da Natividade que duraria séculos, até hoje.
Ao celebrar um nascimento, como se costuma dizer, o Natal são sobretudo as crianças. Todos teremos memórias mais ou menos coincidentes dos natais da nossa primeira infância, que não andarão longe de largos encontros familiares e da alegria dos presentes, então bastante simples, no sapato deixado na noite da Consoada junto do presépio, ou na peúga junto da lareira. Lembro-me bem da partida que alguém me fazia colocando de noite o rei mago negro atrás dos outros dois, para eu de manhã o recolocar no meio. Fundamentalmente, o carinho de que todos nós éramos rodeados manteve-se para sempre na nossa memória pessoal como dos momentos de maior felicidade da infância. Lembranças de infância hoje dificilmente transmissíveis aos nossos filhos e, sobretudo, netos. Mas o Natal continua a ser delas, as crianças. Porque temos que tratar delas com o maior carinho possível, sabendo que um dia as suas memórias dos Natais de criança poderão fazer a diferença na forma de ver o mundo e os outros. Algo que a tal sra. Comissária europeia parece não perceber.
E, se as crianças sempre foram preciosas, hoje em Portugal são-no muito mais, não só por cada uma delas por si, mas também estatisticamente porque representam um futuro ameaçado. O inverno demográfico que atravessamos piora a cada ano que passa e a pandemia só veio piorar a situação. Estima-se que no ano que agora acaba, terão nascido menos de 80.000 crianças em Portugal numa média inferior a 800 bebés por mês, o número mais baixo de sempre. Desde há onze anos que nascem em Portugal menos de 100.000 crianças, sucessivamente a descer, tendo o nosso país um dos índices de fecundidade mais baixos da Europa, com o valor de 1,4 crianças por mulher fértil, sabendo-se que o equilíbrio se estabelece nos 2,1. Em simultâneo com um aumento do número de mortos, em particular devido ao COVID-19, esta descida do número de nascimentos significa que o saldo natural que já era negativo, está a agravar-se sendo a diferença entre nascimentos e mortes cada vez maior. Em época eleitoral, bom seria que os partidos dedicassem alguma atenção a este problema gravíssimo para o nosso futuro colectivo, mas até agora não vi que algum lhe dedicasse espaço.
Escrevo esta crónica um dia antes do Natal de 2021, mas vai ser lida na página do Diário de Coimbra no dia 27. Isto é, ainda posso em verdade desejar a todos os leitores um Feliz Natal, o que aproveito para fazer, ao mesmo tempo que exprimo votos de um bom ano de 2022, com saúde e vendo os desejos particulares tornarem-se realidade.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 27 de Dezembro de 2021
Imagens recolhidas na internet