O choque provocado pela exclusão da candidatura de Coimbra da lista final para a escolha da cidade portuguesa em 2027 é razão mais que suficiente para que o assunto seja abordado no espaço público da Cidade. Na realidade, se há matéria que mereça ser devidamente escalpelizada e discutida com alguma profundidade, mesmo com tomadas de posição discutíveis e que provoquem debate sério, e até polémica, é esta. Até porque, como alguém nos ensinou, «do pântano, não se sai a nado».
Quando, em sede de elaboração do programa eleitoral da candidatura autárquica do PSD, CDS e outros partidos, em Maio de 2017 os responsáveis pela coordenação do documento se debruçaram sobre a área cultural, de imediato surgiu como extremamente importante para a Cidade que fosse candidata a Cidade Capital Europeia da Cultura em 2027. Posso afirmar que esta situação, tal como as que se seguiram, se passaram como aqui descrevo, porque eu próprio e o Eng. João José Rebelo fomos os referidos coordenadores. Colocada a questão junto da candidatura, acertou-se em que o assunto era demasiado importante para ser objecto de partidarização, pelo que de imediato se tomaram duas iniciativas, para além de tomada de posição pública do então candidato Jaime Ramos: o envio de uma carta ao Ministro da Cultura manifestando desde logo a intenção de avançar com a candidatura de Coimbra a Capital Europeia da Cultura, em caso de vitória eleitoral em 1 de Outubro daquele ano e o envio de cartas às restantes candidaturas ao Município de Coimbra, vincando o carácter apartidário e unificador da organização da candidatura à capital europeia. A Câmara de então reagiu publicamente em 20 de Junho, afirmando que já estava a preparar a candidatura, sem nunca ter apresentado um único documento que o demonstrasse, nem identificado que funcionários estariam a tratar do caso. As conclusões ficam com cada um, mas o que deixo escrito, escrito fica, porque assim deve ser. Recordo ainda a triste cena do convite à autarquia de Leiria para uma candidatura comum, que teve a resposta merecida e mais não digo.
Após as eleições, o novo executivo municipal que era praticamente o mesmo de anteriormente, avançou então com a candidatura, designando um «grupo de trabalho» politicamente abrangente, constituído por personalidades com qualidades pessoais acima de qualquer dúvida, que fez certamente o melhor trabalho de que era capaz. Infelizmente, talvez devido ao excessivo peso de académicos, pareceu sempre que o referido grupo era elitista e se colocava um pouco num pedestal de conhecimento, com notória falta de entrosamento com as próprias instituições culturais da Cidade. Notada foi a estranha falta, desde o início até ao fim, de responsáveis profissionais a tempo inteiro a nível executivo e de comunicação, áreas absolutamente cruciais numa candidatura desta dimensão.
Permito-me recordar aqui que, no início do processo, houve uma sessão pública presencial de esclarecimento sobre a candidatura, uma das poucas que se verificaram, tendo eu próprio participado a vincar a necessidade de responder aos quesitos muito concretos do regulamento da candidatura. Cheguei ainda a propor que, na parte da dimensão europeia do projecto se usasse as numerosas e significativas ligações europeias do Infante D. Fernando, Duque de Coimbra, o das sete partidas. Foi-me respondido que sim, o Duque de Coimbra seria utilizado na proposta, o que na realidade nunca sucedeu.
Isto é, a candidatura de Coimbra foi resultado das escolhas e propostas do «grupo de trabalho». E sabia-se que «a candidatura de uma cidade a Capital europeia da Cultura seria avaliada através da estratégia a longo prazo, da dimensão europeia do projecto, do conteúdo cultural e artístico, da capacidade de execução, alcance de públicos e gestão». O júri internacional avaliou e comparou estes quesitos, um a um, atribuindo-lhes classificações parciais que depois, em conjunto, viriam a ditar a classificação das diferentes candidaturas. E assim a candidatura de Coimbra acabou por ser eliminada do lote de quatro que passaram à fase final, aguardando-se pelo relatório final do júri que permitirá perceber qual a sua real classificação.
Ao contrário do que alguns cidadãos, mesmo com responsabilidades políticas, vão escrevendo nos jornais, não foi a cidade de Coimbra com a sua História e pergaminhos próprios que foi preterida, pelo menos, para Aveiro, Braga, Évora e Ponta Delgada. Foi sim a candidatura que foi elaborada de forma infeliz, para não dizer mesmo incompetente, face às das outras cidades. E não, não foi uma espécie de sorteio que ditou o resultado, foi uma comparação criteriosa das várias candidaturas concretas. É triste ter que reconhecer isto, mas que sirva de lição para o futuro, para que Coimbra não volte a ser vítima de academismos obsoletos, nem de tentativas de golpes mágicos que são apenas truques que visam dar uma impressão de uma realidade que o não é, como os livros espectaculares por fora mas cujo conteúdo vem a revelar grandes fragilidades.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 21 de Março de 2022
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