António Arnaut considerava o Serviço Nacional de Saúde como sendo “a trave mestra da democracia”. E tinha evidentemente razão mal andando aqueles que de forma, para mim incompreensível, tantas vezes manifestam desrespeito quer pelo SNS, quer pelo que foi o responsável político pela Lei do Serviço Nacional de Saúde aprovada em 15 de Setembro de 1979. Não esquecendo Mário Mendes que tecnicamente lhe deu forma e conteúdo. Também mal andou então a direita, em particular o PSD que, por razões de pormenor, não lhe deu o seu aval, não sendo capaz de distinguir o essencial do assessório ficando para sempre com o ónus dessa opção política. Erro que logo depois foi ultrapassado, durante a governação da AD e do PSD em maioria absoluta, participando de forma decisiva na construção e desenvolvimento do SNS. Recordo apenas a criação das carreiras de enfermagem, médicas e das Administrações Regionais de Saúde, por exemplo, a que se adicionam os passos decisivos na Saúde Materno-Infantil.
O SNS, garantindo cuidados de saúde de qualidade a todos os portugueses independentemente da sua condição social ou económica, é fundamental para a segurança dos cidadãos e deve ser não só aceite como acarinhado pelas diversas forças políticas, seja qual for a sua orientação política.
Mas o nosso SNS está, obviamente, doente. Não interessa para aqui quem é o culpado disto ou daquilo, já que dizendo respeito a todos os portugueses, é matéria que deveria ser objecto de consenso e não de querelas ideológicas. A realidade com as suas consequências está infelizmente à vista de todos não sendo possível iludi-la por mais tempo.
O que se passou na semana passada em que um cidadão com noventa e três anos ficou seis horas numa maca dentro do Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, à espera de que o socorressem até morrer é bem a prova disso. Aos mais diversos níveis. Vou descartar a hipótese de ter sido preterido por doentes mais novos que ainda são contribuintes para o Estado a nível de segurança social em vez de beneficiários líquidos como ele era porque penso que ainda não chegámos a esse ponto. Por enquanto. O serviço de urgência do hospital estaria desfalcado a nível de pessoal, fosse médico da urgência ou da cirurgia. Não haveria também disponibilidade de transporte para outro hospital por parte de quem o deveria fazer. Tudo questões que se percebe não serem exclusivas daquele hospital, mas generalizadas por todo o país.
Acontece que aquele hospital é actualmente gerido pelo Estado, quando antes o era por privados em regime de PPP. E esta situação nunca aconteceria então, desde logo porque o Estado não o permitiria, o que deveria fazer pensar duas vezes quem ideologicamente se preocupa mais com quem presta os serviços de saúde pública do que com os respectivos utentes.
O grande crescimento da procura de serviços de saúde não foi acompanhado por uma correspondente adaptação do SNS, o que se veio a reflectir na falta de resposta adequada (de qualidade e em tempo útil) pelo que a confiança pública desceu. Em consequência, os doentes têm-se virado para a oferta privada, o que se vê no elevado número de seguros de saúde subscritos e na despesa com serviços de saúde privados que é já uma das maiores da Europa, situação tão mais grave quanto os nossos ordenados são dos mais baixos também na Europa. Nos últimos dias soube-se também da transferência de partos do SNS para as maternidades privadas com a mesma justificação, falta de confiança, situação incompreensível para quem se lembra do que se verificava há alguns anos, que era exactamente o oposto. Como se se tratasse de uma pescadinha de rabo na boca, outra consequência é o abandono do SNS por elevado número de médicos e enfermeiros. A resposta tem sido contratar empresas que fornecem horas de médicos no que constitui uma total inversão do que deve acontecer em cuidados de saúde, pela mercantilização de uma das actividades mais dignas da Humanidade.
A reforma do SNS é urgentíssima e nunca será constituída por uma soma de remendos pontuais ditados pela necessidade de correr a resolver situações urgentes. Exige capacidade de diálogo e vontade política de obter compromissos, para além de competência. O SNS é demasiado valioso para os portugueses para ser destruído à vista de todos.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 28 de Agosto de 2023
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