Estou convencido de que a invenção mais significativa da Humanidade foi a palavra. A palavra é a base da linguagem que, de forma apenas oral, ou escrita, nos permite comunicar ideias, conhecimento ou apenas factos acontecidos.
É através da palavra escrita, de que estas crónicas são um exemplo muito humilde, que se tornou possível a passagem de testemunho cultural entre gerações diferentes à medida que passam os anos.
Sendo a palavra o processo utilizado pelos políticos para convencerem os outros da justeza das suas propostas, a palavra é também a arma mais eficaz contra as ditaduras e a mentira institucionalizada. E é uma arma poderosa que se torna frequentemente temida pelos poderosos. Sócrates, que afirmava “saber que nada sabia” falava publicamente nas praças, questionando o conhecimento tido como verdade e levando os seus concidadãos gregos a questionarem-se sobre tudo. Acabou por ser acusado de corromper os jovens e levado a beber a cicuta, tornando-se um exemplo de virtude.
Mas a palavra pode ela mesma corromper a sociedade. Joseph Goebbels, o maior propagandista nazi, inflamava centenas de milhares de alemães com os seus discursos que continham as maiores barbaridades. Terá assim ajudado a criar um sentimento que se espalhou pela sociedade alemã e que explica em boa parte a sua aceitação de Hitler, do seu comportamento perante o Holocausto e da invasão e subjugação de quase toda a Europa.
Muitas das diversas linguagens que se desenvolveram na História acabaram por desaparecer e ser esquecidas acompanhando a sorte das respectivas civilizações. Por vezes há golpes de sorte e linguagens perdidas no tempo voltam ao nosso conhecimento. É o caso extraordinário da escrita hieroglífica egípcia, que só no séc. XIX foi possível ser decifrada devido a ter sido encontrada uma pedra com o mesmo texto legal escrito em três línguas diferentes: hieroglífico antigo, tardio e grego antigo. Uma espécie de tradutor abandonado para ser encontrado milhares de anos depois e fazer luz sobre a antiga linguagem.
Existem hoje mais de sete mil línguas diferentes. Na tradição bíblica aprendemos que o Homem quis chegar ao céu para o que começou a construir uma torre. Irritado com tal ambição, Deus colocou os homens a falar línguas diferentes para que não se entendessem e assim lhes fosse impossível continuarem com tal construção. Um pouco como no nosso Parlamento, há uma semana, quando apenas se pretendia escolher um presidente da mesa e as linguagens eram tão diferentes que os grupos de deputados não se conseguiam entender.
Mas, essencialmente, as palavras servem para unir e não separar. É pela palavra escrita que passamos mensagens duradouras e construímos cultura. A palavra é ainda um traço de união entre formas culturais. Um dos maiores músicos de todos os tempos teve o atrevimento de colocar as palavras de um poema numa sinfonia pela primeira vez e assim Beethoven abriu um caminho musical seguido por outros génios como Mahler ou Shostakovich.
A forma poética da linguagem abre caminhos novos tantas vezes inesperados e mostra as profundezas da sensibilidade dos autores. Os portugueses parecem ter há muito tempo uma especial predisposição para a poesia, pelo menos desde D. Dinis, e já nos inícios do sec. XV o Duque de Coimbra, D. Pedro, sabia que “poesia é mais sabor que saber”. Impressiona o número de livros de poesia que, só aqui em Coimbra, é publicado todos os anos por poetas, homens e mulheres. Talvez seja a própria língua portuguesa que, internamente, desenvolveu características que favorecem a linguagem poética. Para o provar, sublinho a simples palavra “luar”. Desafio os leitores a ler a palavra devagar, percebendo o que se passa no interior da sua boca ao fazê-lo e notando a musicalidade inerente. E não é que só os portugueses têm uma palavra própria para designar a luz da Lua?Por vezes o silêncio não deixa de ser de ouro, mas o normal é estarmos imersos em palavras. E, se a linguagem árida de um contrato nos traz apenas segurança, ler uma página de Camilo ou de Aquilino ou duas simples linhas de Sophia transmite-nos algo que nem todo o ouro do mundo poderia comprar.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 1 de Abril de 2024
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