Se há um mito persistente é sobre o que foi na realidade a Idade Média. Apesar das evidências e de muitos intelectuais como Umberto Eco na grande obra que coordenou sobre a Idade Média demonstrarem o contrário, é ainda generalizado o termo “idade das trevas” como definindo aquele período da História da Europa. É um facto adquirido que, quando aparece algo de novo, os seus agentes tentam, para se auto-promoverem, desfazer no que se passou anteriormente, construindo, como hoje se diz, a sua própria narrativa. Tentam, assim, construir a imagem favorável com que desejam ficar para o futuro contrapondo com um passado apresentado como muito pior, mesmo negro perante a luz que pretendem ter trazido. Assim aconteceu com o Renascimento e, fundamentalmente, o Iluminismo. Um dos aspectos que mais impressiona negativamente em relação à dita “idade das trevas” é o papel da mulher, descrito como sendo de inteira subjugação ao homem com a quase única função de assegurar descendência. E, no entanto…basta apreciar o papel de algumas mulheres desse período para se perceber que isso não pode, de maneira nenhuma, corresponder à realidade do que se passava. Mesmo em Portugal temos exemplos que provam isso, a começar pela Mãe do nosso primeiro Rei, continuando com a Rainha Santa Isabel Padroeira da nossa Cidade e ainda com a representante feminina da Ínclita Geração Isabel, Duquesa da Borgonha, tão injustamente esquecida pela História que nos têm contado e que tentarei apresentar na próxima semana.
Mas esta semana abordarei a vida intensa e de tal forma relevante de uma Mulher na Idade Média, que seria impossível que tivesse acontecido se aqueles tempos tivessem sido como nos tentam vender.
Leonor da Aquitânia, assim se chama a nossa heroína de hoje, passou para a História com uma má fama que, ainda hoje perdura, ou não se tivesse afirmado vigorosamente não apenas numa, mas em duas das coroas mais importantes da época, a francesa e a inglesa. Leonor nasceu em 1122, filha de Guilherme X, duque de Aquitânia, e de Leonor, viscondessa de Châtellerault. Os domínios do ducado, um dos mais importantes de França abrangiam, para além da Aquitânia, ainda Poitou, Gasconha, Limousin e Auvergne. Com a morte de seu avô e do seu pai, Leonor herdou os territórios do ducado aos 13 anos. Numa época em que os casamentos eram as mais das vezes contratos entre famílias e algumas vezes entre Estados em que os afectos não eram para ali chamados, tornou-se uma noiva apetecível e casou em 1137 com o futuro Rei Luís VII, tornando-se ela própria rainha consorte da França. Rainha consorte mas, eventualmente, sem sorte, já que a corte dos Capetos onde entrara estava muito longe dos hábitos culturais e sociais da sua própria corte da Aquitânia e a habituação da nova rainha não terá sido um grande sucesso.
Aquando da Segunda Cruzada, Luís VII decidiu participar, tendo partido com a sua mulher Leonor para a Terra Santa, como resposta aos levantamentos muçulmanos. A expedição veio a revelar-se um desastre militar, tendo também consequências na vida do casal a que se seguiu o divórcio real em Março de 1152, tendo as duas filhas do casal permanecido com o pai.
Leonor tinha 28 anos e recuperava o ducado da Aquitânia. Dois meses depois casou-se com Henrique de Anjou (Plantageneta) que, em 1153, atravessou o Canal da Mancha para se apoderar da coroa da Inglaterra, o que conseguiu dado que o rei de Inglaterra Estêvão de Blois era seu primo. Henrique e Leonor foram coroados na Catedral de Westminster em Dezembro de 1154. Leonor da Aquitânia era rainha pela segunda vez, agora em Inglaterra. Aqui teve oportunidade para exercer o seu amado mecenato cultural decisivo para o surgimento de nova literatura, através do apoio a artistas. Mas de novo surgiriam desavenças entre Leonor e o seu marido com consequências graves no seu relacionamento, só ultrapassadas pela morte de Henrique II em 1189, tendo Leonor sido mesmo presa. Para a sorte de Leonor foi crucial o apoio do seu filho, o célebre Ricardo Coração de Leão. Depois da morte de Ricardo, Leonor voltou ainda à acção para apoiar o seu filho João Sem Terra.
Leonor viria a morrer em 1204, com mais de oitenta anos, depois de uma vida cheia em que participou por inteiro na vida cultural, política e militar da Europa do seu tempo, tendo influenciado, para o bem e para o mal, as relações entre ingleses e franceses. Perante as maiores adversidades nunca deixou de querer influenciar o seu tempo através da sua vontade. Algo que, sendo mulher, de acordo com cronistas e muitos historiadores da Idade Média seria impossível de acontecer. Mas aconteceu mesmo.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 8 de Abril de 2024
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