segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

UM ANO QUE COMEÇA

 

A História ensina-nos que há momentos específicos em que uma descontinuidade súbita arrasta a sociedade para uma direcção completamente diversa da que fora seguida até então. Mas mesmo esses pontos de inflexão séria são consequência do percurso anterior, embora as forças que levam ao seu surgimento sejam muitas vezes pouco perceptíveis, tal como as correntes subaquáticas invisíveis à superfície que quando chegam à costa rebentam com uma força insuspeitável. De facto, quem olha para os movimentos sociais observando apenas a espuma superficial, é muitas vezes surpreendido pela violência de fracturas repentinas que se desenvolvem de forma quase espontânea e que tudo alteram em muito pouco tempo. Nunca me esqueci de, quando andava no liceu, estudar a Revolução Francesa e a suas causas imediatas e longínquas. Tal como a vida me proporcionou assistir ao vivo ao 25 de Abril que fundou o nosso regime democrático, algo de que a quase totalidade da população portuguesa não desconfiaria nos dias anteriores. Tratou-se de uma alteração profunda da realidade induzida por um determinado facto concreto, mas ampliada por condições profundas de cuja existência não se suspeitaria.

Serve tudo isto para justificar uma visão muito própria da realidade actual que é muito mais complexa do que a espuma dos telejornais, desde o “caso das gémeas” ao “vencimento do Rosalino”. A votação extraordinária do partido Chega, ao contrário do que se costuma dizer, não se deve a um “crescimento da direita”, já que não tem nada a ver com conservadorismo ou democracia cristã do centro-direita. É outra coisa que se deve a movimentos subterrâneos fortíssimos que se desenvolvem em todo o mundo de rejeição de um novo modelo capitalista que não proporciona um crescimento económico semelhante ao do sec. passado. Temos de perceber o que verdadeiramente significam o Brexit, a vitória de Trump, o surgimento de partidos como a AfD na Alemanha e outros pela Europa fora. Isto obriga a não “meter a cabeça na areia” relativamente aos verdadeiros problemas, mas não dando terreno ao populismo que se aproveita daquele fenómeno de ressentimento generalizado.

Em Portugal o ano de 2025 vai trazer eleições autárquicas, importantes para todos nós porque traduzem a escolha de quem dirige a “coisa pública” com proximidade. Que não nos deixemos embarcar em campeonatos de duração de “fogos de artifício” e que sejamos exigentes relativamente àquilo que verdadeiramente interessa ao futuro da Cidade são os meus votos.

Vamos igualmente assistir à preparação da eleição presidencial que acontecerá no início de 2026. Aliás, essa preparação já começou. E, mais uma vez, deveremos ter muita atenção aos movimentos sociais profundos que, vindos de vários lados, poderão desembocar nos resultados dessa eleição, para que depois não se venha com a conversa (e desculpa) da surpresa.

Para todos os leitores os meus votos de um bom ano de 2025 com saúde e com muita atenção ao que verdadeiramente interessa.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 6 de Janeiro de 2025

UM ANO QUE TERMINA

 

Nesta época de passagem de ano, cronista que se preze não pode fugir a fazer uma resenha comentada do ano que finda e uma previsão do que deverá acontecer no ano que está prestes a começar.

Fugindo um pouco à regra, dedicarei esta crónica apenas ao ano que vai e a próxima às expectativas para o que novo ano quem vem.

Em 2024 o mundo continuou na sua procura de uma nova ordem que se seguirá inevitavelmente ao caos internacional que se vive desde o fim da chamada Guerra Fria. Na realidade, a herdeira do que restou do império soviético, a Federação Russa, sob a presidência de Putin que tenta organizar a nova ordem mundial à sua maneira, no fundo tentando reconstruir o que desabou em 1991. enquanto tenta destruir a União Europeia seguindo a velha táctica de dividir para reinar. Mimetizando por completo as justificações de Hitler para invadir os países vizinhos, começou por atacar directamente a Ucrânia em Fevereiro de 2022 que, contra todas as expectativas, resistiu e continua heroicamente a resistir. Até quando não se sabe, porque a eleição de Donald Trump para a presidência dos EUA trouxe interrogações sobre a continuação do necessário apoio de armamento à Ucrânia.

Ao ataque terrorista do Hamas em Outubro de 2023 Israel respondeu com a destruição da Faixa de Gaza que continua e já fez dezenas de milhares de vítimas inocentes e muitos mais refugiados. A seguir Israel virou-se para o Hezbollah no Líbano que decapitou enquanto anulava grande parte da sua capacidade ofensiva. Como consequência, o regime Sírio de Bashar al-Assad caiu não se sabendo ainda que rumo irá seguir.

Perto do fim do ano foi a vez de o caos atingir Moçambique, nosso país irmão, onde a realização de eleições por muitos consideradas fraudulentas deu origem a tumultos que ainda continuam havendo já pilhagens generalizadas e centenas de mortos a registar.

Na nossa União Europeia verificaram-se problemas económicos graves, nomeadamente na Alemanha e em França, em paralelo com desinteligências graves entre países, em boa parte consequência das intervenções mais ou menos subterrâneas de Putin.

Entre nós, à maioria absoluta do PS com António Costa sucedeu uma AR sem maioria, com uma vitória mínima da AD que formou governo e um Chega que cresceu até eleger 50 deputados. A discussão sobre o Orçamento de Estado para 2025, em vez de negociação séria, mais pareceu uma encenação de fraca qualidade e mau gosto. Foi notória a inexistência de vontade de ir para eleições por parte de todos os partidos da oposição, por diferentes razões. Portugal passa por uma certa estabilidade que mais parece uma paz (política) podre que, no entanto, corta cerce toda e qualquer vontade que possa existir para introduzir as reformas fundamentais que todos sentem ser necessárias, mas certamente impopulares em termos eleitorais.

Sente-se que 2024 foi um ano de transição, mas não se percebe ainda para onde, quer em Portugal, quer no resto do mundo.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 30 de Dezembro de 2024

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

NATAL

 


Estamos na época do ano que, à primeira vista, se reveste de mais aspectos incongruentes. Numa data que foi definida há 17 séculos pela Igreja, celebra-se o nascimento de Jesus Cristo em 25 de Dezembro, assim integrando o cristianismo no seu seio as festas que desde há muito acompanhavam o solistício do Inverno.

Mateus e Lucas são os dois únicos evangelistas que relatam o nascimento de Jesus, cada um deles referindo aspectos diferentes que, em conjunto, definiram a tradição cristã do Natal. Enquanto Mateus se debruça sobre a genealogia de Jesus, a visita dos Reis Magos do Oriente e o massacre dos inocentes ordenado por Herodes, Lucas dá-nos um relato mais circunstanciado, referindo a anunciação, a viagem de Maria e José a Belém, o nascimento numa manjedoura e a visita dos pastores. As sucessivas traduções da Bíblia para as línguas actuais terá dado origem a muitos erros, actualmente a serem corrigidos, nomeadamente por Frederico Lourenço que, ao traduzir directamente do Grego, nos oferece toda uma nova perspectiva sobre aqueles tempos de há vinte séculos.

No início do século XIII S. Francisco de Assis, qual percursor das modernas teorias do relacionamento com a Natureza, referia-se a todos os animais como seus irmãos. Em consequência, criou a representação do Presépio que ficou estabelecida como paradigma até hoje, assim aparecendo o burro e a vaca, além do rebanho de ovelhas.

No sec. XVI surgiu a árvore de Natal no Norte da Europa, tendo-se difundido a tradição a partir do sec. XIX decorando-se a árvore com luzes e enfeites.

A tradição de simbolizar o Natal assumiu, assim, diversas formas ao longo dos tempos e em diferentes geografias. A força do Natal é de tal forma que, mesmo durante guerras terríveis, os soldados espontaneamente suspendiam os combates e chegavam a confraternizar com o inimigo durante essas horas, para depois retomar a carnificina, como aconteceu nas trincheiras da Grande Guerra 1914/18.

Nos nossos dias em que o consumismo atingiu níveis impensáveis, o espírito natalício que se consubstancia na oferta tradicional de presentes aos mais pequenos e outros familiares é muito utilizado como meio de publicidade que chega a exageros notórios. É o que sucede com os anúncios televisivos com o caso notório dos perfumes que chegam a patamares ridículos.

Pessoalmente, a época traz-me memórias de natais da meninice passados na Sertã em casa da Avó. Os presentes eram simples. Mas as ceias e almoços de Natal são inesquecíveis. O bucho e os maranhos preparados em casa pela Sra. Gracinda depois de lavadas as vísceras nas águas limpas e gélidas da Ribeira da Sertã para sempre ficaram na memória. Tal como ficaram as idas à Missa do Galo, atravessando no nevoeiro as velhas quelhas e a Rua do Vale com o frio a gelar as mãos e os pés a escorregar nas velhas pedras molhadas. Exteriormente, hoje tudo parece diferente de há mais de 60 anos. Na verdade, a essência é a mesma. Intemporal.

O Natal é efeito de todos estes aspectos. Mas o fundamental é a mensagem de Paz e Harmonia que é transmitida pelo acontecimento celebrado que a tudo se sobrepõe. Aos leitores do Diário de Coimbra e aos colaboradores do jornal que todos os dias permitem que nos venha às mãos com notícias os meus votos de Boas Festas com um Bom Natal e um excelente Ano de 2025.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 23 de Dezembro de 2024

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

NÃO ACEITAR A POBREZA

 

A existência de pobreza é algo de que todos nós nos devíamos envergonhar. Felizmente, tenho a sensação de que é um problema que é abordado cada vez mais frequentemente na comunicação social e não apenas em determinadas épocas do ano ou quando sucede algum caso mais trágico. A consciência social deste problema é cada vez maior, o que já é um dado positivo, apesar de ser muitas vezes abordado sem atender às suas causas profundas.

Os dados estatísticos oficiais indicam-nos que, em 2023, a pobreza sofreu uma redução em Portugal, com menos 20 mil pobres do que no ano anterior. Sabendo-se, embora, que as estatísticas oficiais nesta matéria são muito enganadoras porque se baseiam em alojamentos familiares assim deixando toda uma multidão de fora, tal deverá ser visto como uma evolução positiva.

Os índices sobre a pobreza em Portugal, no seu conjunto, indicam-nos que a situação, embora esteja a melhorar, é ainda um problema muito grave. O número de portugueses abaixo do limiar da pobreza coloca-nos no 18º lugar nos 27 países da União Europeia. Portugal continua a ter 24% da população a viver abaixo do limiar de €738 por mês, num total de 2,56 milhões de pessoas. Na Europa, atrás de nós estão apenas aqueles países que até à última década do sec. XX eram comunistas.

Em jeito de resumo, a privação material e social medida pela população sem capacidade para ter uma refeição de carne ou peixe de 2 em 2 dias coloca-nos em 25% lugar em 27. Em Portugal, há centenas de milhares de pessoas que não conseguem ter uma alimentação capaz, nisso se incluindo muitas crianças. A acrescentar a tudo isto, como é habitual nestas situações de pobreza, o coeficiente de GINI que reflecte as desigualdades de rendimentos é, em Portugal, de 31,9 em 100, o que nos coloca em 4º lugar nos 27.

Mas a pobreza nunca será erradicada, ou pelo menos reduzida para níveis mais aceitáveis, se não for encarada pelos poderes públicos como uma consequência e não como algo que se vai minorando com políticas assistencialistas. Estas são, infelizmente, absolutamente necessárias, mas não vão à raiz do problema que está na economia e, em concreto, na nossa baixa produtividade. Se o ordenado mínimo tem subido em Portugal, embora ainda seja baixo em termos europeus, não nos podemos esquecer que é definido de forma administrativa, pelo Governo. Já o ordenado médio reflecte o funcionamento da economia que, tendo uma produtividade deficiente, não consegue gerar rendimentos para distribuir pelos trabalhadores. Tem-se, assim, assistido a uma aproximação entre os dois ordenados, o mínimo e o médio, que traduz uma acentuada proletarização das classes médias e justifica grande parte da emigração dos nossos jovens com uma formação desajustada do emprego oferecido em Portugal. Tirar licenciaturas ou mestrados para ser caixa de supermercado ou algo semelhante é altamente frustrante em termos pessoais e limitativo da organização da vida com um mínimo de qualidade.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 16 de Dezembro de 2024