domingo, 26 de janeiro de 2025

Saúde em Coimbra

 

Terminado o primeiro milhar de crónicas desta série, dê-se continuidade à sequência, que novo milhar não será, de certeza. E não deverá haver melhor forma de o fazer do que dedicando estas linhas à nossa cidade, de forma independente e liberdade de opinião, que a tal obriga o respeito pelos leitores.

Para quem, há muitos anos, segue com alguma atenção a evolução da nossa cidade nos mais diversos aspectos, é evidente haver uma área cuja importância local ultrapassa a sua natureza intrínseca, reflectindo-se em vários outros sectores. Refiro-me à área da Saúde, nomeadamente às diversas instalações do sector pública/SNS em Coimbra. Para se ter uma ideia da sua importância local, e de acordo com a informação disponibilizada no seu site, das oito unidades hospitalares da ULS Coimbra, seis localizam-se na nossa cidade. A ULS de Coimbra tem mais de 10.000 trabalhadores, incluindo mais de 2.200 médicos e 3.700 enfermeiros, entre muitos outros profissionais de saúde. O número de laboratórios de investigação clínica avançada é igualmente muito importante, sendo que um cada dez médicos especialistas é doutorado. Para além da oferta do SNS, existem em Coimbra vários hospitais privados que, na sua maioria, vieram substituir as antigas clínicas e consultórios médicos.

Como é fácil de perceber, num concelho com cerca de 150 mil habitantes, a importância de um sector desta dimensão é crucial, com implicações a montante e a jusante no emprego, mobilidade e economia em geral. Juntamente com o ensino superior universitário e politécnico a Saúde é, de facto, uma das áreas críticas para a sustentabilidade de Coimbra.

Por todas estas razões, as recentes afirmações do responsável máximo pela ULS de Coimbra acerca de eventuais ameaças ao hospital universitário ou à ULS de Coimbra não puderam deixar de trazer perplexidade e preocupação. A acusação de «triste sina a de uma entidade pública que está refém de interesses particulares em detrimento do interesse da comunidade», acrescentando ainda a “dualidade do biscate no serviço público e o foco no consultório privado” é suficientemente clara e grave para não ter consequências, até por vir de quem vem. De facto, em primeiro lugar, cabe a quem gere evitar e mesmo impedir as tais situações de biscate nos hospitais. Aliás, a denúncia de situações destas deixa-nos a todos com os cabelos em pé: o SNS é tão importante e significa uma tão grande parte dos nossos impostos que as torna absolutamente inaceitáveis. Por outro lado, não se vê como os antigos HUC poderão deixar de ser hospital universitário, ao lado do S. Maria em Lisboa e do S. João no Porto, constituídos em Centros Académicos e Clínicos. Até porque, anualmente, mais de mil alunos do mestrado integrado de medicina da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra recebem formação clínica na ULS de Coimbra.

Mas que algo de estranho se passará na ULS de Coimbra, isso parece ser evidente. E a importância das instituições do SNS em Coimbra é tão grande para a cidade que se espera que Autarquia, Universidade e ULS deem as mãos no interesse de Coimbra, também no que toca da defesa do Ensino Clínico superior.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 20 de Janeiro de 2025

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Portugal, um país a sonhar acordado

 

Passam este mês 471 anos sobre a data de nascimento do Rei. D. Sebastião que viria a morrer na batalha de Alcácer Quibir em 4 de Agosto de 1578. A tradição histórica atribuiu-lhe o cognome de “o Desejado” e “o Encoberto”, o que já por si indicia o sebastianismo que se desenvolveu em Portugal após o seu desaparecimento. Grande parte do povo não acreditou na sua morte na batalha fatídica, com esperança no seu regresso para resolver os problemas do país. Esse movimento profético e messiânico nunca chegou a desaparecer completamente, tendo-se manifestado por diversas formas ao longo dos tempos, sempre como uma solução que, de forma quase mágica, nos tiraria de dificuldades na realidade por nós próprios criadas.

As “Trovas messiânicas” de um sapateiro de Trancoso chamado Gonçalo Bandarra, da primeira metade do sec. XVI foram, curiosamente, o ponto de partida para esse movimento messiânico que se desenvolveria em torno do regresso de D. Sebastião. No sec. XVII o Padre António Vieira deu um impulso ao espírito messiânico de Portugal, formulando a tese do Quinto Império. Para ele o destino de Portugal, na senda das profecias de Bandarra, seria corporizar o “Quinto Império”, mas um império espiritual que traria paz e justiça ao mundo. O próprio Fernando Pessoa viria a integrar o chamado “quinto império” cultural e espiritual na sua obra poética, na “Mensagem”. O messianismo, para além de uma crença de carácter popular, corporizou um sentimento das próprias elites culturais.

Felizmente, existe hoje uma parte de Portugal, não dependente do Estado, que foge ao sebastianismo e investe de forma responsável e exigente, criando riqueza e emprego bem pago. Mas ao lado, sonhar com um futuro grandioso, sem trabalhar para o conseguir, parece continuar a ser uma pecha de muitos portugueses, aos mais diversos níveis, como o indiciam vários sinais: o elevadíssimo número de compradores de raspadinhas e jogadores compulsivos do Euromilhões que, em vez de tentar poupar, gastam o que têm e o que não têm; a forma como políticos relevantes falam na necessidade de gastar todo o PRR em vez de exigir que seja bem gasto. Aliás, só um desfasamento grave entre a realidade e um sentimento de riqueza onírica pode explicar que, tendo entrado na CEE em 1986 e recebido centenas de milhões de euros em apoios financeiros desde então, a riqueza de Portugal não ultrapasse ainda hoje os 83% da média europeia. E o nível de pobreza entre os portugueses é ainda tão elevado e difícil de compreender que um estimado amigo me comentava há poucas semanas que “entre nós, a pobreza parece ser mais um traço genético, de tal modo é sentida por tantos, quase inelutavelmente; parece que os restantes apenas lutam para não ser pobres também.”

Se me parece evidente que o grau de pobreza é resultado de políticas públicas, não pode deixar de ser essa mesma pobreza que, em grande parte, é responsável pela continuidade de hábitos e crenças que já há muito deviam estar no caixote de lixo da História.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em  13 de Janeiro de 2025


segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

UM ANO QUE COMEÇA

 

A História ensina-nos que há momentos específicos em que uma descontinuidade súbita arrasta a sociedade para uma direcção completamente diversa da que fora seguida até então. Mas mesmo esses pontos de inflexão séria são consequência do percurso anterior, embora as forças que levam ao seu surgimento sejam muitas vezes pouco perceptíveis, tal como as correntes subaquáticas invisíveis à superfície que quando chegam à costa rebentam com uma força insuspeitável. De facto, quem olha para os movimentos sociais observando apenas a espuma superficial, é muitas vezes surpreendido pela violência de fracturas repentinas que se desenvolvem de forma quase espontânea e que tudo alteram em muito pouco tempo. Nunca me esqueci de, quando andava no liceu, estudar a Revolução Francesa e a suas causas imediatas e longínquas. Tal como a vida me proporcionou assistir ao vivo ao 25 de Abril que fundou o nosso regime democrático, algo de que a quase totalidade da população portuguesa não desconfiaria nos dias anteriores. Tratou-se de uma alteração profunda da realidade induzida por um determinado facto concreto, mas ampliada por condições profundas de cuja existência não se suspeitaria.

Serve tudo isto para justificar uma visão muito própria da realidade actual que é muito mais complexa do que a espuma dos telejornais, desde o “caso das gémeas” ao “vencimento do Rosalino”. A votação extraordinária do partido Chega, ao contrário do que se costuma dizer, não se deve a um “crescimento da direita”, já que não tem nada a ver com conservadorismo ou democracia cristã do centro-direita. É outra coisa que se deve a movimentos subterrâneos fortíssimos que se desenvolvem em todo o mundo de rejeição de um novo modelo capitalista que não proporciona um crescimento económico semelhante ao do sec. passado. Temos de perceber o que verdadeiramente significam o Brexit, a vitória de Trump, o surgimento de partidos como a AfD na Alemanha e outros pela Europa fora. Isto obriga a não “meter a cabeça na areia” relativamente aos verdadeiros problemas, mas não dando terreno ao populismo que se aproveita daquele fenómeno de ressentimento generalizado.

Em Portugal o ano de 2025 vai trazer eleições autárquicas, importantes para todos nós porque traduzem a escolha de quem dirige a “coisa pública” com proximidade. Que não nos deixemos embarcar em campeonatos de duração de “fogos de artifício” e que sejamos exigentes relativamente àquilo que verdadeiramente interessa ao futuro da Cidade são os meus votos.

Vamos igualmente assistir à preparação da eleição presidencial que acontecerá no início de 2026. Aliás, essa preparação já começou. E, mais uma vez, deveremos ter muita atenção aos movimentos sociais profundos que, vindos de vários lados, poderão desembocar nos resultados dessa eleição, para que depois não se venha com a conversa (e desculpa) da surpresa.

Para todos os leitores os meus votos de um bom ano de 2025 com saúde e com muita atenção ao que verdadeiramente interessa.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 6 de Janeiro de 2025