Há poucos dias, o Diário de Coimbra comentava, como faz com regularidade, várias notícias publicadas pelo jornal há cerca de 90 anos numa rubrica chamada Diário de Coimbra/Memórias. Entre outros, publicava o seguinte comentário: «Uma das mais legítimas aspirações de Coimbra estava a caminho da realidade, noticiando-se, a 4 de Julho de 1932, que tinham começado os ensaios parciais da Orquestra Sinfónica, sob a direcção do professor Teófilo Russell, na Academia de Música de Coimbra. Santarém e Leiria já têm as suas orquestras sinfónicas subsidiadas pelos respectivos municípios, que por esse motivo têm sido alvo dos melhores elogios. A música sinfónica faz hoje parte obrigatória de todos os povos civilizados...»
Como sabemos, apesar de como lemos já há 90 anos se reconhecer a necessidade de uma orquestra dedicada à música erudita em Coimbra, na realidade o surgimento de uma orquestra clássica profissional em Coimbra aconteceu muito mais tarde, já no século XXI, o que aconteceu em 2001.
Hesitei entre titular esta crónica com o uso do termo “seriedade” ou com “maioridade”. Se “maioridade” remete para a idade, o que por si já é algo de significativo num meio cultural tão reduzido como é reconhecidamente o nosso, não deixa de ter a ver com a passagem dos anos. Já “seriedade” implica vários aspectos raros mesmo, ou sobretudo, no Portugal do improviso e dos fogos de artifício. Por um lado, refere a constância no rigor e exigência nas contas, isto é, na gestão dos parcos recursos financeiros. Mas, acima de tudo profissionalismo e exigência na actividade artística, no caso a música erudita, sempre num sentido ascendente, querendo em cada dia ser sempre melhor do que no dia anterior. E, como consequência dessa atitude, ser ao fim de vinte anos um caso sério no panorama cultural da Cidade, da Região e do País, com reflexos mesmo fora de Portugal. Tudo isto se refere, como está bom de ver, à Orquestra Clássica do Centro, com sede em Coimbra.
No passado dia 20 de Junho a Orquestra Clássica do Centro (OCC) ofereceu à Cidade um concerto especial comemorativo dos seus vinte anos de actividade ininterrupta, aproveitando a ocasião para celebrar os 250 anos de Beethoven e os 750 anos do nascimento da Rainha Santa Isabel. O concerto teve lugar na Igreja do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova. Sob a batuta do Maestro José Eduardo Gomes, o programa apresentou duas obras clássicas: a Primeira Sinfonia de Beethoven e o Concerto para Piano nº12, em Lá Maior, K 414 de Mozart, sendo solista a brilhante pianista Diana Botelho Vieira. Embora se trate de duas obras bem conhecidas dos amantes da música erudita, o compositor Sérgio Azevedo fez uma apresentação prévia de cada uma delas, quer do ponto de vista estritamente musical, quer na perspectiva cultural em termos latos, isto é, o seu enquadramento na História da Música e do significado de ambas na produção musical dos respectivos compositores.
Mas a participação neste Concerto de Sérgio Azevedo que é natural de Coimbra e filho do grande guitarrista Octávio Sérgio não se ficou pela apresentação daquelas duas obras. Na realidade, houve a estreia absoluta de duas composições da sua autoria, ambas por encomenda da OCC, com comentários prévios explicativos pelo próprio compositor, ocasião sempre rara e de grande significado cultural. A primeira das obras estreadas, com o título “Transcendente”, é uma composição contemporânea de enorme beleza e complexidade musical dedicada a Isabel de Aragão. A pandemia que nos tolhe a vida normal em termos sociais, laborais, mas também culturais, não permite que os 750 anos do nascimento de Isabel que foi Rainha e Santa, mas que é também a Padroeira de Coimbra, sejam condignamente celebrados pela Cidade. Tal circunstância só amplia o significado da estreia de uma composição dedicada à Rainha Santa, precisamente no templo que acolhe o seu corpo incorrupto guardado no magnífico túmulo de prata e cristal executado no Sec. XVII. A segunda estreia constitui uma homenagem a uma das figuras maiores da cultura universal, o compositor Ludwig van Beethoven. Também neste caso a epidemia impediu que os seus 250 anos que passaram em 2020 tivessem sido celebrados no ano passado, como devido. Mas, para além de incluir o grande compositor no seu repertório, a OCC encomendou uma obra para celebrar a efeméride. E Sérgio Azevedo de novo se saiu brilhantemente da tarefa, optando por, a partir das notas do “Scherzo” da Nona e chamar a participar outros compositores que, no fundo, foram todos influenciados pelo génio nascido em Bonn em 1770, através de apontamentos intrincadamente interligados numa peça que nos tira o fôlego de princípio ao fim.
O confinamento da pandemia limita o número de pessoas que podem participar em actos culturais, incluindo concertos. O que significa que a Igreja do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova não esteve à cunha no concerto memorável da noite de 20 de Junho de 2021. Mas todos os que tiveram a felicidade de poder assistir foram testemunhas de como, ao celebrar o seu vigésimo aniversário da forma como o fez, a Orquestra Clássica do Centro significou Coimbra no seu melhor.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 28 de Junho de 2021
Fotos recolhidas na internet