segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Portugal e o Grande Cisma

 


Durante boa parte do Sec. XIV e início do Sec. XV verificou-se uma situação inaudita na Europa, plena de significado político e, de certa forma, também religioso. Na cidade francesa de Avignon pode-se visitar uma construção gótica da Idade Média, de dimensões invulgares, o Palácio dos Papas. É o testemunho em pedra do período em que os Papas residiram naquela cidade, a partir de 1309, quando o Papa Clemente V para lá transferiu a Santa Sé em vez de Roma. Assim cedia ao Rei de França Filipe o Belo que havia influenciado decisivamente a sua eleição pelos cardeais e a quem haveria ainda de ceder tragicamente ao extinguir a Ordem dos Cavaleiros Templários.

Avignon seria a sede da Santa Sé de forma pacífica até 1377 quando o Papa Gregório XI decidiu devolver o papado a Roma, indo morar na Cidade Eterna. Contudo, após a sua morte e a eleição de um novo papa italiano, Urbano VI, alguns cardeais revoltaram-se e elegeram um novo Papa, Clemente VII que foi morar em Avignon. Teve assim início o período histórico conhecido como Cisma do Ocidente durante o qual a cristandade teve dois papas em simultâneo durante quase quarenta anos, um residindo em Roma e o outro em Avignon, tendo estes ficado conhecidos como anti-papas.

O Cisma do Ocidente só terminou em Novembro de 1417 quando o Concílio de Constança elegeu o único Papa Martinho V.

O Cisma do Ocidente ou Grande Cisma provocou uma divisão profunda numa Europa já assolada por terríveis acontecimentos, como a Peste Negra e a grande Fome, para além da Guerra dos Cem Anos que devastou a Europa entre 1337 e 1435. Os diversos países europeus dividiram-se no apoio a cada um dos Papas, num tempo em que Igreja e política se entrelaçavam intimamente, provocando uma crise geral de grandes proporções. Com o anti-papa de Avignon alinhavam a França, Castela, Aragão, Leão, Chipre, Borgonha, Escócia e diversos ducados como Bretanha e Áustria. Fiéis ao Papa de Roma alinhavam a Inglaterra, Flandres, o Sacro-Império, Hungria, Portugal, os países nórdicos e, naturalmente, o Norte de Itália. Esta situação não era estável, já que alguns países forma mudando de lado, como aconteceu várias vezes com Portugal no reinado de D. Fernando.

E aqui chego à razão que me levou a relembrar o Grande Cisma nesta página, quando o leitor provavelmente se pergunta sobre isso mesmo.

Na realidade, o Grande Cisma teve uma importância capital num dos momentos cruciais da existência de Portugal como país independente, que foi a crise de 1383/1385, não havendo normalmente consciência desse facto, por não se olhar para o contexto europeu em que aquela crise decorreu.


Portugal teve uma refundação com o reinado de D. João I só compreensível com a ligação então firmada com a Inglaterra pelo Tratado de Windsor em 1386 e casamento do Rei com Filipa, filha do Duque de Lencastre em 1387, dando origem à Ínclita Geração e à Dinastia de Avis que colocaram Portugal na História Universal de forma impressionante. O Duque de Lencastre alimentava o desejo de ser Rei de Castela o que colocou a Inglaterra em rota de colisão com D. João I de Castela, com a França de novo em oposição a Inglaterra, ao lado de Castela. Portugal, como o Mestre de Avis aconselhado por João das Regras e neste contexto, só podia estar do lado de Inglaterra e, paralelamente, com o Papa de Roma contra o anti-papa de Avignon. Todos os que por cá se opunham ao Mestre de Avis a favor de D. João de Castela eram vistos como heréticos e «cismáticos» assim se transformando o Mestre em inimigo do anti-Cristo. A Grande Cisão foi um palco de fundo magnífico para a luta do nosso Rei D. João I, primeiro para alavancar a luta contra Castela e depois para governar ao apoiar decisivamente o Papa de Roma, levando o clero a secundar a sua governação. Se o Grande Cisma passou à História sem maiores consequências para a generalidade dos países europeus, tal não sucedeu com Portugal onde foram da maior importância.

Sabemos que não se conhecendo o passado não se percebe o presente, nem se interpretam devidamente os sinais do que vai sucedendo, o que não devemos nem podemos esquecer principalmente numa altura em que a Europa sofre de novo uma crise de profundo significado.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 29 Agosto 2022

Imagens recolhidas na internet

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Argentina: país falhado

 


A Argentina é frequentemente apresentada como o exemplo perfeito de como um país pode passar, em pouco tempo, de acentuada riqueza à pobreza generalizada.

De facto, durante umas cinco décadas a Argentina cresceu de uma forma espantosa, até chegar a ser, nos anos 20 do século XX, um dos países mais ricos do mundo. Até à Primeira Grande Guerra a Argentina cresceu imenso com uma economia clássica baseada nas exportações agrícolas: bovinos, peles e cereais. Com o início da guerra, os preços internacionais destes produtos caíram a pique e a Argentina entrou em declínio porque não fez reformas económicas e as suas elites não foram capazes de inovar e alterar formas de produção. Com o declínio da economia surgiram as crises políticas. Logo em 1930 deu-se o primeiro golpe militar e até aos anos 80 o país viveu quase sempre em ditadura, como breves períodos de democracia formal, mas sem que se estabelecesse nunca um verdadeiro sistema democrático liberal.

Juan Domingos Péron foi eleito presidente em 1946. Em 1943 tinha participado num golpe militar, como coronel, na sequência do qual foi nomeado ministro do Trabalho. Foi aqui que começou a relacionar-se com os sindicatos e movimento operário, numa relação de que haveria de surgir o peronismo (ou justicialismo) então numa base trabalhista. Depois de eleito tratou imediatamente de substituir juízes no Supremo Tribunal que antes funcionava à imagem do Supremo Tribunal de Justiça americano, para eliminar constrangimentos à sua governação. Foi eleito democraticamente, mas depressa usou essa eleição para minar o sistema democrático e governar como um ditador populista tirando de cena quem dele discordasse.


 Peron foi derrubado em 1955 por outro golpe militar a que se seguiram diversos governos civis e militares, numa história trágica sob o ponto de vista dos direitos humanos e do desenvolvimento económico do país. Na década de setenta o regime militar levou a repressão a níveis inimagináveis com milhares de mortos e centenas de milhares de pessoas presas e torturadas.

Em 1983 foi finalmente eleito democraticamente o presidente Raúl Alfonsín do Partido Radical. Mas logo em 1990 o eleito foi Carlos Menem do Partido Peronista. E também Menem não só substituiu juízes do Supremo como aumentou o seu número para o dominar politicamente, além de fazer alterar a própria Constituição para permitir mais mandatos presidenciais. O Peronismo, sob a capa de democracia, na realidade instituiu um sistema de partido praticamente único, o Partido Justicialista ou Peronista que agiu desde sempre e até hoje, através dos mais diversos processos de compra de votos e corrupção com vista a conservar o poder.

No início deste século a Argentina sofreu uma crise económica em grande parte consequência das políticas de Menem que em 1991 vinculou o peso argentino ao dólar americano, Durante algum tempo conseguiu suster a inflação elevadíssima, mas depois foi o caos porque tornou as exportações argentinas muito caras e as importações baratas aumentando a dívida. No fim de 2001 o governo congelou todas as contas bancárias e as pessoas só podiam levantar dinheiro em pesos quando tinham depositado dólares naquilo a que os argentinos chamaram «el curralito». Se ao princípio a perda era reduzida, o governo acabou por converter todos os dólares em pesos, com uma perda de ¾ do seu valor inicial revertendo o diferencial para o Estado. Mais uma vez o Governo enviava para o caixote do lixo os direitos de propriedade apenas para encontrar forma de pagar os seus erros políticos e económicos crassos.

Num sistema democrático liberal deve ser prevista a protecção da propriedade privada sendo essencial um sistema jurídico imparcial e a prestação de serviços públicos que assegurem condições equitativas às diversas classes sociais. Isto é, as instituições económicas precisam do Estado garante da regulação e equidade, além da justiça e serviços básicos como a segurança e redes de transportes. Quando isso deixa de suceder, mesmo os países mais ricos rapidamente entram em declínio. O que sucede em particular com golpes militares e populismo nacionalista que têm como consequência a médio e longos prazos o empobrecimento geral da população e o enriquecimento das elites ligadas ao poder.

Há escassas semanas tive oportunidade de ler uma excelente e muito sentida crónica aqui no DC da autoria de José Manuel Diogo sobre a Argentina e, muito particularmente, sobre a decadência da sua capital, Buenos Aires. Na realidade, a Argentina é, de facto, o epítome da degradação de um país, desde o sucesso económico e social até à pobreza sob os mais diversos pontos de vista, sendo a capital apenas a imagem trágica do que vem sucedendo no país desde há cerca de cem anos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 22 Agosto 2022

Imagens retiradas da Internet

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Aljubarrota: o sentido do patriotismo

 


Passaram ontem 637 anos sobre a Batalha de Aljubarrota ocorrida em 14 de Agosto de 1385. Como sabemos todos os da minha geração, que aprendemos a nossa História nos anos 60, tratou-se de uma batalha crucial para a manutenção da independência de Portugal após a morte do Rei D. Fernando. Infelizmente, esse período épico do nosso passado colectivo era abordado sob uma perspectiva eminentemente nacionalista e o próprio D. João I surgia claramente diminuído perante o seu Condestável D. Nuno Álvares Pereira. É conhecida a diferença fundamental entre o nacionalismo e o patriotismo, conceitos tantas vezes confundidos com objectivos nem sempre claros. Enquanto este último reflecte o amor e respeito pelos seus concidadãos enquanto colectivo com o seu passado e também o presente, o seu território e mesmo os seus próprios valores e tradições, aquele traduz-se num desrespeito e menor consideração pelo outro, pelo diferente, sempre considerado inferior. Um patriota defende aquilo a que pertence perante os ataques exteriores, enquanto o nacionalista conflitua em permanência. Simplificando, sentimentos de amor e de ódio que infelizmente, como com frequência sucede na vida, se entrelaçam por vezes numa relação de amor/ódio.

Os ataques do rei de Castela Dom João I seguiram-se às Cortes de Coimbra realizadas entre Março e Abril de 1385. Uma das razões apresentadas por João das Regras para rejeitar D. João I de Castela casado com D. Beatriz, a única filha do falecido Rei D. Fernando, talvez mesmo a definitiva, teve a ver com o facto de o rei castelhano ter já invadido Portugal causando dano ao país, ao contrário do jurado solenemente aquando do seu casamento. Haja em vista o terrível cerco a Lisboa montado pelo rei castelhano de que a cidade só se salvou pela peste que lavrou pelos sitiantes. Depois da morte do popularmente odiado Conde Andeiro o Mestre de Avis havia já sido escolhido pelo povo de Lisboa como seu protector, diríamos hoje líder, mas nas Cortes de Coimbra foi legitimado como Rei. Era o culminar, legal sob todos os pontos de vista, de uma autêntica revolução popular que rejeitou por todo o país, a partir de Lisboa, todos os grandes e poderosos que em Portugal apoiavam o rei castelhano, fruto de favores e dádivas por parte deste, mas também de ligações antigas e rejeição do filho do Rei D. Pedro e de Teresa Lourenço por grande parte da alta fidalguia do Centro e Norte do país.


Ao novo Rei D. João I de Portugal juntou-se D. Nuno Álvares Pereira, nomeado Condestável, autoridade militar máxima de então que já dera anteriormente provas da sua competência na arte da guerra, nomeadamente nos Atoleiros em 6 de Abril de 1384.

Como era obrigatório pelas leis medievais não escritas, foi o próprio rei castelhano, apesar de enfraquecido pela doença, que comandou a invasão a Portugal com o intuito de retirar a Coroa a D. João I de Portugal a quem depreciativamente continuava a chamar Mestre de Avis. Os exércitos castelhano e português acabaram por se defrontar perto de Porto de Mós ao fim da tarde do dia 14 de Agosto de 1385. Tratou-se de uma batalha real porque os dois exércitos eram comandados pelos reis dos dois países, com todas as consequências que a vitória, de um lado ou do outro, acarretaria. Há diversas versões sobre as dimensões dos dois exércitos, variando a relação entre eles entre um para três e um para cinco, sempre favorável ao castelhano. Certo e seguro é que ao fim de uma hora de peleja a bandeira real de Castela foi derrubada, após o que se seguiu a fuga do rei castelhano e a debandada dos seus exércitos. A descrição detalhada da batalha, da sua preparação pelo Condestável e do sucedido nos dias seguintes pode ser lida no excelente livro «Aljubarrota Revisitada» coordenado por João Gouveia Monteiro editado em 2001 pela Imprensa da Universidade de Coimbra, cuja leitura atenta é recomendável; nesta obra é possível conhecer os elementos que a ciência dos dias de hoje permite obter, a somar à informação histórica, nomeadamente a transmitida pelo cronista Fernão Lopes. Também a informação histórica sobre este período importante e interessantíssimo da História de Portugal pode ser obtida com grande vantagem cultural na notável biografia de D. João I da autoria de Maria Helena da Cruz Coelho recentemente reeditada pela Bertrand.

Depois da crise de 1383/85 Portugal veio a conhecer um período nunca igualado na nossa História, impossível de imaginar no momento inicial da morte do Conde Andeiro. O patriotismo revelado pelo povo e alguns nobres naquela época impôs-se perante a vontade de dominação do poderoso vizinho ibérico e é ainda hoje uma lição para todos nós.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 15 de Agosto 2022

Imagens retiradas da internet

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Per un pugno di dollari, Ennio Morricone - Milano, Teatro Dal Verme - Ar...

“Silly season”, mas pouco

 


Está mais ou menos estabelecido que a época do ano que vivemos seja considerada a «estação pateta», traduzindo para português o termo que vai no título desta crónica que procura também não fugir muito à tradição. Claro que nos dias que atravessamos a realidade vem chocar de frente com as pretensões de patetice ultrapassando mesmo, por vezes, as tentativas mais rebuscadas de viver de forma leve e ligeira, como a praia pede e as revistas confirmam.

E assim, às declarações que ficam por provar do presidente da empresa eléctrica Endesa o primeiro-Ministro não encontrou melhor maneira de responder com instruções aos diversos serviços do Estado com contratos com aquela empresa do que passarem a enviar as respectivas ao sec. de Estado Galamba para recolherem o visto para autorização de pagamento. Conheço bem esta situação porque já em tempos trabalhei numa empresa em que o responsável máximo todos os meses punha de lado cerca de dez por cento das facturas para pagar e pedia uma justificação da mesma; a resposta era invariavelmente juntar uma cópia do contrato a que se referia e assim se ultrapassava a situação, mas ficava sempre a ligeira sensação de colaborar na gestão de uma mercearia e não de um grande grupo económico. Nesta questão com a Endesa fico a mesma sensação, agora relativa ao Estado que temos e ainda com a ideia desagradável de que as empresas afinal têm que andar alinhadinhas com o Governo que está, a lembrar os tempos do «condicionamento industrial». Mas, claro, estamos em Agosto!

Nenhuma surpresa foi a «descoberta» de muitos casos de abuso sexual praticado por clérigos da Igreja. Já surpreendente foi a reacção de bispos e cardeais ao saberem de tarados à solta na Igreja e reagirem apenas mudando-os para novos locais de prática de crimes. Já o presidente da nossa República mete os pés pelas mãos a defender os clérigos máximos não se ouvindo uma palavra de solidariedade para com os ofendidos. Mas, claro, estamos em Agosto!


As notícias de encerramento de urgências de obstetrícia entraram na normalidade diária, sem que se veja sombra da ministra responsável, para além de ter acenado com mais dinheiro para as horas extraordinárias dos médicos. As outras urgências parece que vão pelo mesmo caminho. Ainda me lembro de quando os governos tinham a preocupação de reforçar os hospitais do Algarve em Agosto pelo aumento da população presente; agora parece que por lá todos os meses do ano se chamam Agosto e ninguém acha estranho. E um pouco por todo o país as mulheres em risco de parto eminente são mesmo aconselhadas a visitar a SNS24 antes de saírem de casa. Palhaçada maior será impossível mas lá está, estamos em Agosto.

A Amnistia Internacional acusa a Ucrânia de esconder militares por detrás de civis. Relembro que a Ucrânia foi invadida pela Rússia que bombardeia sistematicamente as cidades ucranianas, matando civis por todo o lado, quer estejam em casa, escolas, hospitais ou simples paragens de autocarro. Mas o problema parece ser os militares do país atacado não irem para os campos e florestas reagir contra os invasores, antes defendendo as cidades atacadas. Claro, deve ter sido o calor a provocar o dislate da Amnistia Internacional porque, lá está, estamos em Agosto.

Já as fotografias de Zelenski e da sua mulher Olena feitas pela consagrada Annie Leibowitz caíram muito mal em certos círculos que devem preferir as fotos de Putin de peito nu e a cavalo. O choque provocado pela lembrança dos tempos de paz com os cenários de guerra e destruição não diz nada a uma certa hipocrisia bem-pensante, tal como a esperança do regresso desses tempos, razão maior das fotografias, não o faz também. Mais valia o casal presidencial ucraniano atraiçoar o seu povo e ir entregar-se aos seus ditos salvadores russos, de preferência sem saltos altos e pinturas. Mas lá está, estamos em Agosto.


Já agora, o sec. geral da ONU desistiu dos objectivos da organização que dirige e agora ataca as empresas que têm «lucros excessivos»? A ONU a tratar de empresas????? Que fofinho, Eng. Guterres! E que populista! E que tal tratar dos países que organizam carteis e têm «lucros excessivos» como a OPEP dando cabo das economias de outros e criando pobreza enquanto ostensivamente constroem cidades «no céu»? E dos que são ricos à custa do fabrico e tráfico de armamento? Pelos vistos isso já não lhe dirá nada. Atacar empresas é o que está a dar. Pois, lá está, estamos em Agosto.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 8 de Agosto 2022

Imagens retiradas da internet