Pode parecer anacrónico, em pleno século XXI abordar a questão da Monarquia em Portugal mas a morte da Rainha Isabel II e toda a envolvência política e mediática que a envolveu justificam, ainda que de forma simples, alguma ponderação sobre o assunto. Deixo de lado as considerações sobre casamentos, divórcios, vestidos, fardas e jóias que enchem as páginas de revistas, jornais, mas que são supérfluas perante o essencial.
É interessante que, entre os meus amigos pessoais, haja defensores da monarquia com diferentes opções políticas, uns de esquerda e outros de direita. Significa isto que o que está em questão relativamente à monarquia não é o regime, dado que a democracia é garantida desde que as monarquias passaram a ser constitucionais. Também não é o desenvolvimento económico ou social que está em causa, bastando para tal recordar que países como a Noruega, a Suécia, os Países Baixos, a Espanha ou a Bélgica, para além do reino Unido, têm monarquias no cume dos seus sistemas políticos.
A Rainha Isabel II é uma personagem fascinante que representa boa parte do sec. XX, embora tenha vivido ainda mais de vinte anos neste século. A excepcional duração do seu reinado foi razão para que tenha convivido com quinze primeiros-ministros britânicos desde Winston Churchill até à actual Liz Truss que ainda ninguém conhece, para além dos inúmeros líderes dos diversos países. No que a Portugal diz respeito, conheceu desde Salazar e Craveiro Lopes até Ramalho Eanes e Marcelo Rebelo de Sousa, só para dar o nosso exemplo.
Um dos aspectos que nas últimas duas dezenas de anos mais foram discutidos no exercício soberano de Isabel II foi o da sua possível resignação a favor do filho Carlos, dada a idade da Rainha, algo que nunca fez nem podia fazer. Sem que na maior parte dos casos sequer se adivinhasse, estava-se na realidade a tocar num ponto essencial da vida de Isabel II como Rainha, mas também da própria essência da Monarquia.
Recordo que Isabel II nasceu em 1926, mas não para ser rainha. Só o foi porque em 1936 o seu tio Rei Eduardo VIII abdicou, nas circunstâncias que todos conhecemos, a favor do seu irmão que se tornou o Rei Jorge VI. Era este rei o pai de Isabel que assim, lhe veio a suceder como Isabel II pela sua morte ocorrida em 1953.
Tudo o que rodeou esta situação que levou à sua entronização em 2 de Junho de 1953 calou profundamente na sua formação pessoal e carácter que a levaram ao famoso juramento de servir o povo britânico para sempre, o que impediu que algum dia pensasse sequer em abdicar do que considerava ser o seu dever inalienável.
Mas houve ainda outra situação desconhecida de grande parte das pessoas que também terá marcado Isabel II para toda a sua vida como rainha, dado o seu simbolismo. Em momento imediatamente anterior à coroação pública, através da colocação na sua cabeça da coroa imperial de mais de um quilo de ouro e 2.868 diamantes, houve outra cerimónia levada a cabo longe da vista do público. Nessa cerimónia que vem desde os longínquos tempos medievais Isabel, sem as suas vestes reais, foi ungida com óleo sagrado, significando isso que seria rainha, não só pela herança da casa de Hanôver, mas por direito divino.
Chego assim ao ponto central da justificação da existência da Monarquia e, devo dizê-lo desde já, da razão de eu ser republicano. De facto, embora possa dizer ser hoje um leitor ávido de História, em particular da nossa rica de quase mil anos e tantos reis e rainhas de que sou admirador de uns e não tanto de outros, é a própria essência da Monarquia que aqui está em causa.
Aceito perfeitamente a existência de monarquias, mesmo nos dias de hoje, desde que seja essa a vontade expressa do povo, mas nunca por direito dinástico ou divino. E não é o facto de uma determinada personalidade nos merecer a maior admiração pela sua vida como rei ou rainha, como foi o caso de Isabel II, que ultrapassa a questão radical da razão de o ter sido por outra razão que não a escolha por quem deve ser o detentor da soberania: o povo constituído por todos, independentemente do seu nascimento, da sua riqueza ou mesmo da sua cultura. E, goste-se ou não, a realidade vai muito para além dos contos de fadas por muito apelativos que estes sejam.Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 26 de Setembro de 2022
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