terça-feira, 13 de maio de 2014

A ARTE E A VIDA (Mário Silva)



É conhecida a frequente discrepância entre a arte de muitos grandes artistas e a sua própria vida. Não vale a pena referenciar nomes, mas todos nos lembraremos de grandes pintores, compositores musicais, escritores ou artistas de cinema que nos comovem com as suas composições artísticas e cujas relações com os próximos não se pautaram pela simpatia ou sequer pela mínima aceitação pessoal.
Entre nós vive um grande artista que é exactamente o contrário disso. Mestre Mário Silva é um dos nossos maiores artistas contemporâneos, não só na pintura mas também na escultura, no desenho, na cerâmica e na ilustração. A sua genialidade manifesta-se de forma constante nas diversas épocas que se conseguem detectar na sua longa vida artística. Ao apreciar a sua arte ao longo dos mais de cinquenta nos que leva a sua carreira, sentimos verdadeiramente que a arte é a procura da verdade, que traz a eternidade dentro de si.
A sua carreira artística levou-o a ter participado em numerosas exposições individuais e colectivas em Portugal, na Suécia, na Bélgica, na Holanda, em França, em Itália, nos EUA, no Brasil, no Japão, etc. Os prémios que recebeu são inúmeros em diversos países, designadamente a Itália. Está representado em museus por toda a Europa, no Brasil, EUA e claro, em Portugal. Se é hábito dizer-se que o tempo é o maior garante da qualidade da obra artística de um autor, através da sua perenidade, no caso de Mário Silva essa prova está já feita.
Artista irreverente, por vezes mesmo iconoclasta, coloca permanentemente em questão ideias feitas, preconceitos e tradicionalismos sem sentido.
A sua atitude provocatória perante os convencionalismos sociais estéreis manifestou-se durante a sua vida das mais diversas formas, desde surgir numa exposição vestido com fato de mergulhador, incluindo barbatanas até convidar amigos e comunicação social para uma queima pública dos seus quadros na praça pública em protesto contra alterações fiscais sobre as obras de arte. Claro que, em privado, sempre vai dizendo com aquele seu sorriso matreiro que eram apenas cópias sem qualquer valor.

Mas ao lado da sua turbulência artística, Mário Silva é um Homem de extrema afabilidade, cuidando com inteligência mas com grande afecto todos aqueles que com ele de alguma forma contactam. A sua ligação carinhosa com os elementos da sua família é verdadeiramente comovente. E é mesmo surpreendente observar como consegue estabelecer contacto com grupos de crianças a quem ensina técnicas de pintura básicas levando-as a produzir desenhos únicos, respeitando as suas brincadeiras e guiando-as na descoberta da produção artística. Assim fossem todos os pedagogos.
Mestre Mário Silva mora numa rua estreita de Lavos na Figueira da Foz, vizinho de pescadores. Apesar de a sua obra estar representada em todo o mundo, ao contrário de tantos outros artistas, nunca enriqueceu com o seu trabalho. Quando o visitamos, leva-nos a ver o seu “museu”, mostrando-nos as peças que possui um pouco de todo o mundo, explicando-nos a sua proveniência e o seu significado, tantas vezes com uma ironia subtil que é, ela própria, uma forma de arte. E é um seu gesto próprio retirar alguma peça do seu acervo e oferecê-la logo ali a quem gosta.
Mestre Mário Silva gosta de captar os momentos sempre difíceis da faina da pesca tão característica da nossa cidade irmã da Figueira da Foz em muitos dos seus quadros. E não precisa de estar a ver Coimbra para a pintar com um pormenor e uma sensibilidade inimitáveis. Se ele próprio costuma dizer que nasceu para a arte; nós podemos dizer que Mário Silva nasceu para nos oferecer a sua arte e a vivência amiga e fraterna.


Publicado originalmente no Diário de Coimbra de 12 de Maio de 2014




segunda-feira, 5 de maio de 2014

EQUAÇÃO DO TEMPO



A História da Humanidade mostra-nos que sempre houve civilizações contemporâneas diferentes e quase tão imiscíveis como a água e o azeite. Nas últimas dezenas de anos, contudo, tem-se assistido a uma alteração radical dessa situação. A globalização económica tem provocado uma “normalização” do mundo, aproximando civilizações antes afastadas, sendo a evolução do Japão e, ultimamente da China, talvez os exemplos mais marcantes dessa evolução.

  Uma das consequências destas transformações é uma artificialização crescente das nossas vidas, com o desaparecimento de muitas ligações ao mundo real. Sinais disso mesmo são, por exemplo, a possibilidade de comprar durante todo o ano alimentos que dantes só se encontravam nas estações do ano em que naturalmente se desenvolviam. Ou podermos facilmente encontrar no supermercado da nossa rua alimentos característicos de determinadas partes do mundo situadas nos nossos antípodas.
As tecnologias de informação e, em particular a internet, vieram dar todo um novo e mais perturbante significado às teorias da cibernética. De repente, o mundo tornou-se mesmo uma aldeia global e qualquer acidente no ponto mais remoto do planeta é instantaneamente conhecido em todo o mundo; as transações financeiras passaram a dar a volta ao planeta várias vezes por dia, colocando as ordens nas mãos de máquinas e já não de cérebros humanos.
Com tantos instrumentos electrónicos à nossa volta perdemos a noção do tempo que passou a ser apenas o conhecimento da hora local, eventualmente com uma precisão de muitos milésimos de segundo que não nos serve para nada.

Quem de entre nós mantém a ligação à Natureza, percebendo a razão por que o dia tem legalmente 24 horas? E qual a razão do ano ter 365,242199 dias e não 365 dias inteiros e como se resolve esse problema? E em que consiste o calendário gregoriano e qual o motivoo para que tenha sido adoptado em 1582 em substituição do calendário juliano, assim alterando as datas de todas as efemérides importantes até então?
Se o leitor julga que a hora que o seu relógio preciso até mais não pelo vibrar do cristal de quartzo está sempre certa, engana-se; de facto só está certa quatro dias por ano, porque a Terra na sua rotação à volta do Sol segue uma elipse imperfeita, o que leva a que a duração real dos dias varie entre 23 horas 44 e minutos em 3 de Novembro e 24 horas e 14 minutos em 11 de Fevereiro, havendo quatro dias por ano com uma duração igual à duração média.
Esta diferença é a “Equação do Tempo”, cujo conhecimento exacto é crucial para muito mais aparelhos e situações importantes para o seu conforto do que lhe passa pela cabeça.
Damos também por garantidas situações que são apenas transitórias. E esquecemos o nosso lugar na Terra e no Universo. Estranhamos e bem, claro, as posições extremistas e arrogantes e homocêntricas da Igreja na Idade Média que não aceitava o lugar excêntrico da Terra no sistema Solar e no fundo vivemos hoje em dia como se a existência do Universo se justificasse por e para nós.
A “equação do tempo” é apenas o símbolo de como toda a nossa vida contemporânea esquece o funcionamento do Universo em que apenas habitamos um minúsculo planeta num sistema solar irrelevante e periférico numa galáxia que é apenas uma das mais pequenas entre milhões delas que a cada segundo se afastam a uma velocidade vertiginosa. Mais importante para a nossa vida e dos que se nos seguirão é compreender como o planeta em que habitamos é verdadeiramente importante, não deixando que todas as facilidades da técnica nos façam esquecer de que temos que cuidar dele e, já agora, dos homens e mulheres em concreto que nele vivem.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 5 de Maio de 2014

segunda-feira, 28 de abril de 2014

IV.Handel Organ Concerto HWV 295 "The Cuckoo and the Nightingale" - IV.A...

MUSICA PARA ESCOLHIDOS (ou o corporativismo no seu pior)



Não foi por acaso que, na transição de um regime não democrático que se intitulava a si mesmo de “corporativista” para um regime democrático, muitos interesses instalados e outros que entretanto se instalaram encontraram grandes facilidades em continuar a garantir facilidades para si próprios. De facto, é difícil perder velhos hábitos compensadores e, pela própria natureza das coisas o Estado Democrático é muito mais permeável à actuação de corporações que se movimentam no seu interior como peixe na água. Deve assim, em Democracia, o Estado ser suficientemente forte para se defender da apropriação por alguns daquilo que é de todos.
Os casos das rendas excessivas na energia e muitas parcerias público privadas, nomeadamente na rede rodoviária, estão aí para o provar e só um cego pode afirmar não o ver.
Mas há muitas outras áreas em que o Estado foi tomado por dentro por interesses corporativos. A Cultura é, evidentemente, uma delas e desde há muito tempo. Verifica-se isso, por exemplo, no que respeita à Música, com injustiças relativas criadas e mantidas e, certamente, muito dinheiro deitado à rua com ineficiências patrocinadas e pagas pelos próprios ministérios da Cultura ao longo de muito tempo.

Os concursos do ministério da Cultura para escolher quais as “orquestras” a apoiar a nível regional cessaram subitamente em 2003: as orquestras escolhidas no último concurso antes dessa data continuam a ser apoiadas pelo Estado, sem qualquer alteração. E assim se mantém a situação, agora por razões de constrangimento orçamental, como se lê no Despacho nº 1793 de 2012, recebendo essas orquestras entre seiscentos e setecentos e sessenta mil euros por ano (esta última a Orquestra do Norte sediada em Amarante).
Orquestras como por exemplo a do Algarve, foram acumulando dívidas gigantescas e o estado o que faz? Tapou o buraco e continua a pagar. Em Guimarães houve uma Capital Europeia da Cultura e muito bem. O que já não esteve bem foi que se tivesse criado uma orquestra exclusivamente para esse ano, no que se gastaram mais de seis milhões de euros. Muito mais barato e sustentável, como hoje se diz, teria sido contratar as várias orquestras já existentes para fazer os concertos previstos, até porque só nas proximidades há duas orquestras profissionais apoiadas pelo Estado (e bem).
E em Coimbra? Na nossa cidade existe a Orquestra Clássica do Centro que recebe da Câmara Municipal um apoio anual de cento e setenta e cinco mil euros. Basta comparar com os números acima referidos para se perceber a diferença de tratamentos por parte dos Governos embora e, felizmente, a actual Câmara Municipal já tenha aprovado o apoio para este ano, garantindo o funcionamento da OCC. A qualidade do trabalho é reconhecida e a adesão do público é uma realidade, como aliás se viu no último concerto de Pascoa, com o Pavilhão Centro de Portugal completamente esgotado.
Para o conseguir, a OCC tem conseguido mobilizar o apoio de diversos mecenas e instituições com quem tem celebrado protocolos de colaboração ao longo dos anos, ultrapassando assim muitas das dificuldades.
Sabendo-se isto tudo, nos últimos anos as principais instituições da Cidade, como sejam a própria Câmara e a Universidade parecia que tinham juntado as mãos para acabar com a OCC. Só assim se compreende a enorme quantidade de concertos realizados em Coimbra pela Orquestra do Norte, pagos por essas entidades. Claro que havia responsáveis que achavam não poder Coimbra suportar uma orquestra clássica ou mesmo sinfónica, bastando uma orquestra de câmara. A política do para quem é, bacalhau basta! ou Coimbra no seu pior. Claro que também na cultura as eleições servem muitas vezes para mandar as ervas daninhas pelo Mondego abaixo.
Mas a questão dos apoios do Estado mantém-se. É insuportável que o ministério da Cultura continue a dormir na forma, garantindo os apoios sempre aos mesmos de forma corporativa, sem dar oportunidade a outros de mostrarem o que valem.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 28 de Abril de 2014

segunda-feira, 21 de abril de 2014

CIDADES E FUTURO



O termo “smart city” entrou já no nosso léxico, embora não seja ainda evidente o seu significado para um cidadão comum. De facto, numa primeira abordagem, para a definição de “smart city” elegiam-se basicamente os factores clássicos de desenvolvimento das cidades com a preocupação de definir a competitividade e o desenvolvimento urbano sustentável, como sejam a economia, a mobilidade, o ambiente, a população, a qualidade de vida e a governança da cidade. Foi nesta perspectiva que, há poucos anos, um grupo de universidades europeias (Viena, Delft e Ljubljana) desenvolveram um estudo em 70 cidades médias europeias, a que chamaram “european smart cities” classificando-as de acordo com aquelas áreas. É de referir que Coimbra ficou colocada em 46º lugar, classificação não muito honrosa, mas também não humilhante, perspectivando a possibilidade de melhoria futura no ranking.
Àquela abordagem, digamos mais clássica, passou a definir-se as “TICE” (Tecnologias de Informação, Comunicações e Electrónica) como base de suporte de uma “Cidade Inteligente” (Smart City), e a abordagem desta questão tornou-se mais ampla e evoluiu para patamares de integração das várias áreas que interessam às cidades. A globalização e a rápida urbanização do mundo, em que a população urbana deverá atingir 70% dentro de poucos anos, criam a necessidade de uma nova perspectiva da evolução das cidades. A procura das cidades para viver indo procurar novas oportunidades, transforma as cidades que irradiam actividades económicas, culturais e sociais.
Recentemente, uma nova abordagem das “smart cities” foi apresentada, integrando aspectos que me parecem essenciais e que não haviam sido devidamente considerados anteriormente. O Centro de Globalização e Estratégia de Barcelona criou o Índice IESE Cities in Motion que inclui dez factores a ter em consideração quando se procura classificar uma cidade como “Smart City” e que são os seguintes: Governança, Gestão pública, Planificação Urbana, Tecnologia, Meio Ambiente, Projecção Internacional, Coesão Social, Mobilidade e Transporte, Capital Humano e Economia.
De acordo com esta análise, uma conclusão que de tão simples que é pareceria óbvia, é que “não há um modelo único de sucesso: o primeiro passo para qualquer cidade será definir o modelo de cidade a seguir e as áreas a melhorar para esse objectivo”.
A União Europeia tem também dado atenção a esta questão nos últimos anos, promovendo trabalhos conjuntos entre diferentes cidades de vários países que consideram ter problemas comuns. É o URB ACT em que Coimbra também participa com cidades como Gdynia na Polónia, Gualdo Tadino e Siracusa em Itália, Mizil na Roménia, Santurtzi em Espanha, Seinajoki na Finlândia e a Triangle Region na Dinamarca, que se juntaram para estudar e propor acções concretas no que respeita a “melhorar serviços públicos através de um processo de inovação aberta”.
A integração dos factores de desenvolvimento urbano que bem podem ser aqueles dez acima apresentados, numa base tecnológica fornecida pelas TICE, será a chave para o sucesso futuro de qualquer cidade. A recuperação dos anos de atraso endémico e ainda o induzido pela estagnação económica dos últimos anos só se poderá conseguir num trabalho que tenha esta abordagem como base. Não nos podemos esquecer que, hoje em dia, e com a integração europeia isso é cada vez mais evidente entre nós, a competição faz-se cada vez mais entre regiões e mesmo cidades e não entre países.

Publicado no Diário de Coimbra em 21 de Abril de 2014