segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Pontes Culturais

De entre todos os tipos de laços que se podem estabelecer entre países, os culturais serão os que estabelecem raízes mais profundas, porque entre os povos e não entre agentes económicos ou políticos que, como se sabe, vão e vêm conforme ventos e interesses temporários. Merece portanto todo o relevo a notícia de que a Orquestra Clássica do Centro está de novo em Cabo Verde, através de um grupo de câmara, onde irá realizar vários concertos e ainda uma acção de formação numa escola. Não é a primeira vez que a OCC vai a Cabo Verde, onde já esteve em 2014 e 2015. Estas deslocações seguem-se a um estreito relacionamento de há vários anos com agentes culturais e responsáveis políticos daquele país irmão, que teve início em 2005, num festival realizado em Coimbra denominado “Coimbra à Descoberta do Mindelo” em que se deslocou a Coimbra uma representação da criação artística do Mindelo, que é cidade-irmã de Coimbra. 
Nessa altura, a OCC interpretou uma obra sinfónica do compositor cabo-verdiano Vasco Martins, um dos poucos compositores africanos da música designada como erudita, com reconhecimento mundial.
Na deslocação a Cabo Verde em 2014 a OCC participou na criação da Orquestra Nacional de Cabo Verde, no que se tornou um marco nas relações culturais entre os dois países, tendo o ministro da Cultura de Cabo Verde Mário Lúcio designado a OCC como membro fundador da nova Orquestra Nacional daquele país.
Mário Lúcio, que em 2015 veio a conquistar o Prémio Literário Miguel Torga Cidade de Coimbra com a sua obra “Biografia do Língua”, tendo participado como cantor no espectáculo que se seguiu à cerimónia de entrega do prémio que aconteceu em Julho, em Coimbra.
 Nesse concerto participou ainda Vasco Martins que apresentou várias das suas obras, numa sessão que terá ficado na memória de todos os que a ele assistiram.
Vasco Martins é também o coordenador do Centro de Estudos da Morna, sendo o responsável pela preparação da candidatura da Morna a património mundial imaterial da Unesco. 
Ainda durante os primeiros meses deste ano a OCC vai promover a gravação de um CD com obras de Vasco Martins para diversas formações de orquestra clássica e instrumentos solistas inspiradas na Morna, num projecto apoiado pela Direcção Geral das Artes.
A Morna e o Fado são patrimónios culturais que, hoje em dia, se considera terem raízes que se cruzam ainda com a modinha brasileira e que se desenvolveram autonomamente a partir do Século XVII.
Cesária Évora foi um dos expoentes da Morna, tendo levado a sua arte a todo o mundo, que se rendeu a essa grande artista. Por isso mesmo, a OCC editou a obra “Cesária – A Rota da Lua Vagabunda” da autoria de Vasco Martins e ainda do grande pintor cabo-verdiano Tchalé Figueira, que partilham histórias do convívio que ambos mantiveram durante muitos anos com Cesária Évora.
No próximo dia 20 será inaugurado o Museu do antigo campo de concentração do Tarrafal, essa vergonhosa memória colectiva que também partilhamos com Cabo Verde. 
Lá estarão representantes dos dois países ao mais alto nível, desde os primeiros-ministros aos ministros da Cultura, participando ainda o presidente da Câmara Municipal de Coimbra, que assim acompanha a Orquestra Clássica sediada na nossa Cidade, num acontecimento de elevado significado e grande importância para as relações entre os dois países. Foi em Coimbra que Mário Lúcio anunciou doar o montante do prémio Miguel Torga que lhe foi atribuído para ajuda da construção do Museu do Tarrafal. Certamente não por acaso, na cerimónia de inauguração deste Museu, actuará a Orquestra Clássica do Centro.
A Orquestra Clássica do Centro estabelece-se, assim, como um dos construtores de uma ponte cultural entre Cabo Verde e Portugal, firmando Coimbra como um dos seus pilares fundamentais. Num mundo atravessado por conflitos e lutas de interesses que minam um futuro em progresso e paz, é bom poder ver iniciativas que, pelo contrário, constroem a fraternidade, no respeito pelas diferenças, mas também pelo passado comum, baseadas no património cultural, de ontem e de hoje.


segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Admirável mundo novo? Outra vez?

Trazer a felicidade aos cidadãos parece ser o objectivo de muitas pessoas que se dedicam à política. Devo afirmar, desde já, que desconfio sempre de tais atitudes, ainda que pareçam suscitadas pelas melhores intenções, por me parecerem mais do domínio do irreal do que da prática de cuidar do bem comum, que é a governação.
No seu “Admirável Mundo Novo” Aldous Huxley alertava já, em 1933, para a tragédia de uma sociedade completamente organizada para trazer a felicidade a cada pessoa, que aliás nunca poderia fugir a essa mesma felicidade.
Muitas religiões estruturam-se à volta do conceito de um “homem novo”, livre das imperfeições humanas, à imagem de Deus, estado apenas possível de conseguir pela obediência a determinadas regras morais ou por um misticismo cego à realidade humana.
Ao longo da História, e à imagem deste desígnio de carácter religioso, foram-se sucedendo as situações, normalmente de tipo revolucionário, em que os homens entrariam num mundo novo, abandonado que estaria o velho. Foi assim na Revolução Francesa, em que o “antigo regime” desapareceu perante um novo no qual os cidadãos seriam todos iguais. Como sabemos, poucos anos depois desembocou no império de Napoleão o qual, logo de seguida, deu lugar ao regresso dos antigos “Luises”. 

Só posteriormente veio a República, de uma forma bem mais pacífica, recuperando os valores da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, mas já sem a pretensão de construir um “homem novo”.
No início do século XX, veio a revolução bolchevique que, de uma forma determinada e violenta, pretendeu criar o “homem novo”, desta vez chamado socialista, num regime que seria tão perfeito a trazer a felicidade a todos, que seria como um sol na terra. Todos sabemos qual foi o resultado deste regime que seguiu uma ideologia política como se de uma religião se tratasse. Esta característica leva ainda hoje muitos a defender a sua validade, dado que, perante a construção de um “homem novo” e a felicidade para todos, mesmo os sacrifícios e “eventuais” excessos normalmente inaceitáveis passam a ser compreensíveis e suportados, dando razão ao velho Huxley nos seus livros premonitórios. É também o motivo por que, enquanto se aceitam os comunistas que ainda hoje acreditam na “sua” religião, ninguém no seu perfeito juízo defende o nazismo que também queria construir um “homem novo”, mas neste caso louro, de olhos azuis e a dominar o mundo pela sua superioridade rácica e esmagamento e dominação de todas as outras raças consideradas inferiores ou mesmo infra-humanas.
Mesmo Portugal não fugiu à regra. Depois da chamada revolução Nacional de 1926 em que a tropa tomou o poder acabando com a 1ª República e instaurando a sua Ditadura, veio o poder civil de Salazar que se auto designou como “Estado Novo”. Novo pois, como se haveria de chamar, para estabelecer o contraste forte com o regime anterior da 1ª República responsabilizando-o por todos os problemas do país quando, na realidade, fora apenas a continuidade do nosso desgraçado século XIX?
Todos estes exemplos, e muitos mais que se podem extrair da História, se referem a situações de rotura violenta relativamente ao existente.
Nas democracias representativas como é a nossa, a substituição dos órgãos de soberania eleitos faz-se por escolha popular e não por revolução ou golpe de estado. De cada vez que se escolhe, tem-se um Presidente da República ou uma Assembleia da República de que emana um Governo que só são novos no primeiro dia. Essa designação cai logo no dia seguinte, havendo uma normal continuidade do Estado.

Assim sendo, em democracia não há novos presidentes para novos tempos. Há presidentes com competências definidas na Constituição e não outras, que devem exercer de acordo com a sua consciência e opções políticas; não deve haver presidentes em função de situações governativas, sejam elas do seu agrado ou não, que são sempre temporárias e substituíveis nas eleições, como aliás os presidentes o são todos. Afirmar o contrário é, no mínimo mostrar ingenuidade ou impreparação política ou, no máximo manifestar-se disponível a abrir a porta a outros mundos que não a Europa ocidental, livre e democrática.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Ano que começa

Quando os nossos antepassados mais longínquos começaram a praticar a agricultura, verificaram que havia fenómenos astronómicos ligados à periodicidade regular com que surgiam a chuva, o calor e o frio e de como isso influenciava a cultura dos produtos de que se alimentavam. A existência de estações tornou-se evidente e o seu conhecimento necessário para a mais adequada prática de sementeira e colheita dos produtos agrícolas. Essa periodicidade das estações surgia agrupada num outro período de tempo que acompanhava o Sol e a sua altura relativamente ao horizonte, de forma absolutamente regular. Daí surgiu o conceito de ano que se foi desenvolvendo lentamente, mas os egípcios que praticavam uma agricultura muito desenvolvida no vale do Nilo, já cinco mil anos antes de Cristo tinham adoptado um ano civil fixo de 365 dias. Sabemos hoje que o ano trópico usado para a regulação das estações e calendários solares tem a duração precisa de 365 dias, 5 horas, 48 minutos e 45,3 segundos, que é ligeiramente mais curta do que o ano sideral que é a duração da translação da Terra à volta do Sol em 50, 24 segundos por ano, acontecendo isso devido à famosa precessão dos equinócios que faz rodar a eclíptica sobre o equador celeste como um prato sobre uma mesa. Toda esta complicação, que é simples para os astrónomos e que estraga a vida aos astrólogos, teve implicações ao longo da História da Humanidade, obrigando à sucessiva adopção de diversos calendários ao longo dos tempos. Júlio César decidiu encontrar a melhor solução, daí o calendário Juliano que entrou em vigor 45 anos antes de Cristo, com 365 dias nos anos comuns e 366 dias nos anos bissextos, de quatro em quatro anos. 

Mesmo assim, algumas centenas de anos depois, dado que o calendário juliano tinha um erro anual de alguns minutos, o equinócio da Primavera já surgia cada vez mais afastado do dia 21 de Março, altura do ponto vernal em que o Sol passa para o lado de cima do equador celeste, no nosso hemisfério Norte. Por isso, no século XVI, num tempo em que o equinócio da Primavera já andava por 11 de Março, o Papa Gregório XIII promoveu a adopção de um calendário, que ficou conhecido por gregoriano, na base da duração do ano com um erro de apenas 27 segundos, o que significa um dia após 3.000 anos. Finalmente um calendário passou a ter um erro sem qualquer significado na vida das pessoas, durando até hoje como calendário seguido por quase todo o mundo.
Cada vez ouço mais pessoas dizer que a mudança de ano não interessa para nada e que a seguir a 31 de Dezembro vem o 1 de Janeiro e que nada muda. Para além do significado imediato de tal afirmação que revela um distanciamento cada vez maior das pessoas relativamente à Natureza que as rodeia, há algo mais, talvez mais profundo e importante. Na realidade, a artificialização da nossa vida quotidiana, potenciada pela internet, separa-nos cada vez mais do Universo e da Natureza, criando espanto e mesmo revolta generalizada, quando alguma tragédia acontece apenas pela natureza das coisas: vulcões, tremores de terra, furacões, inundações, epidemias, etc. A bolha protectora em que a vida moderna nos coloca permanentemente cria a ilusão de que estamos imunes à Natureza e que tudo à nossa volta existe para nosso conforto.
Mesmo a morte parece afastada do nosso quotidiano e é escondida, criando-se a ilusão de que não existe, quando na verdade começamos a morrer quando nascemos.

Este texto pode parecer algo fora do contexto do desejo de bom ano novo, mas foi mesmo a melhor maneira que encontrei para o fazer, meu caro amigo leitor. Ter consciência de quem somos, do nosso lugar na Terra e no Universo e perceber que o tempo passa é, penso eu, a melhor maneira de segurar o futuro que começa por nós mesmos e pelo que fazemos, a partir do primeiro dia do novo ano, neste caso 2016. Exercitar previsões sobre o que o futuro reserva, não passará de uma sublimação dos nossos desejos e ambições, actividade mais própria de charlatões e videntes tão numerosos hoje em dia, não obstante o conhecimento científico estar hoje ao alcance de todos. Que não entremos no ano de 2016 com optimismo ou pessimismo, mas com a noção de que ele será o que dele decidirmos fazer e a certeza de que essa resolução será a principal para que no seu final, 2016 tenha sido um bom ano.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Ano que chega ao fim



O ano que agora acaba pareceu uma montanha russa de emoções colectivas. A internet torna as notícias instantâneas em todo o mundo e junta-lhes a emoção transmitida pelas imagens, tantas vezes impressionantes e trágicas, servindo emoções que vão e vêm pelo mundo inteiro à velocidade da luz.
Logo em 7 de Janeiro, os enviados do auto-denominado califa Abu Bakr Al-Baghdadi que não é mais que um novo líder bárbaro assassino à semelhança de tantos outros da História da Humanidade, invadiram as instalações da revista satírica Charlie Hebdo em Paris e provocaram uma carnificina com 12 pessoas mortas. O ano não terminaria sem que mais enviados do mesmo assassino tivessem provocado, novamente em Paris, um novo atentado que causou 130 mortos.
Fugindo da guerra civil da Síria, mas também do Iraque e do Daesh, milhões de refugiados surgiram às portas da Europa, um número impressionante de famílias inteiras pelas estradas como não se via desde a II Grande Guerra.
No início do ano a Grécia viu a entrada de leão da extrema-esquerda com o Syriza no governo, que iria mudar tudo, impondo reestruturações de dívida e fim de austeridade, para depois observar a saída de sendeiro dos mesmos, seguindo a mesma política de austeridade de antes.
Em França, assiste-se a uma mudança política, com a Frente Nacional de Le Pen a registar sucessivos sucessos, provocando uma crescente radicalização que não é bom sinal para a Europa.
No Brasil, a presidente Dilma enfrenta uma hipótese de “impeachment” face a vagas sucessivas de denúncias de corrupção a um nível nunca visto, enquanto o país enfrenta a pior recessão das últimas dezenas de anos.

O preço do petróleo continuou na sua descida. Perto fim do ano, o cartel dos produtores teve uma reunião em que, em vez de diminuir a produção como se esperaria, decidiu aumentá-la ainda mais. Péssima notícia para os países que fizeram a sua economia depender do petróleo com a Venezuela à cabeça, mas também para a Rússia e Angola. Por outro lado, ao fim de sete anos, a Reserva Federal Americana aumentou a sua taxa de juro. Pouco, mas aumentou e agora deverão seguir-se os outros bancos centrais, primeiro na Inglaterra e depois certamente na União Europeia.
Perto do fim do ano, algumas notícias, quase irreais perante a enxurrada de más notícias, quase passaram despercebidas. Finalmente provou-se a existência de água em Marte, um foguetão que colocou mais de 10 satélites em órbita regressou à Terra e aterrou suavemente na posição vertical possibilitando reutilizações posteriores e, ainda mais importante, deram-se passos gigantescos no caminho da energia ilimitada e sem poluição através da fusão nuclear.
Em Portugal, as prisões do ex-primeiro Ministro José Sócrates e do ex-banqueiro Ricardo Salgado suscitaram as mais desencontradas reacções e acusações diversas aguardando-se, agora que esperam o fim dos seus processos em liberdade, que em 2016 os respectivos julgamentos venham mostrar o que realmente fizeram.
Depois de quatro anos e meio de sofrimento para tantos, pela aplicação do memorando de entendimento com a troika, tivemos eleições e os partidos do Governo PSD e CDS foram os mais votados. 
Mas não tiveram a maioria absoluta e o governo que formaram não passou na Assembleia da República. Após isso o líder do PS conseguiu um apoio parlamentar dos partidos à esquerda, o BE e o PCP, para formar Governo, assim quebrando o chamado “arco da governação” que durava desde 1976. 

Como aqueles partidos não partilham de nenhum dos princípios e valores políticos que enformam a União Europeia na sua organização económica, financeira e social, que o PS sempre tem defendido, o equilíbrio do apoio parlamentar deverá ser frágil e mesmo instável. O que se passou no inexplicado e incrível caso do Banif foi bem indicador desta situação potenciadora das maiores instabilidades e radicalizações.

Um ano já lá vai e outro vai começar, desejando aos leitores do Diário de Coimbra que 2016 seja melhor que 2015.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

TEMPO CONTADO: Star Wars

Do blog de Rentes de Carvalho


TEMPO CONTADO: Star Wars

Folhas que caem

Atrás da Serra do Açor, bem perto da Serra da Estrela, fica uma aldeia que, de entre todas as aldeias perdidas por aquelas serranias é aquela que, embora o seu nome seja Aldeia de S. Francisco de Assis, é conhecida apenas como “a Aldeia”. Também por lá nesta altura do ano em que o ameno Outono está a acabar para dar lugar aos frios que se aproximam trazidos pelo solstício de Inverno, as folhas das árvores características como os carvalhos e os castanheiros foram caindo, restando apenas algumas que os ventos facilmente arrancarão e levarão para longe.
Terras que foram de vida difícil, aquelas. Longe de tudo, ainda hoje as estradas que lá chegam, embora com bons pavimentos em vez da terra de há não muitos anos, têm tantas curvas que desencorajam as viagens de passeio por lá, ainda que as paisagens valham bem o sacrifício.
Duas circunstâncias moldaram a Aldeia de hoje: o volfrâmio e a emigração.
Durante a primeira parte do século XX, a descoberta de que o solo daquelas serras escondia quantidades imensas de um mineral precioso para a metalurgia daqueles tempos, particularmente a ligada ao fabrico de armamento pesado, atraiu a indústria da mineração e o interesse de muitos comerciantes clandestinos que ali vinham comprar o precioso minério. Vários escritores deixaram para a posteridade as histórias ligadas ao volfrâmio nas décadas de trinta e quarenta do século passado, lembrando-me de dois livros em particular, “Volfrâmio” de Aquilino Ribeiro e “Minas de S. Francisco” de Fernando Namora. 

Ao volfrâmio se deveu a capacidade financeira para mandar os filhos estudar para Coimbra ou Lisboa, devendo a Aldeia ser, de todas as da região, aquela que mais gente tem com cursos superiores, nascida nas décadas de quarenta e cinquenta, quando anteriormente era praticamente analfabeta. A partir dos anos quarenta, primeiro para as américas e depois principalmente para França, a emigração marcou toda a região. Hoje, consequência daqueles dois factores, a Aldeia está quase deserta. Quem foi para fora estudar, não voltou, ficando a trabalhar onde se formou. Os que emigraram, ainda fizeram casas na Aldeia mas na sua maioria não regressou definitivamente, porque os filhos e netos já não são portugueses e a Aldeia não lhes diz nada, a não ser como curiosidade familiar histórica.
A Aldeia também é minha, já que lá nasceu minha Mãe, numa família de sete irmãos, sendo a mais nova das quatro raparigas. Tenho assim conhecimento de muito do que se passou naquelas terras, já que nasci nos anos cinquenta, sendo a minha geração aquela que ouviu directamente dos próprios intervenientes as histórias hoje estranhas e mesmo mirabolantes ligadas ao volfrâmio, mas também à pobreza e extrema dificuldade da vida por aquelas serras ainda há menos de cem anos.
Conheço também muito bem as características próprias dos beirões. Tendo nascido naquelas terras longe de tudo, todos os elementos da Família de minha Mãe eram pessoas com uma educação e uma finura de trato que hoje causariam inveja a muitas pessoas urbanas e com mais instrução. Mas que não haja enganos. Por baixo daquela educação e até alguma humildade no trato, todos os elementos da Família, homens e mulheres, escondiam uma personalidade fortíssima aliada a uma percepção arguta das situações. Sei que estas características não eram só dos meus Avós e seus filhos, mas que eram partilhadas por grande parte das famílias da Aldeia, definindo portanto o carácter dos habitantes antigos daquelas serras.
O fim do Outono leva as últimas folhas das árvores, as mais resistentes. 
E, há poucos dias, levou também a última filha dos meus Avós da Aldeia, a minha Tia Teresa Escolástica, com 96 anos. Como os outros irmãos e irmãs, possuía, talvez ainda de forma mais marcada e que recordo com ternura, uma extrema gentileza, sensibilidade e permanente vontade de ajudar os outros.


Nunca, ou muito raramente, abordei questões pessoais nestas páginas. Confio que os leitores me perdoarão este desvio e certamente perceberão o significado pessoal do desaparecimento de toda uma geração para mim notável, mais ainda do que o apagar sereno de uma velhinha de quase cem anos de idade.


Nota: Fotos retiradas de https://www.facebook.com/saofrancisco.assis.9?fref=ts, agradecendo ao Marco Gil a publicação das fotos da Aldeia

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Um problema complexo


Passado que está o período de eleições legislativas e formação do Governo que, embora minoritário, foi aprovado por maioria na AR, é tempo de pensar no que interessa ao futuro dos portugueses.
Na sequência de quatro anos de austeridade ditada pela troika chamada por Portugal num momento de incapacidade de assumir os seus compromissos internos e exteriores, a evolução dos principais indicadores económicos e sociais chegou aos pontos de inflexão e começou finalmente a permitir encarar o futuro com outra confiança. Índices de desemprego e de emprego, produto e exportações deixaram a sua evolução negativa e passaram para o lado favorável. Os únicos factores em que a soberania nacional permite mexer depois da entrada no Euro, a despesa pública e a dívida pública, entraram também no caminho do controlo, o que permite que se larguem gradualmente as medidas de austeridade.
Mas não estamos numa zona de facilidades, nem devido à nossa situação de contas públicas, nem pela situação económica na União Europeia e no resto do mundo, pelo que o nosso caminho futuro ainda está cheio de perigos.

Continua a ouvir-se de forma bem audível que o caminho para Portugal deverá ser o crescimento económico induzido pelo consumo, assim se substituindo a desnecessária austeridade que se diz ter servido apenas para atrasar o país, por um caminho dito verdadeiramente virtuoso. Argumenta-se que cortar no défice corresponde apenas a cumprir ordens da União Europeia, em particular da Alemanha, pelo que atingido o patamar dos 3% a descida deverá ser mais lenta, sendo o correspondente aumento da dívida uma necessidade a renegociar, logo que possível.
Acredita-se na via keynesiana milagrosa: o crescimento económico vai fazer baixar o défice de forma gradual, através de aumento das receitas fiscais e diminuição de despesas sociais, por via da diminuição do desemprego. E como surgirá esse crescimento económico? Fomentando o consumo pelo aumento do dinheiro disponível. Acredita-se que, gastando-se mais, a economia crescerá automaticamente, como se ainda fossemos um país fechado ao exterior, com importações limitadas administrativamente e não um país pertencente a uma união económica e que importa grande parte do que consome.
No entanto, a verdade é que a questão fundamental da economia está nas empresas e na sua capacidade de produção de forma competitiva. É no ambiente favorável ao bom funcionamento das empresas que está o segredo do nosso crescimento económico. Os impostos altos sobre as empresas reflectem-se de 4 formas: preços mais altos nos bens que produzem, menos lucros, menos empregos ou salários mais baixos. Os estimados neo-keynesianos, chamemos-lhes assim, hoje acompanhados entre nós por marxistas-leninistas assumidos e ainda por trotskistas, poderão estar convencidos que a taxação alta das empresas é absorvida por menos lucros dos investidores ou que será possível aumentar os preços e venda dos produtos. A realidade não é essa: quem perde são os trabalhadores com menos empregos e salários mais baixos. A rarefacção do dinheiro, a extrema competitividade dos mercados globalizados e a fraca capitalização das empresas leva a isso, não haja dúvidas. E não vai melhorar, por mais que os esquerdistas radicais sonhem que a economia num regime de capitalismo (agora é politicamente correcto chamar-lhe liberalismo económico) funciona ou pode funcionar de acordo com as suas ideologias ou sonhos utópicos.
Percebe-se a aversão que muitos neo-keynesianos e companheiros de estrada têm à União Europeia e ao Euro. Já não podemos pôr as rotativas a trabalhar e fazer notas para pagar obras ou mesmo distribuir dinheiro. 
Há apenas uma alternativa, como a Grécia demonstra: cumprir regras ou abandonar o Euro. Fora disto, apenas a “apagada e vil tristeza” do eterno ciclo dos resgates a querer dar razão ao general romano que falava daquele povo na Ibéria que não se governa, nem se deixa governar.

O célebre jornalista Henry Louis Mencken disse um dia que “para qualquer problema complexo existe uma resposta que é clara, simples e errada”. É nisso que devemos pensar quando todos os dias ouvimos tanta gente a querer mostrar que os nossos problemas, designadamente os da economia que, lembre-se, gera os impostos que pagam tudo, desde o Estado Social ao funcionamento da máquina do Estado, funcionários e pensionistas incluídos, se resolvem de forma simples, pelo aumento do consumo interno e automático crescimento económico. O caminho de um futuro risonho é estreito e cheio de dificuldades. Não escolhamos o que parece óbvio e mais fácil, mas que todos teremos que pagar com juros no futuro.
Nota: Gráfico da autoria de Jorge Costa. 

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 14 de Dezembro de 2015

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Consumo de energia e clima

O que se passou na Alemanha nas últimas dezenas de anos relativamente às políticas energéticas é bem a imagem do drama causado pelas alterações climáticas e pela pressa e falta de bom senso nas tentativas desastradas de inverter a situação. A Alemanha é hoje um dos países do mundo com maior capacidade de produção de “energia verde” do mundo, mas é também um exemplo dos problemas trazidos pela política energética de subsídios a essa energia.
Depois de anos e anos a subsidiar fortemente a instalação de “quintas eólicas” e instalações solares, o consumo de carvão em centrais de energia está novamente a subir fortemente na Alemanha, porque a linhite é muito barata e o sistema energético montado precisa de suporte às energias do vento e do sol. De facto, quando em pleno funcionamento, as centrais eólicas e solares produzem muita energia a um preço muito baixo. Mas é só quando isso acontece, o que é impossível de prever. Sucede que, infelizmente, os picos de funcionamento dessas centrais é errático e o consumo de energia não o é, tendo flutuações diárias e anuais conhecidas, mas que só por acaso se podem aproximar da variação do fornecimento de energia “verde”. Tradicionalmente, as barragens dos rios serviam para “compensar” estes desvios e armazenar a energia produzida pelas centrais eólicas e solares quando a sua produção não é consumida pelo sistema. Esta reserva está no entanto esgotada nos países ricos, por questões ambientais ligadas com efeitos desastrosos nos eco-sistemas fluviais e mesmo alterações de costa, como nós portugueses sabemos muito bem. Dado que o preço da “energia verde” é muito baixo (tirando o investimento de instalação subsidiado pelo Estado), tal atira as centrais de gás natural para fora do mercado, obrigando ao seu encerramento, em favor das centrais a carvão. A decisão política de encerrar até 2022 as centrais nucleares alemãs que, como é sabido, produzem um kilowatt-hora de electricidade muito barato, vem também ajudar ao consumo cada vez maior do carvão que, ainda por cima, está cada vez mais barato, acompanhando a descida dos preços dos combustíveis fósseis provocada pela grande exportação americana do “shale-gas”. Isto, quando a queima de carvão produz duas vezes mais CO2 que a queima de gás natural. O exemplo alemão, com as suas contradições graves merece ser conhecido, porque demonstra as consequências do erro de uma passagem demasiado brusca dos sistemas energéticos clássicos para os “verdes”, resultado daquilo a que os políticos chamam muitas vezes “desígnios” que vêm a sair muito caros para os mesmos de sempre que são os consumidores e pagadores de impostos. Enquanto os consumidores domésticos alemães pagam hoje €0,30 por cada kilowatt-hora, os seus vizinhos franceses pagam €0,16, consequência das respectivas políticas energéticas nacionais.

Existem ainda muitas dúvidas sobre qual o papel efectivo da actividade humana no aquecimento global. Os cientistas que se dedicam ao estudo do clima não conseguiram até hoje criar um modelo que explique o funcionamento do clima mundial dada a complexidade do sistema em causa, de que se destaca o actual desconhecimento do funcionamento das nuvens, essencial para o circuito da água e das variações térmicas. No entanto, dois factos são indesmentíveis: o primeiro é o aquecimento global nos últimos cem anos, com um factor de crescimento acrescido a partir de meados do século XX; o segundo é o crescimento exponencial da emissão de CO2 causada pela actividade humana a partir dos anos 50, que continua nos dias de hoje com consequências, essas já bem conhecidas, no efeito de estufa na atmosfera terrestre.

É essencialmente a prudência que dita a necessidade e mesmo urgência na adopção de alternativas energéticas. A conferência internacional que está reunida em Paris acontece depois de ter terminado em 2012 o chamado protocolo de Kyoto de 1997. Os resultados deste não foram grande coisa. Se em 1995, ano da conferência que deu origem a Kyoto, a concentração de CO2 na atmosfera era de 361 partes num milhão, em 2014 esse valor tinha subido para 399, sendo esse igualmente o ano com temperaturas à superfície mais altas desde que são medidas. Até agora o acordo dos países presentes na conferência, é de que a subida da temperatura desde o início da industrialização não poderá exceder os 2º centígrados, quando até hoje essa subida foi de 0,9º. Todos sabemos o valor destes limites artificialmente impostos, que é diminuto ou nenhum. Mas, ao menos, que a conferência sirva para mostrar os erros passados e actuais e que demonstre a necessidade de investir fortemente na procura de alternativas fortes para produção e armazenagem de energia no futuro, não caindo nas asneiras de que a Alemanha é hoje exemplo.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 7 de Dezembro de 2015

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

A Golpada

Com diminuta frequência, pelo menos relativamente àquela que eu preferiria, tenho de vez em quando comentado nestas crónicas algumas obras de arte que me chamam mais a atenção, umas vezes livros, outras pinturas, mais vezes composições musicais. Por alguma razão que eu próprio não descortino, nunca sucedeu escrever acerca de um filme, embora o cinema esteja claramente dentro dos meus interesses e seja na actualidade uma das formas de arte mais relevantes pelo impacto que tem na sociedade e em cada um de nós.
Na passada quinta-feira, um dos canais de televisão passou um filme que me deu muito gosto rever, alguns anos depois de o ter visto pela primeira vez. Com o nome original “The Sting”, o filme recebeu em Portugal o nome de “A Golpada”.e foi um tremendo êxito de bilheteira logo após a sua estreia em 1973, tendo mesmo recebido vários Óscares. Trata-se de uma comédia dirigida pelo realizador George Roy Hill baseada na actividade de dois vigaristas que resolvem montar um esquema para enganar um banqueiro poderoso. Os papéis dos dois personagens principais são representados pelos actores Paul Newman e Robert Redford, a mesma dupla fabulosa do não menos fantástico filme “Butch Cassidy and the Sundance Kid”, sendo a vítima da burla representada por Robert Shaw, o que diz logo da qualidade da representação.
Ao longo do filme, que se passa na Chicago dos anos trinta com o que isso tem de significativo em si mesmo, vão surgindo as diversas fases da construção da “golpada” que passa por ir convencendo e dando confiança crescente á vítima, em preparação para o grande golpe final em que irá perder uma enorme quantidade de dinheiro. Desde a montagem de um cenário fictício em que todos os supostos intervenientes como empregados, jogadores, etc. são participantes da farsa, até à própria participação da polícia também ela enganada e envolvida nos esquemas montados com vista a demonstrar credibilidade junto do enganado, tudo vai acontecendo de forma programada para atingir o objectivo final. O conto do vigário, em que a vítima é levada ao convencimento de que ela é que está a levar o vigarista ao engano, é a demonstração de como a mente humana perversa é a que mais facilmente se deixa levar por quem a sabe manipular. O realizador vai-nos conduzindo pelo enredo, à medida que os factos se vão desenrolando, não se sabendo se o que vamos vendo é verdade ou apenas o engano de cada um dos personagens
O filme foi feito com base num romance de David Maurer aparentemente inspirado em factos reais pelo que, mais uma vez, a arte segue a vida real e não o contrário. Nas mais variadas áreas da vida surgem pessoas que conseguem definir objectivos difíceis e mesmo genericamente tidos como impossíveis, atingindo-os através da manipulação inteligente de adversários e acompanhantes. Nestas actividades, antes de se chegar ao fim, ninguém sabe em que lado está, podendo imaginar estar num lado quando na realidade está noutro, trocando-se de perspectiva à medida que os enredos avançam, sendo o manipulador o único que sabe onde está e o que pretende, de princípio ao fim. Por vezes, o próprio fim é percepcionado de forma errada pelos intervenientes que, eventualmente, só muito mais tarde se vêm a aperceber do que realmente se passou e a maneira como foram enganados, pensando ter ganho alguma coisa.

Por vezes ficamos com a sensação de que o manipulador tem o seu maior gosto no processo em si e não apenas ganhar o que quer. No diálogo final de a “Golpada” Henry Gondorff representado por Newman, na sequência de uma conversa anterior sobre os motivos daquelas actividades, pergunta a Johnny Hooker representado por Redford se o gozo do sucesso não é realmente suficiente. A resposta do parceiro da vigarice, certamente a pensar no que ganhou, é que não e nesse momento hesita, acrescentando que anda lá perto. Nos filmes, à acção segue-se a passagem das informações sobre o filme, que servem para nos devolver à realidade. Na vida real, o sucesso ou insucesso das manipulações vem depois, para além da acção espectacular, quando normalmente se conclui que não é possível enganar toda a gente ao mesmo tempo, durante muito tempo.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 30 de Novembro de 2015