segunda-feira, 12 de junho de 2017

A Europa e as suas fronteiras



O fim da União Soviética em 1991 levou à destruição de todos os equilíbrios que, embora instáveis, conseguiram que a chamada “guerra fria” nunca tivesse aquecido ao ponto de provocar a catástrofe nuclear com consequências que nem se imaginam. Durante alguns anos a nova ordem internacional mais pareceu uma desordem, onde o terrorismo encontrou um terreno fértil com atentados pavorosos a fazer lembrar os filmes que se dedicam ao tema do pós-apocalipse nuclear.
Lentamente a Rússia, conduzida a uma expressão mais reduzida denominada Federação Russa, foi-se reorganizando internamente e recuperando algum do seu poderio militar anterior, enquanto a economia demasiado dependente da produção de petróleo e gás natural tarda a impor-se num tempo de desregulação internacional. Putin encontra agora um mundo que não é favorável ao crescimento da influência russa por que ele tão notoriamente se bate, utilizando para isso todos os meios de que dispõe, mesmo alguns que se suspeita serem menos lícitos.
Um dos maiores obstáculos que encontra reside na nova configuração política na Europa de Leste, particularmente nos países que, até à queda do Muro de Berlim, pertenciam ao Pacto de Varsóvia na sequência da sua ocupação militar pelas forças comunistas no fim da Segunda Guerra Mundial. Em boa parte das populações desses países, os exércitos do Pacto de Varsóvia eram vistos como força de ocupação, bastando relembrar o sucedido nas revoltas na Hungria e na Polónia em 1956 e na Checoslováquia em 1968. 

Esses países, na sua quase totalidade, aproveitaram estes anos de fraqueza russa para restabelecerem democracias parlamentares e se aproximarem da União Europeia e nela entrarem. Mas, mais importante e muito mais perturbador para Moscovo, todos esses países ex-comunistas entraram na NATO antes de aderirem à União Europeia. Este facto significa claramente que, antes das decisões políticas e económicas, trataram de assegurar a segurança militar que a NATO lhes proporciona face ao gigantesco país a Leste que os dominou nos mais diversos aspectos desde 1945.
Foi assim que, logo em 1999, a NATO passou a contar com a República Checa, a Hungria e a Polónia como novos membros. Em 2004 aderiram a Bulgária, a Roménia e ainda os países bálticos que tinham sido ocupados militarmente pela ex-URSS e recuperado a independência após 1991: a Estónia, a Letónia e a Lituânia. Em 2009 foi a vez de a Croácia e a Albânia aderirem à NATO.
No passado dia 5 de Junho, coube ao Montenegro passar a fazer parte da NATO. Trata-se de uma participação simbólica dada a reduzida capacidade militar deste pequeno país, mas com um significado enorme para a Rússia. Com a entrada do Montenegro, toda a costa Norte do Mediterrânio passou a estar controlada pela NATO, desde o Sul de Espanha até à fronteira Síria, tendo agora perdido o porto da Baía de Kotor, últimas instalações em toda esta costa que a sua Armada ainda utilizava livremente até há pouco tempo.
Mas a entrada do Montenegro na NATO teve ainda outro simbolismo, se bem que circunstancial. Foi o primeiro ministro do Montenegro Dusko Markovic que o presidente americano Donald Trump “atropelou” na cimeira da NATO em 25 de Maio, para se colocar na linha da frente da fotografia oficial.
Foi nessa cimeira que Trump resolveu publicamente criticar os parceiros de aliança pelos seus baixos gastos militares, criando um clima de menor confiança entre os dois lados do Atlântico. Música celestial para os ouvidos de Putin, nada satisfeito com o passo dado pelo Montenegro: Markovic foi publicamente humilhado por Trump na cimeira numa atitude que se tornou viral por todo o mundo, e o principal membro da NATO tornou pública a sua desconsideração pelos países europeus.A Europa e as suas fronteiras

O palco do xadrez mundial político e militar está a mudar drasticamente. Do outro lado do Atlântico, está o presidente Trump para quem a estratégia política se parece reduzir aos negócios. Do lado oriental da Europa está o presidente Putin que sabe muito bem o que quer e que está disposto a tudo para o conseguir. Nesta altura, convinha que a União Europeia tivesse alguma capacidade de visão estratégica e se unisse perante o essencial, em que se inclui a segurança.

segunda-feira, 5 de junho de 2017

Coimbra, cidade europeia




Nestes tempos de evidente afastamento entre a Europa e os Estados Unidos da América, consequência das atitudes isolacionistas muito simples mas altamente simbólicas do novo presidente dos EUA, nada como revisitar George Steiner e a sua “Ideia da Europa” para daí retirar consequências práticas para a nossa vida sócio-política.
Quando tantos de nós nos sentimos algo perdidos, sem perceber bem o que se passa, descobrindo subitamente novos nacionalismos por todo o lado agarremos a oportunidade para olhar à nossa volta, reconhecer o que de bom existe no nosso passado sem saudosismos nem exclusivismos, perceber a essência de onde vimos, porque somos assim e relançar o futuro em coerência com a nossa História e o nosso presente.
Depois da Segunda Guerra Mundial a Europa, como aliás boa parte do resto do mundo, pareceu esquecer muito do seu legado cultural, esmagado pelo imediatismo das produções americanas de onde a beleza anda completamente arredada, fosse no cinema, na música ou na maneira de vestir e até de falar. Tudo ajudado pela língua “oficial” na nova cultura difundida pela internet, o inglês falado à maneira americana.
Mas a História da Europa a que pertencemos é rica em cultura, quer olhemos para as pedras/arquitectura, quer observemos as mais variadas manifestações artísticas, da música à pintura ou à literatura. Sem esquecer os usos e costumes e maneiras de viver.

As ruas das nossas cidades respiram história na sua génese e evolução ao longo dos séculos e mesmo na sua toponímia que recorda nomes ilustres da política, mas também cientistas, poetas, romancistas, músicos ou pintores. A sua escala é humana, ao contrário das cidades americanas construídas para se circular de automóvel, com as suas avenidas com dezenas de quilómetros de extensão.
Se quem me leu até esta linha se lembrou de Coimbra, tem toda a razão. Coimbra é uma cidade tipicamente europeia, com os seus monumentos medievais, alguns deles já construídos sobre outros edifícios muito mais antigos. As ruas estreitas desenvolvem-se num imbrincado orgânico em que a sua toponímia ainda há poucas décadas lembrava as profissões que se exerciam em cada um delas. Um antigo paço real foi transformado numa das universidades mais antigas da Europa e até existem cafés, os cafés que George Steiner também considerava uma das características mais profundas do viver europeu.
Nem será por a Unesco ter considerado boa parte da nossa cidade como Património da Humanidade, precisamente aquela que se relaciona com a Universidade, a Rua da Sofia/Sabedoria e os seus edifícios da Alta, antigos e modernos, que Coimbra passou a distinguir-se. Essa classificação apenas chama a atenção para algo que existe e é muito antigo e distinto. Na realidade, a Cultura é o que distingue Coimbra das outras cidades. Toda a relação entre as pedras, as personagens históricas e as suas vivências chegam até nós como um legado histórico mas cultural na sua essência, porque moldou aquilo que somos hoje.
A cultura é muitas (demasiadas) vezes encarada como a flor na lapela da governação, aos mais diversos níveis incluindo o municipal. Nada de mais errado. Antes pelo contrário, devemos ter consciência de que a área mais importante de uma autarquia como a de Coimbra é a da Cultura porque, muito para além de ser uma programadora de eventos sempre pontuais no tempo, deve catalisar a produção cultural da Cidade e ainda enformar toda a restante actividade municipal dando-lhe a característica diversa e claramente humanista da afirmação cultural. E o ensino superior de Coimbra deverá também olhar à sua volta e verificar como o economicismo e a tecnocracia o têm levado a ficar para trás no que toca ao ensino artístico. A Universidade criou há alguns anos a faculdade de Arquitectura, mas o ensino das Belas Artes e da Música a nível superior não pode continuar arredado de Coimbra, até porque não só Lisboa e o Porto o têm, mas também cidades como Aveiro ou Castelo Branco já deram esse passo.
Pela sua dimensão, Coimbra é uma cidade média europeia, sendo mesmo a única a sê-lo em toda a região Centro. Mas deve ter a ousadia, ou mesmo a coragem, de se afirmar também culturalmente como tal.

segunda-feira, 22 de maio de 2017

O valor dado ao planeamento



Em 2007 foi aprovado o PNPOT (Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território). Abrangendo todo o território nacional constituía o vértice da política do ordenamento do território, e era o último passo para que o país pudesse dispor de um conjunto de planos que permitisse finalmente ordenar devidamente o seu território na sua globalidade e de forma coerente.
Que o planeamento do território é uma necessidade, penso ser pacífico e qualquer pessoa que viaje pelo país pode ver as consequências da sua falta durante muitos anos. Na realidade, um dos principais problemas nacionais é a falta de planeamento em todos os sectores, com a consequente descontinuidade de políticas. Se em algumas áreas as consequências da falta de planeamento se sentem mas não são visíveis a olho nu por toda a gente, no que respeita ao território os erros ficam expostos e a sua correcção é, as mais das vezes, extremamente cara ou mesmo impossível de fazer num prazo razoável.
Com poucas excepções, a política de ordenamento do território só começou a ser efectiva em Portugal com o surgimento dos Planos Directores Municipais (PDM’s) em 1982, tendo-se seguidamente criado os Planos Regionais de Ordenamento do território (PROT’s) logo no ano seguinte. Com algumas contradições pelo meio, só em 1998 é que Portugal passou a contar com “um conjunto coerente e articulado dos instrumentos de gestão territorial”, através da aprovação da Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território e de Urbanismo. Assim se pretendeu criar condições legais para integrar de forma harmoniosa os planos aos mais diversos níveis, desde o local até ao nacional. Percebe-se facilmente que se, por exemplo, cada município define os objectivos de ocupação do seu território de acordo com algumas regras definidas, não faz sentido que todos eles queiram ter equipamentos como universidades ou redes de infraestruturas independentes. Como as decisões sobre localização de aeroportos internacionais não podem ser tomadas a nível local ou regional.
A aprovação do PNPOT em 2007 foi o corolário de um trabalho de muita gente competente e dedicada, iniciado depois da decisão governamental de lhe dar início, tomada em 2002. Tendo a sua componente técnica, a cargo da Direcção Geral do Ordenamento e do Território e Desenvolvimento Urbano (DGOTDU), sido terminada em 2005, seguiu-se-lhe uma fase de concertação com as mais diversas entidades públicas, entre as quais seis instituições universitárias e a seguir um período de discussão pública. Diversas e profundas alterações foram introduzidas, até que o documento final fosse objecto de aprovação governamental e entrasse em vigor.

Não vou aqui entrar em comentários sobre o PNPOT, o que já fiz em tempos, salientando agora apenas que, para a nossa região, prevê o “Sistema Metropolitano do Centro Litoral, polígono policêntrico com destaque para Aveiro, Viseu, Coimbra e Leiria” que, obviamente, penaliza Coimbra que deveria ser considerada como central neste sistema metropolitano, como aliás já foi defendido pela Câmara Municipal.
O que agora, dez anos depois, parece relevante, é que a actual Secretária de Estado do Ordenamento do Território veio há poucos dias a Coimbra dizer que o PNPOT vai ser actualizado, porque “o país mudou e as necessidades são outras”. Para esclarecimento (e espanto) dos cidadãos, acrescentou ser difícil fazer um balanço por não existir “informação sistematizada”. E explicou que “a estrutura de avaliação prevista para efeitos de acompanhamento do PNPOT não foi implementada, o observatório de ordenamento do território não foi criado e ficaram por realizar a monitorização e avaliação regular do PNPOT e o seu programa e medidas”. Acrescento que no próprio documento do PNPOT estava prevista a criação destes instrumentos seis meses após a sua entrada em funcionamento.
Apetece dizer: valha-nos Deus com os governantes que temos tido! Os defeitos ancestrais continuam a todos os níveis. Gasta-se dinheiro e tempo para deitar trabalho para o lixo com o à-vontade de quem sabe que nunca lhe serão pedidas contas pela incúria, falta de responsabilidade e incompetência ao mais alto nível, com um total alheamento dos cidadãos que tudo pagam com os seus impostos e que nem se apercebem do que acontece.

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Há cem anos, a revolução soviética



Foi em 1917 que Lenine levou a cabo a revolução que haveria de ser a primeira e mais consequente tentativa de construir o socialismo, levando à prática as teorias desenvolvidas por Marx e Engels no século XIX. Foi longamente pensada, uma vez que já em Outubro de 1914 Lenine escrevia ansiar pela derrota da Rússia na Grande Guerra, para mais rapidamente acabar com o czarismo, almejando mesmo transformar a guerra europeia em guerra civil no seu país. Quando as dificuldades e extremas privações sentidas pelo povo, agravadas pelas consequências da guerra, chegaram a um ponto insustentável, unidades do exército cansadas da longa guerra juntaram-se aos populares revoltosos em Petrogrado (S. Petersburgo) em 8 de Março de 1917 (23 de fevereiro pelo calendário russo de então) e o czar demitiu-se poucos dias depois. A Alemanha, que passava por grandes dificuldades na guerra, viu aqui uma oportunidade para se livrar da frente russa e ajudou Lenine a sair do seu exílio na Suíça e providenciou o seu transporte de comboio para a Rússia, tendo chegado a Petrogrado em 16 de Abril de 1917.
Após a inesperada abdicação de Nicolau II, formou-se um governo provisório dirigido por Kerensky, um político fraco e incompetente que foi incapaz de suster os ímpetos revolucionários dos bolcheviques liderados por Lenine e Trotzky. 

Em 7 de Novembro os bolcheviques derrubaram o governo provisório e tomaram o poder, apressaram-se a assinar um armistício com a Alemanha em 15 de Dezembro e puseram um fim à incipiente tentativa de democratização do país, dando de imediato início à caminhada para impor a “ditadura do proletariado”. Apesar de tudo, Lenine não ousou opor-se à realização de eleições para uma Assembleia Constituinte em 12 de Janeiro de 1918. Em 750 deputados eleitos, os bolcheviques apenas conseguiram eleger 180, pelo que a Assembleia Constituinte passou a ser um obstáculo ao exercício do poder absoluto pelos comunistas dos “Sovietes de Operários, Camponeses e Soldados” e foi rapidamente dissolvida. A partir daqui a História é conhecida, originou muitos milhões de mortos e a primeira experiência de construção do socialismo só terminou 74 anos depois.
Certamente não por acaso, a leitura do que se passou na Rússia há cem anos
parece um guião do que viria a suceder em Portugal no chamado PREC–“Processo Revolucionário Em Curso” que se seguiu ao 25 de Abril de 1974. Após o derrube do anterior regime houve uma fuga para a frente levada a cabo por comunistas e esquerdistas que desembocou no V Governo Provisório liderado por Vasco Gonçalves. Também na eleição da Assembleia Constituinte os resultados haviam sido desastrosos para as forças comunistas e igualmente houve tentativas para a manipular, quando não para acabar com ela, tendo mesmo havido um cerco do edifício pelos “operários da cintura industrial de Lisboa”. São eloquentes as imagens da saída dos constituintes após o sequestro, com a evidência da diferença do tratamento pelos manifestantes dos deputados comunistas e de todos os outros, quando finalmente sairam. Só que, apesar da propaganda maciça, na verdade as “condições objectivas” não eram as mesmas da Rússia de 1917 e a própria União Soviética decidiu cortar à última hora o apoio aos golpistas de esquerda. E o 25 de Novembro de 1975 em Portugal acabou por sair ao contrário do 7 de Novembro de 1917 na Rússia, abrindo-se o caminho para a estabilização da democracia efectiva que temos hoje, com a feliz integração dos que a combateram de uma ou outra maneira.

Passam agora cem anos sobre o ano de 1917, durante o qual tiveram lugar todos estes acontecimentos, que tanta importância tiveram em todo o mundo, com consequências que ainda perduram. Hoje em dia, de todas as experiências de construção do chamado socialismo real, sobram apenas uns exemplos tristes e irrelevantes, como a Coreia do Norte e Cuba, a que uma trágica experiência chamada “revolução bolivariana” na Venezuela faz todos os esforços para se juntar. A História destes cem anos mostra, com uma evidência indesmentível, que nem em um único sequer dos países que tiveram partidos comunistas a governar existiu algum dia democracia com escolha livre dos seus governantes pelos cidadãos. Apesar disso, persistem ainda entre nós mitos sobre a construção de um “homem novo”, numa demonstração de como o materialismo dialético, oh suprema ironia!, se transfigurou numa fé e partidos políticos em igrejas dogmáticas que nem sequer prescindem das suas manifestações colectivas.