segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Um país de luto



No dia 17 de Junho deste ano, ainda o Verão não tinha começado, ocorreu a grande tragédia de Pedrógão Grande, provocando a morte de 64 mortos, nas condições de que todos estamos recordados. Naquele dia, o Estado falhou numa das suas funções mais básicas, que é garantir a segurança dos cidadãos.

O tempo foi passando, o Verão decorreu sem incidentes de maior no que toca a incêndios, veio Outubro, o Governo como habitualmente entregou a sua proposta de Orçamento Geral de Estado para 2018 no último momento legal e a Comissão Técnica Independente entregou o seu relatório dentro do prazo estabelecido o qual, por uma vez, foi imediatamente tido como sendo de excepcional qualidade.

No que respeita aos incêndios, a proposta de OGE para 2018 pouco alterava em relação ao anterior mostrando que, apesar do sucedido em Pedrógão, os incêndios não constituíam uma prioridade governamental. Quanto relatório da CTI, o Governo informou o país que iria promover alterações na organização da prevenção e combate aos incêndios de acordo com o aí proposto. Numa completa modorra governativa, esquecia-se deliberadamente a gravidade do que no relatório se escreveu sobre as causas do sucedido em Junho. Nada na actuação do Governo indiciava que reconhecesse responsabilidades das suas estruturas de combate aos incêndios no sucedido em Pedrógão.

Estava tudo na paz dos anjos como se costuma dizer, quando surgiu o fim de semana de 15 de Outubro. Já se tinha ultrapassado a fase crítica designada por “charlie” no que toca a incêndios e passado à fase “delta” no dia 1 de Outubro. Em consequência, os meios de combate aos fogos tinham sido drasticamente reduzidos. A definição burocrática da época de incêndios desenhada pela ANPC assim o mandava fazer. E a tragédia aconteceu. Um incêndio iniciado na Serra da Lousã encontrou as condições climatéricas óptimas para se desenvolver e quase toda a Beira ardeu, deixando novamente dezenas de pessoas mortas, centenas de casas ardidas, inúmeras fábricas destruídas, mais de duzentos mil hectares ardidos numa devastação inaudita incomparável a qualquer situação desse tipo acontecida antes.

O mais grave e mesmo aflitivo em toda esta situação é constatar que, entre 18 de Junho e 15 de Outubro nada, mas mesmo nada, foi feito para prevenir uma nova tragédia que globalmente contabiliza mais de cem mortos, pessoas que viviam entre nós e que desapareceram, vítimas da falência do Estado em todas as suas dimensões. A coberto de aguardar por um relatório o Governo ficou burocraticamente à espera que o tempo passasse e eventualmente fosse esquecido Pedrógão como um azar pontual mostrando que o Governo, no seu conjunto, não tinha aprendido nada com a tragédia de Junho.

As atitudes pessoais dos governantes durante os incêndios de Outubro, com o Primeiro Ministro à cabeça, vieram sobrepor-se à manifesta incapacidade do governo lidar com esta crise. A arrogância patenteada evidenciou a soberba e falta humildade de uma determinada classe política cujo poder ofusca a visão do país real que é Portugal.

Salvou-se o Presidente da República que, ao contrário daqueles, se juntou aos portugueses no seu imenso sofrimento e, a partir de Oliveira do Hospital, resolveu dar um murro na mesa da insensibilidade e incapacidade de tomada de decisões. Obrigado, Presidente Marcelo.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Os portugueses votaram, está escolhido



Passados que estão quinze dias sobre as eleições autárquicas, é já possível observar os respectivos resultados com algum distanciamento que permita uma abordagem fria dos números e de algum do seu significado político.

Há muito tempo que defendo que os eleitores fazem as suas opções eleitorais através de um conjunto de factores pessoais, numa simbiose de pura opção política com um sentimento de adesão afectiva a pessoas que se apresentam a escrutínio, mais ainda que a projectos. Este último factor é ainda mais visível e frequente nos casos de rejeição, do que nos de adesão. O paradigma nacional desta situação é o caso do PRD que, surgido do nada, obteve praticamente 19% nas eleições legislativas de 1985 que saíram do eleitorado habitual do PS. Aquele partido serviu apenas para cortar o vínculo afectivo ao PS daqueles eleitores, que ficaram “soltos” para votar em massa no PSD nas eleições seguintes em 1987, naquela que foi a primeira maioria absoluta de um partido desde 1974. É minha convicção que o PSD não receberia nunca aqueles votos, se antes não tivessem saído do PS para um receptor intermédio, dado que PS e PSD são os dois maiores partidos do nosso sistema político e, portanto, os maiores rivais entre si.

Nestas eleições autárquicas de Coimbra observou-se um fenómeno de transferências de votos com algumas semelhanças com aquela situação. Em minha opinião não é possível fazer uma análise coerente e sustentada de uns resultados eleitorais sem atender também aos resultados de eleições semelhantes anteriores, interessando mais olhar para os grandes números do que para o pormenor dos resultados a nível de freguesias. Irei aqui utilizar os resultados a partir de 2009, último ano em que o PSD ganhou a Câmara Municipal com Carlos Encarnação, a quem daqui saúdo.

Assim, em primeiro lugar, é evidente a grande estabilidade das votações no Partido Socialista: para a Câmara Municipal, que aqui servirá de referência em todos os números, em 2009 o PS, não vencendo, obteve 24.377 votos, em 2013 obteve 22.631 votos ganhando a Câmara e em 2017 teve 24.232 votos, vencendo de novo as eleições. Aproveito para aqui felicitar Manuel Machado pela sua nova vitória, extensiva a Carlos Cidade pelo seu trabalho político eficiente à frente do PS de Coimbra.

No que respeita aos resultados do Partido Social Democrata, deve-se fazer uma análise em conjunto com o Centro Democrático Social. Embora em 2013 não tenham ido coligados, utilizarei aqui a soma dos dois partidos nessas eleições, dado que nas restantes aqui abordadas houve coligação. Não refiro aqui os outros partidos dessas coligações que, pela sua reduzida dimensão, não alteram os resultados finais das votações tendo apenas um valor simbólico, ainda que possam ser importantes por isso mesmo. Nas eleições de 2009, a coligação PSD/CDS obteve 29.357 votos, ganhando a presidência da Câmara. Em 2013 a soma dos resultados do PSD e do CDS foi de 21.439 votos, o que significou uma perda de 7.919 votos relativamente a quatro anos antes. Nestas últimas eleições do passado dia 1 a coligação obteve 18.151 votos, numa significativa e algo surpreendente perda de 3.287 votos, comparando com 2013. Na realidade a coligação, desde a última eleição em que obteve a vitória, que foi em 2009, perdeu no total o apoio de 11.206 eleitores.

Como é evidente que aqueles votos não foram para o Partido Socialista que mantém uma grande estabilidade eleitoral há muitos anos, para algum lado haveriam de ir dado estarem “soltos” em termos eleitorais e não se verificar subida na abstenção. O surgimento de uma nova alternativa corporizada pela candidatura “Somos Coimbra” encabeçada por José Manuel Silva veio proporcionar àqueles eleitores a possibilidade de fazerem a sua escolha sem regressarem ao PSD/CDS, nem se voltarem para o PS. O resultado da candidatura Somos Coimbra foi de 10.976 votos, o que corresponde, com uma aproximação impressionante, ao número de eleitores perdidos pelo PSD/CDS nos últimos anos (11.206). São cerca de 11.000 eleitores que passaram directamente da coligação para uma proposta política surgida do nada, embora personificada em alguém bem conhecido e com uma afirmação própria evidente com o seu passado à frente da Ordem dos Médicos, ainda por cima numa cidade em que a área da saúde tem a relevância que todos conhecemos.

Ao contrário do que muitos pensarão, não me parece que, hoje em dia, as campanhas eleitorais tenham uma grande influência nos resultados eleitorais, por maior voluntarismo que evidenciem. Evidentemente têm que ser feitas, se possível com o mínimo de custos possível, mas pouco alteram no sentir dos leitores que é formado ao longo de quatro anos na observação do exercício das responsabilidades políticas dos eleitos, quer os escolhidos para governar, quer os que têm que fazer oposição. E aqui, permitam-me que o diga, os partidos de oposição não podem restringir a sua acção política à comparência nas sessões do executivo municipal, apenas esperando pelas novas eleições. Quando tal sucede, em vez de exercerem um trabalho político permanente e construtivo junto das pessoas e dos seus problemas, perdem o contacto directo com a sociedade com óbvias consequências, também a nível eleitoral.

Quanto aos partidos mais à esquerda, não haverá muito a dizer, a não ser constatar a descida eleitoral, quer da CDU/PCP que perdeu quase 1.500 votos mantendo ainda assim o seu vereador, quer dos Cidadãos por Coimbra desta vez mais conotados com o BE que perderam 1.100 eleitores não conseguindo entrar no executivo municipal.

Publicado no Diário de Coimbra em 16 de Outubro de 2016

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Viva a Música



Na última semana a Orquestra Clássica do Centro deu-nos a oportunidade de assistir a dois concertos notáveis e completamente diferentes do habitual. Tratou-se de duas incursões em tipos de música não erudita, que se saldaram em êxitos longa e entusiasticamente aplaudidos pelas assistências dos espectáculos.
O primeiro desses concertos teve lugar no auditório do Conservatório de Música de Coimbra e integrou-se nas iniciativas da passagem de 30 anos sobre a morte de José Afonso, sob o mote “Insisto não ser tristeza” do poema do autor com o mesmo nome. Os arranjos das canções de José Afonso para orquestra tiveram diversos autores, como José Firmino, Sérgio Azevedo ou Virgílio Caseiro, entre outros. Deve-se salientar que o concerto se iniciou com a estreia de uma peça para orquestra da autoria de José Firmino, intitulada “In Memorian”, em que o compositor de Coimbra homenageia José Afonso. O interesse das canções de José Afonso vai muito para além da intervenção política de muitos seus poemas, certamente importante, mas limitativo do seu valor, se a tal for reduzido. Particularmente no que respeita à nossa cidade, a ele muito se deve a evolução profunda da chamada “música de Coimbra” que se operou no fim dos anos 50 e na década seguinte. Muitos consideram que se pode considerar que há uma canção de Coimbra antes de José Afonso e outra depois dele, o que diz muito sobre a sua importância artística.

No concerto do passado dia 30 de Setembro a OCC foi dirigida pelo seu Maestro titular José Eduardo Gomes, tendo as canções sido interpretadas por João Afonso que está a construir uma carreira própria há vários anos, com diversos CD’s muito interessantes já publicados, dentro de um estilo musical que nada tem a ver com a canção de Coimbra. Contudo, o facto de ter uma voz com características que se assemelham bastante à do seu Tio José Afonso fez do concerto uma experiência única, que talvez devesse mesmo ser alvo de publicação em CD para ser desfrutada por mais gente do que aquela que esgotou completamente o auditório do Conservatório de Música. A novidade de temas célebres como “Cantares de Andarilho”, “Minha Mãe”, “Por detrás daquela janela”, “Venham mais Cinco” ou “Traz outro amigo também” serem interpretadas por uma orquestra clássica acompanhando o cantor, traz uma nova vida à obra do autor e permite uma fruição diferente e especialmente envolvente. Alguns temas, como “Pastor de Bensafrim” ou “Verdes são os Campos”, foram (muito bem) acompanhados pela guitarra clássica de Rui Pato que, como é sabido acompanhou José Afonso durante muitos anos, em actuações ao vivo e em gravações de discos.

O segundo concerto festejou os 45 anos de carreira artística de Jorge Palma e decorreu no Coliseu de Lisboa no dia 5 de Outubro passado, com repetição no Coliseu do Porto dois dias depois. Desta feita a OCC foi dirigida pelo Maestro Rui Massena. A experiência de acompanhar música rock com orquestra clássica não é novidade, sendo de recordar uma particularmente bem sucedida no início dos anos 70 que ainda hoje se ouve com agrado, em que os Procol Harum tocaram com a Edmonton Symphony Orchestra. Também este concerto foi um sucesso que entusiasmou o Coliseu lotado, tendo havido um entrosamento raro entre Jorge Palma e Rui Massena que, nos temas “Encosta-te a mim” e “Deixa-me rir” atingiu momentos de sonoridade espantosa. Mesmo no tema “Portugal, Portugal” que tem um ritmo fortíssimo, foi possível apreciar a capacidade da orquestra para acompanhar brilhantemente um Jorge Palma frenético na sua interpretação. Os temas mais intimistas como “Frágil” ou “Lado errado da noite” foram alvo de orquestrações particularmente felizes que mantiveram o público suspenso das interpretações, percebendo-se bem a emoção que o tomava, para logo depois passar a ovações estrondosas.

Houve até um momento em que Rui Massena e Jorge Palma trocaram de papéis, para logo depois ensaiarem um medley entusiasmante ao piano a quatro mãos com início na célebre marcha fúnebre do terceiro andamento da primeira sinfonia de Mahler e continuando por diversas peças famosas de jazz.

A Cultura une e não divide. Isso ficou bem marcado nestes dois concertos “fora da caixa”, como agora se costuma dizer, em que a Orquestra Clássica do Centro mostrou um ecletismo notável, fruto de um grande desenvolvimento artístico, que lhe permitiu ser peça central em momentos musicais de grande qualidade e intensidade afectiva para públicos tão diferenciados. E a cultura de Coimbra produzida profissionalmente mostrou-se, mais uma vez, a grande altura nas principais salas de espectáculos do país.

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

A Alemanha de Merkel e nós



Como se previa, a CDU/CSU venceu as eleições na Alemanha, dando a oportunidade a Angela Merkel de um quarto mandato como Chanceler, no que será a mais longa governação desde o fim da II Grande Guerra, já que iniciou essas funções em 2005.
Contudo, os resultados destas eleições têm outros aspectos a ter em conta, já que houve novidades relativamente ao que anteriormente se tornara habitual na Alemanha. Desde logo, pela primeira vez desde o fim da guerra, o partido AfD – “Alternativa para a Alemanha”, assumidamente de extrema-direita, obteve uma votação (13%) que lhe permitiu eleger 94 deputados, sendo a terceira força no parlamento alemão. Os socialistas democráticos do SPD caíram para próximo dos 20%, um resultado péssimo para o seu líder Martin Schulz que se havia demitido de presidente do parlamento europeu para tentar a chancelaria no seu país vindo a obter a pior votação de sempre para o seu partido. Mas o próprio resultado do partido da própria Angela Merkel foi decepcionante, já que caiu mais de 8% em relação ao resultado anterior, ficando-se nos 33% o que, ainda assim, lhe permite a manutenção na chancelaria, embora se antevejam algumas dificuldades para formar a necessária coligação.
A duração do seu mandato à frente dos destinos da Alemanha obriga a que se observe com algum detalhe a personalidade e modo de governar desta mulher que é considerada a mais influente do mundo e, em particular, a personalidade mais importante entre os líderes da União Europeia. Merkel nasceu na antiga Alemanha de Leste e a sua formação foi largamente influenciada, quer pelo pai pastor de uma igreja luterana a norte de Berlim, quer pelo ambiente paranóico e ultra vigiado do seu país, aprendendo a falar pouco e a ser discreta. A formação científica do doutoramento em química forneceu-lhe os métodos de análise e de decisão sustentada que mais tarde aplicaria no seu exercício de governante. A sua personalidade discreta mantém-se até hoje. Ao fim do dia de trabalho no seu imponente gabinete, regressa a casa que é apenas um vulgaríssimo pequeno apartamento, para calmamente preparar a sopa que constitui o seu próprio jantar.

Após a queda do muro de Berlim, dedicou-se à política, tendo sido eleita deputada e iniciado a carreira de governante quando Helmut Kohl, que lhe chamava a sua menina, a convidou para um ministério relativamente secundário, mas de onde partiu para o que hoje é.
Politicamente, Merkel costuma dizer que é “um pouco liberal, um pouco social-cristã e um pouco conservadora”. Isto é, fundamentalmente, acredita numa série de princípios simples, não demasiado elaborados ideologicamente e muito ligados à vida concreta das pessoas. Há mesmo quem diga que pensa de forma ética e não ideológica. Talvez por isso reagiu à desgraça dos refugiados de 2015 tendo, surpreendentemente para muita gente, permitido a entrada na Alemanha de mais de um milhão de pessoas fugidas à fome e à guerra. Aqui residirá o surpreendente resultado do AfD nestas eleições recolhendo, sobretudo na população residente no antigo território da Alemanha de Leste, o voto de reacção à entrada de tantos refugiados. Os esquerdistas que, também por cá, ainda há pouco tempo se divertiam a pintar bigodes hitlerianos na cara de Merkel e a colocá-la a fazer saudações nazis bem podiam pintar agora a cara de preto perante a verdadeira face de Angela Merkel.
Mas estas eleições alemãs trouxeram à superfície alguns aspectos insuspeitados da política de Merkel e que colocam nuvens escuras no futuro do país que ameaçam transformar-se em tempestade se a Chanceler não alterar a sua política interna no próximo mandato.
Na realidade, Merkel tem governado sobre as reformas económicas profundas introduzidas pelo Chanceler Gerhard Schröder do SPD que a antecedeu, nomeadamente na área do emprego, e que trouxeram competitividade e catapultaram a economia alemã depois de anos de estagnação ou pior. O investimento público alemão, em função do PIB, é hoje inferior à média da OCDE e o valor líquido das infraestruturas do país tem caído de forma impressionante. O seu cuidado obsessivo com o défice, descurando o investimento nas infraestruturas, tem garantido boas contas mas descura claramente o futuro e obrigará, mais cedo ou mais tarde, a reformas e grandes investimentos que alterarão a situação económica. Um investimento público de apenas 2,1% do PIB fica abaixo da própria média da UE, que é de 2,7%. As infraestruturas clássicas, como estradas, pontes, edifícios escolares e hospitais começam mesmo a ter problemas decorrentes de falta de investimento, mas até a velocidade de internet é hoje muito baixa em comparação com a maioria dos países.
Curiosamente, encontramos aqui a justificação para um olhar tão benigno de Merkel e mesmo do até agora seu ministro das Finanças Wolfgang Schäuble relativamente às contas do actual governo português que atinge as metas exigidas quanto ao défice através de cativações e cortes maciços no investimento público: na verdade, eles próprios têm essa prática no seu próprio país. A sua preocupação é o número do défice no fim do ano, independentemente do processo seguido para lá chegar, e fazer reformas não é propriamente o seu forte.

Texto publicado no Diário de Coimbra em 2 de Outubro de 2017