segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Viva a Música



Na última semana a Orquestra Clássica do Centro deu-nos a oportunidade de assistir a dois concertos notáveis e completamente diferentes do habitual. Tratou-se de duas incursões em tipos de música não erudita, que se saldaram em êxitos longa e entusiasticamente aplaudidos pelas assistências dos espectáculos.
O primeiro desses concertos teve lugar no auditório do Conservatório de Música de Coimbra e integrou-se nas iniciativas da passagem de 30 anos sobre a morte de José Afonso, sob o mote “Insisto não ser tristeza” do poema do autor com o mesmo nome. Os arranjos das canções de José Afonso para orquestra tiveram diversos autores, como José Firmino, Sérgio Azevedo ou Virgílio Caseiro, entre outros. Deve-se salientar que o concerto se iniciou com a estreia de uma peça para orquestra da autoria de José Firmino, intitulada “In Memorian”, em que o compositor de Coimbra homenageia José Afonso. O interesse das canções de José Afonso vai muito para além da intervenção política de muitos seus poemas, certamente importante, mas limitativo do seu valor, se a tal for reduzido. Particularmente no que respeita à nossa cidade, a ele muito se deve a evolução profunda da chamada “música de Coimbra” que se operou no fim dos anos 50 e na década seguinte. Muitos consideram que se pode considerar que há uma canção de Coimbra antes de José Afonso e outra depois dele, o que diz muito sobre a sua importância artística.

No concerto do passado dia 30 de Setembro a OCC foi dirigida pelo seu Maestro titular José Eduardo Gomes, tendo as canções sido interpretadas por João Afonso que está a construir uma carreira própria há vários anos, com diversos CD’s muito interessantes já publicados, dentro de um estilo musical que nada tem a ver com a canção de Coimbra. Contudo, o facto de ter uma voz com características que se assemelham bastante à do seu Tio José Afonso fez do concerto uma experiência única, que talvez devesse mesmo ser alvo de publicação em CD para ser desfrutada por mais gente do que aquela que esgotou completamente o auditório do Conservatório de Música. A novidade de temas célebres como “Cantares de Andarilho”, “Minha Mãe”, “Por detrás daquela janela”, “Venham mais Cinco” ou “Traz outro amigo também” serem interpretadas por uma orquestra clássica acompanhando o cantor, traz uma nova vida à obra do autor e permite uma fruição diferente e especialmente envolvente. Alguns temas, como “Pastor de Bensafrim” ou “Verdes são os Campos”, foram (muito bem) acompanhados pela guitarra clássica de Rui Pato que, como é sabido acompanhou José Afonso durante muitos anos, em actuações ao vivo e em gravações de discos.

O segundo concerto festejou os 45 anos de carreira artística de Jorge Palma e decorreu no Coliseu de Lisboa no dia 5 de Outubro passado, com repetição no Coliseu do Porto dois dias depois. Desta feita a OCC foi dirigida pelo Maestro Rui Massena. A experiência de acompanhar música rock com orquestra clássica não é novidade, sendo de recordar uma particularmente bem sucedida no início dos anos 70 que ainda hoje se ouve com agrado, em que os Procol Harum tocaram com a Edmonton Symphony Orchestra. Também este concerto foi um sucesso que entusiasmou o Coliseu lotado, tendo havido um entrosamento raro entre Jorge Palma e Rui Massena que, nos temas “Encosta-te a mim” e “Deixa-me rir” atingiu momentos de sonoridade espantosa. Mesmo no tema “Portugal, Portugal” que tem um ritmo fortíssimo, foi possível apreciar a capacidade da orquestra para acompanhar brilhantemente um Jorge Palma frenético na sua interpretação. Os temas mais intimistas como “Frágil” ou “Lado errado da noite” foram alvo de orquestrações particularmente felizes que mantiveram o público suspenso das interpretações, percebendo-se bem a emoção que o tomava, para logo depois passar a ovações estrondosas.

Houve até um momento em que Rui Massena e Jorge Palma trocaram de papéis, para logo depois ensaiarem um medley entusiasmante ao piano a quatro mãos com início na célebre marcha fúnebre do terceiro andamento da primeira sinfonia de Mahler e continuando por diversas peças famosas de jazz.

A Cultura une e não divide. Isso ficou bem marcado nestes dois concertos “fora da caixa”, como agora se costuma dizer, em que a Orquestra Clássica do Centro mostrou um ecletismo notável, fruto de um grande desenvolvimento artístico, que lhe permitiu ser peça central em momentos musicais de grande qualidade e intensidade afectiva para públicos tão diferenciados. E a cultura de Coimbra produzida profissionalmente mostrou-se, mais uma vez, a grande altura nas principais salas de espectáculos do país.

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