segunda-feira, 18 de junho de 2018

O Futuro



Embora a moderna ciência nos possa baralhar a percepção que temos do tempo, como Stephen Hawking nos ensina na sua “BREVE HISTÓRIA DO TEMPO”, na realidade a nossa dimensão humana reduz-nos à velha ideia de que nos encontramos a percorrer uma linha num único sentido, em que num determinado instante nos encontramos num ponto, com o passado a ficar cada vez mais para trás, enquanto esperamos que haja algum futuro, que não conhecemos, à nossa frente. É a seta do tempo que Hawking designa como psicológica, aquela que podemos perceber facilmente, ao contrário das outras setas, a termodinâmica do aumento da desordem ou entropia e a cosmológica devida à expansão do universo.
E é nesta seta que nos é familiar que nos sentimos confortáveis, olhando à nossa volta. O facto de a velocidade da luz ser constante levou a Humanidade a descobrir a Relatividade e a equacionar seriamente a máquina do tempo enquanto os cientistas todos os dias descobrem novidades nesta área do conhecimento, que levam a fazer novas e mais complexas perguntas a pedir respostas. Será de facto possível construir uma máquina do tempo? Poderemos algum dia visitar o futuro? O Físico Fernando Carvalho Rodrigues, famoso como sendo o “pai” do primeiro satélite português, respondeu em tempos a esta pergunta. E a resposta foi: nós já temos a máquina do tempo, são os nossos filhos. Porque nos projectam para o futuro. Desde que nascem mostram-se diferentes de nós, com as suas próprias características identificadoras, mas sendo durante alguns anos completamente dependentes. E é magnífico e compensador vê-los crescer em tamanho, mas também em capacidade de integração no mundo, de aprendizagem do seu próprio papel e mesmo de capacidade de mudar o que os rodeia. Sempre com personalidade própria, mas sendo possível detectar neles algo nosso muito concreto. E, porque connosco crescem, esse acompanhamento, que dura até darem os passos necessários para as suas vidas já independentes, permite um conhecimento íntimo deles, que eles próprios não adivinham.
Mas os filhos fazem parte do nosso presente, tal como os nossos pais, ainda que já tenham partido. Grande parte das vidas dos nossos pais foram ou são ainda vividas em conjunto connosco e, se infelizmente for esse o caso, quanto mais tempo passa sobre a sua morte, mais presentes estão na nossa memória. Já o mesmo não sucede com os avós e os netos. Se aqueles são o passado, já estes últimos são algo de muito especial e diferente. Já não se nos ligam directamente, mas através dos seus próprios pais, nossos filhos. Os netos têm a possibilidade de nos trazer ao presente as memórias dos seus próprios pais, quando crianças, quer por atitudes, quer por gestos e mesmo carinhos, e isso é algo que sentimos interiormente de uma forma impossível de transmitir.
Voltando a Stephen Hawking, é como se nós próprios nos situássemos no ponto improvável de simultaneidade dos vértices comuns dos dois cones de luz inversos do diagrama espaço/tempo. Os nossos pais estabelecem a ligação ao cone do passado, onde estão os nossos avós e todos aqueles que nos antecederam. Já os filhos abrem-nos o cone do futuro, onde já estão os nossos netos e quem, eventualmente, vier a preencher esse futuro. Os netos são, assim, algo de verdadeiramente especial já que nos oferecem qualquer coisa de maravilhoso, que é a possibilidade de ver o futuro. Se os filhos são a nossa máquina do tempo que nos permite projectarmo-nos no futuro, os netos são já esse futuro palpável e visível, que serão eles próprios o presente num futuro em que já cá não estaremos, a não ser no seu próprio passado.

domingo, 17 de junho de 2018

"parabenizar"

Já irrita que os "sites" que não são portugueses como "linkedin" ou "google" amassem a língua portuguesa com traduções a martelo, como utilizar "parabenizar" em vez de felicitar ou dar os parabéns. Agora que na televisão os jornalistas (pelo menos, julgo que o são, ainda que desportivos) "parabenizem" os jogadores pelos seus feitos é que ultrapassa tudo. Por favor, nunca me "parabenizem". Mais vale esquecerem-me, como muita gente faz. Agradeço.

quinta-feira, 14 de junho de 2018

Capital Europeia da Cultura

Poucos dias depois da apresentação da equipa responsável por preparar a candidatura de Coimbra a Capital Europeia da Cultura em 2017, aconteceu o inevitável.
Um dos seus elementos, Rui Rocha, antigo presidente da Câmara Municipal de Ansião e actual presidente da Comissão Política distrital do PSD de Leiria, renunciou à participação na comissão.
Como é evidente, a realidade tem muita força e acaba por se impor.

segunda-feira, 11 de junho de 2018

Perigo nas ruas e estradas portuguesas



Um artigo recente do jornal espanhol El Pais provocou alguma celeuma entre nós, mostrando mais uma vez a nossa dificuldade em aceitar as críticas que vêm de fora, ainda que certeiras. O artigo abordava a situação algo incompreensível dos fracos resultados da introdução da “carta por pontos” em Portugal em 2016, atendendo às estatísticas da sinistralidade rodoviária e à inexistência de cartas apreendidas. No artigo era feita uma comparação entre o sucedido ao fim de um ano de aplicação da nova legislação em Portugal e em Espanha. Enquanto no país vizinho ao fim do primeiro ano já havia mais de 1.300 condutores sem carta, entre nós nem a um único tal tinha acontecido, o que parece significar um fracasso da adopção desta medida entre nós, como o El Pais aliás afirma.
E não se pense que o sucedido se deve a que a introdução da carta por pontos tenha levado a um melhor cumprimento do código da estrada entre nós. Na realidade, a sinistralidade rodoviária com vítimas, que vinha a diminuir de uma forma consistente em Portugal desde há anos, voltou a subir a partir de 2013 e o número de mortos teve mesmo uma subida trágica de quase 15% no ano de 2017 em que morreram 510 pessoas nas estradas. Olhando para o que se passa com os nossos vizinhos do lado onde há dez vezes mais veículos nas estradas, no ano passado morreram em Espanha 1.200 pessoas nas estradas, o que mostra que, comparativamente, a nossa taxa de mortalidade em acidentes rodoviários é ainda muitíssimo elevada, com a agravante de, em vez de continuar a descer, ter voltado a subir.
A aparente falta de resultados do sistema da “carta de pontos” deve levar-nos a tentar perceber as razões que a justificam. Até porque as faltas que levam à perda de pontos são frequentes no comportamento dos condutores portugueses. Senão, relembremos algumas delas. A maioria das contra-ordenações muito graves dita a perda de 4 pontos, que passa para 5 nos casos de condução sob efeito de álcool com 0,8/1,2 g/l; entre as contra-ordenações muito graves incluem-se a passagem no vermelho nos semáforos, a utilização dos máximos de modo a provocar encandeamento, a passagem de traços contínuos ou mesmo o desrespeito pelos sinais de STOP. Isto é, situações que todos nós vemos acontecerem diariamente; das contra-ordenações graves como não cedência de passagem a peões nas passadeiras ou não utilizar os piscas nas mudanças de direcção punidas com perda de 2 ou 3 pontos nem vale a pena falar tal é a constância da sua prática nas nossas ruas estradas. Isto é, não é pelo cumprimento generalizado das regras do Código da Estrada que os portugueses não perdem pontos das suas cartas de condução e recordo que, à partida, todos os condutores receberam 12 pontos aquando da entrada em vigor do novo sistema.
O artigo do EL País era, de facto, muito crítico para com o comportamento de muitos condutores portugueses. Logo nas primeiras linhas referia que “O português conduz com uma mão no telemóvel e outra no cigarro”. Generalização abusiva e mesmo anedótica, claro está. Mas aqui entre nós: será que alguém pode afirmar nunca ter visto esta mesma situação? Eu já vi alguns condutores fazerem isto mesmo nas ruas de Coimbra sejam homens ou mulheres. E se há algo que vemos mesmo todos os dias, é condutores a conduzir com o telefone numa das mãos, inclusive quando mudam de direcção ou circulam em rotundas, o que tem como imediata consequência a inexistência de piscas que avisem os outros condutores dessas manobras.
A diminuição da sinistralidade rodoviária em Portugal ao longo dos últimos vinte anos é um facto e todos devemos estar satisfeitos com a grande redução do número de mortos nas estradas. Tal deve-se a campanhas de sensibilização eficazes, à melhoria das condições das vias e, certamente, a uma acção mais eficaz das polícias com essa competência.
Há, contudo, dois aspectos muito preocupantes no que diz respeito à sinistralidade rodoviária em Portugal. Um deles é a já descrita inflexão na tendência da sua redução que se verificou no ano passado e que os três primeiros meses deste ano parecem confirmar. O outro é a elevada percentagem de peões entre os mortos nos acidentes. A média europeia é de 11 peões mortos por milhão de habitantes na União Europeia, enquanto em Portugal o valor é de 14. Os peões morrem essencialmente em meio urbano pelo que, se é necessário alertá-los para uma boa utilização das vias, é fundamental que as autarquias locais criem condições de segurança para os peões, defendendo-os adequadamente perante a circulação dos veículos automóveis.

sábado, 9 de junho de 2018

Linhares Furtado: de Coimbra para o mundo



Em Julho de 1969 realizou-se em Coimbra, nos velhos HUC, o primeiro transplante de rim, com dador vivo. Em 1980 foi feito o primeiro transplante com rim de cadáver em Coimbra.
A partir de 1992 iniciou-se em Coimbra um programa continuado de transplantes de fígado, tendo o primeiro transplante de fígado pediátrico sido feito em 1994, o que aconteceu em Portugal pela primeira vez. Em 1995 fez –se em Coimbra, pela primeira vez em todo o mundo, um transplante sequencial com fígado de doente com paramiloidose. Em 1996 iniciaram-se os transplantes de fígado com recurso a bipartições e em 1997 realizou-se nos HUC de Coimbra outra operação inédita em todo o mundo: triplo transplante hepático a partir de um único enxerto de cadáver. Outros exemplos de sucessos em operações de transplantes de fígado originais se fizeram em Coimbra depois disso, como transplante de um lobo de fígado de mãe para filho.
Um amigo meu, professor da Fac. de Medicina de Coimbra costuma dizer que, hoje em dia, todas as cirurgias estão mais ou menos conhecidas e são possíveis para bons cirurgiões. Mas há uma que sobreleva de todas as outras pela sua complexidade e dificuldade técnica, que é a do fígado. E que só um verdadeiro génio da cirurgia pode dominar completamente as técnicas de operações nesse órgão.
Pois bem. Há algo que liga todas aquelas cirurgias a que me referi acima. Todas foram feitas em Coimbra, nos HUC mas, essencialmente, devem-se ao mesmo Homem: Alexandre Linhares Furtado que faz agora dez anos se reformou dos HUC. Não há rigorosamente mais ninguém em Coimbra que tenha atingido o estatuto de um dos melhores do mundo na sua área, para além do Prof. Linhares Furtado.
Ao contrário do que se poderia pensar, o Prof. Furtado não nasceu num meio ligado à Medicina ou à Ciência, nem teve a sua vida académica facilitada pelo nascimento, pelo que a ascensão ao cume da medicina mundial se deveu única e exclusivamente à sua inteligência, capacidade de trabalho e vontade indómita de atingir a excelência.
Desde a Fajã de Baixo no concelho de Ponta Delgada em S. Miguel, Açores, o Prof. Furtado ultrapassou todas as dificuldades, invejas, conservadorismos estéreis mas poderosos e conseguiu colocar a medicina portuguesa num patamar de qualidade nunca antes visto e reconhecido no mundo inteiro. Ao contrário do que infelizmente por vezes se observa por cá, quando o Prof. Furtado se desloca a um fórum de medicina em qualquer parte do mundo, é referenciado como um dos melhores médicos e assim tratado.
Não se pense que os êxitos profissionais e científicos lhe alteraram a maneira simples de ser. E também não lhe diminuíram o espírito curioso e o tempo para ser um Homem culto e mesmo artista de relevo, como o provam os quadros da sua autoria, actividade que o ajudará a manter o equilíbrio interior, mesmo ou principalmente quando a cirurgia lhe exige uma utilização extrema e esgotante de todas as capacidades intelectuais e físicas.
Linhares Furtado é ainda um melómano atento e conhecedor. Não só conhece a música dita clássica a fundo, como não lhe escapam os pormenores das diferentes interpretações e as ligações das diferentes composições com a vida de quem as compôs e respectivas circunstâncias sociais, políticas e económicas.
Costuma classificar-se Coimbra com capital da saúde e tal não andará longe da verdade em vários aspectos. Mas como em todas actividades humanas, o importante são as pessoas. E são as pessoas de excepção como o Prof. Linhares Furtado que, pela sua diferença, marcam definitivamente uma actividade e mesmo a cidade em que trabalham, colocando-lhes o selo da excelência reconhecida não só em Portugal, mas em todo o mundo.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 20 de Maio de 2013

803 anos da Magna Carta

No mês de Junho de 1215, o Rei João de Inglaterra, que se tornaria conhecido como João sem Terra, assinou um documento que, no seu art.º 39º e, numa tradução livre, estabelecia:
“"Nenhum homem livre será preso, aprisionado ou privado de uma propriedade, ou tornado fora-da-lei, ou exilado, ou de maneira alguma destruído, nem agiremos contra ele ou mandaremos alguém contra ele, a não ser por julgamento legal dos seus pares, ou pela lei da terra."
Em plena Idade Média, o Rei reconhecia um limite aos seus poderes e uma garantia à liberdade dos súbditos.
Claro que João sem Terra não assinou o que ficou conhecido como Magna Carta com grande gosto, nem sequer com intenção de a vir a cumprir na sua totalidade. As suas sucessivas derrotas militares e o afrontamento ao papa Inocêncio III ao não aceitar a nomeação do Arcebispo de Cantuária, tinham-no levado a uma situação de fragilidade perante os nobres do reino que colocava em perigo a sua situação como rei. Depois de se humilhar ao aceitar o nomeado pelo Papa, colocando-o assim do seu lado, o Rei João aceitou igualmente os termos da Magna Carta, que limitava seriamente os seus poderes. Havia mesmo um artigo que estabelecia um conselho de 25 nobres com o direito de ficarem com todas as posses do rei, caso ele não cumprisse alguma das regras do tratado. Passado um escasso mês sobre a assinatura, João escreveu ao Papa a pedir a anulação da Magna Carta, o que conseguiu, dadas as suas novas boas relações com Roma.

O documento, mesmo com alterações e mesmo anulações de algumas partes, como a referente ao conselho dos 25 nobres, sobreviveu ao longo dos anos como inspiração para futuras constituições. Os pais fundadores da Constituição Americana vieram no final do século XVIII a tomar a Magna Carta como documento seminal para a definição das liberdades individuais e limite da acção do Estado perante o indivíduo e para a definição do princípio fundamental da “não taxação, sem representação”.
Recordo que, entre nós, a primeira Constituição data de 1822, tendo tido vida curta, já que foi substituída em 1826 pela Carta Constitucional que vigorou com diversas alterações até à implantação da República em 1910.
A originalidade e importância da Magna Carta, oitocentos anos depois da sua assinatura, mantém-se no respeito do Estado perante os cidadãos e no direito destes a julgamento justo em vez da arbitrariedade do poder.
Nestes dias em que tudo é posto de novo em causa por discussões sobre direitos individuais fundamentais como a liberdade de imprensa e de opinião perante poderes religiosos, militares, políticos e económicos, ir buscar os fundamentos da nossa liberdade e civilização ao fundo dos tempos é, não só uma comemoração mas também uma necessidade. Oitocentos anos de Magna Carta não são uma pertença apenas da História de Inglaterra, mas de toda uma sociedade liberal que tem sobrevivido aos ataques dos mais diversos radicalismos que, sistematicamente, têm tentado substituir os direitos dos indivíduos pelos interesses do Estado. 
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 26 de Janeiro de 2014