Um artigo recente do jornal espanhol El Pais provocou alguma celeuma
entre nós, mostrando mais uma vez a nossa dificuldade em aceitar as críticas
que vêm de fora, ainda que certeiras. O artigo abordava a situação algo
incompreensível dos fracos resultados da introdução da “carta por pontos” em
Portugal em 2016, atendendo às estatísticas da sinistralidade rodoviária e à
inexistência de cartas apreendidas. No artigo era feita uma comparação entre o
sucedido ao fim de um ano de aplicação da nova legislação em Portugal e em
Espanha. Enquanto no país vizinho ao fim do primeiro ano já havia mais de 1.300
condutores sem carta, entre nós nem a um único tal tinha acontecido, o que
parece significar um fracasso da adopção desta medida entre nós, como o El Pais
aliás afirma.
E não se pense que o sucedido se deve a que a introdução da carta por
pontos tenha levado a um melhor cumprimento do código da estrada entre nós. Na
realidade, a sinistralidade rodoviária com vítimas, que vinha a diminuir de uma
forma consistente em Portugal desde há anos, voltou a subir a partir de 2013 e
o número de mortos teve mesmo uma subida trágica de quase 15% no ano de 2017 em
que morreram 510 pessoas nas estradas. Olhando para o que se passa com os
nossos vizinhos do lado onde há dez vezes mais veículos nas estradas, no ano
passado morreram em Espanha 1.200 pessoas nas estradas, o que mostra que,
comparativamente, a nossa taxa de mortalidade em acidentes rodoviários é ainda
muitíssimo elevada, com a agravante de, em vez de continuar a descer, ter
voltado a subir.
A aparente falta de resultados do sistema da “carta de pontos” deve
levar-nos a tentar perceber as razões que a justificam. Até porque as faltas
que levam à perda de pontos são frequentes no comportamento dos condutores
portugueses. Senão, relembremos algumas delas. A maioria das contra-ordenações
muito graves dita a perda de 4 pontos, que passa para 5 nos casos de condução
sob efeito de álcool com 0,8/1,2 g/l; entre as contra-ordenações muito graves
incluem-se a passagem no vermelho nos semáforos, a utilização dos máximos de
modo a provocar encandeamento, a passagem de traços contínuos ou mesmo o
desrespeito pelos sinais de STOP. Isto é, situações que todos nós vemos
acontecerem diariamente; das contra-ordenações graves como não cedência de
passagem a peões nas passadeiras ou não utilizar os piscas nas mudanças de
direcção punidas com perda de 2 ou 3 pontos nem vale a pena falar tal é a
constância da sua prática nas nossas ruas estradas. Isto é, não é pelo
cumprimento generalizado das regras do Código da Estrada que os portugueses não
perdem pontos das suas cartas de condução e recordo que, à partida, todos os
condutores receberam 12 pontos aquando da entrada em vigor do novo sistema.
O artigo do EL País era, de facto, muito crítico para com o
comportamento de muitos condutores portugueses. Logo nas primeiras linhas
referia que “O português conduz com uma mão no telemóvel e outra no cigarro”.
Generalização abusiva e mesmo anedótica, claro está. Mas aqui entre nós: será
que alguém pode afirmar nunca ter visto esta mesma situação? Eu já vi alguns
condutores fazerem isto mesmo nas ruas de Coimbra sejam homens ou mulheres. E
se há algo que vemos mesmo todos os dias, é condutores a conduzir com o
telefone numa das mãos, inclusive quando mudam de direcção ou circulam em
rotundas, o que tem como imediata consequência a inexistência de piscas que
avisem os outros condutores dessas manobras.
A diminuição da sinistralidade rodoviária em Portugal ao longo dos
últimos vinte anos é um facto e todos devemos estar satisfeitos com a grande
redução do número de mortos nas estradas. Tal deve-se a campanhas de
sensibilização eficazes, à melhoria das condições das vias e, certamente, a uma
acção mais eficaz das polícias com essa competência.
Há, contudo, dois aspectos muito preocupantes no que diz respeito à
sinistralidade rodoviária em Portugal. Um deles é a já descrita inflexão na
tendência da sua redução que se verificou no ano passado e que os três
primeiros meses deste ano parecem confirmar. O outro é a elevada percentagem de
peões entre os mortos nos acidentes. A média europeia é de 11 peões mortos por
milhão de habitantes na União Europeia, enquanto em Portugal o valor é de 14.
Os peões morrem essencialmente em meio urbano pelo que, se é necessário
alertá-los para uma boa utilização das vias, é fundamental que as autarquias
locais criem condições de segurança para os peões, defendendo-os adequadamente perante
a circulação dos veículos automóveis.
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