segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Solidariedade ocidental

 

Muitos observadores consideram hoje que a Segunda Guerra Mundial não terminou em 1945 com a derrota do nazismo e do imperialismo japonês, já que se lhe seguiu a chamada “guerra fria” entre a União Soviética e o Ocidente que, no fundo constituiu um prolongamento daquela. No seu caminho até Berlim, os exércitos soviéticos ocuparam a chamada Europa de Leste, tendo constituído regimes autoritários comunistas em Varsóvia, Berlim, Praga, Viena, Budapeste, Belgrado, Bucareste e Sófia
. Apenas escapou a Grécia, ainda assim vítima de uma guerra civil, em que as forças comunistas foram derrotadas. Na sequência dessa ocupação comunista, Churchill viria, no seu famoso discurso de 1946, a adoptar a designação “Cortina de Ferro, desde Stetin até Trieste”.

Perante o sucedido, os países ocidentais incluindo a Europa e os EUA criaram, em 1949, uma aliança defensiva, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), com o objectivo de responder a um ataque soviético a qualquer um dos seus membros. Em resposta, a União Soviética criou o Tratado de Amizade, Cooperação e Assistência Mútua mais conhecido por Pacto de Varsóvia por ter sido assinado em Varsóvia, em Maio de 1955. Assim se iniciou a chamada “Guerra Fria”, que teve o mundo suspenso da ameaça mútua de holocausto nuclear e só viria a terminar com a dissolução do Pacto de Varsóvia acompanhando o fim da própria União Soviética em 1991. Para além do aspecto militar a guerra fria tinha por base uma questão ideológica, já que constituiu uma confrontação entre sistemas económicos e sociais basicamente definidos como comunista no Leste e capitalista no Ocidente. Por outro lado, na aliança ocidental os países eram livres de sair, ao contrário do que sucedia a Leste, como as revoltas da Hungria em 1956 e na Checoslováquia em 1968 provaram de forma trágica.

Com o fim do Pacto de Varsóvia, vários países que o tinham integrado voltaram-se para a NATO que não foi dissolvida como, por exemplo, a Albânia, a Bulgária, a Hungria, a Roménia, a Polónia e os países saídos da antiga Jugoslávia.

Com a invasão da Ucrânia em 24 de Fevereiro de 2022, a Federação Russa veio demonstrar que o antigo Pacto de Varsóvia era para além de um bloco ideológico, muito mais a constituição de um império russo, que Putin tem o sonho de ver reconstituído, através de conquistas militares.

Do lado da NATO, a que a Ucrânia quer também pertencer, os anos de paz que se seguiram ao fim da União Soviética levaram a uma sensação se segurança que agora se mostra ser falsa e ingénua. Muitos países membros deixaram de cumprir as suas obrigações de despesa militar perante a Aliança, confiando no “guarda-chuva” dos EUA. Há poucos anos, apenas onze dos trinta e um países membros estavam na situação de cumprimento, sendo actualmente esse número de 18, numa evolução positiva.


O pré-candidato às presidenciais americanas Donald Trump veio há poucos dias convidar Vladimir Putin a invadir os países da NATO que não cumpram os seus compromissos para com a Aliança. Trata-se de uma evolução grave relativamente ao que dizia anteriormente, em que ameaçava com a saída dos EUA perante essa situação. É notório que Trump trata a relação entre países como se de relação entre empresas se tratasse. Para ele não existe solidariedade internacional, seja por que motivo for. Mas esta mudança de posição passa uma linha de traição e trará consequências, não só para com os países europeus que descansaram perante a protecção americana, mas também para o próprio futuro papel dos americanos na nova ordem mundial que já surge no horizonte com a China a ocupar um papel crucial e não a Rússia.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 19 Fevereiro 2024 

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segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

ALGUMAS QUESTÕES DA ACTUALIDADE

 


Dentro de um mês os portugueses vão às urnas escolher quem deverá governar o país. Essa a essência da Democracia e um momento alto do exercício da soberania do Povo, vença quem vencer as eleições.

Mas, por enquanto, estamos em campanha eleitoral, período em que cada força política apresenta as suas opções e critica as dos adversários, assim tornando mais claro qual o futuro colectivo proposto.

Contudo há algo que, de forma algo surpreendente e certamente inédita nas nossas eleições, surge de forma notória que é a autêntica girândola de propostas de descida de impostos, nomeadamente do IRS, à esquerda e à direita. Os portugueses deverão andar perplexos com tanta generosidade de promessas! Vale a pena parar uns minutos para analisar as razões desta situação, o que significa e quais as vantagens.

Desde logo, é possível verificar que a carga fiscal em Portugal é por todos considerada muito elevada. No entanto, ao contrário do que por vezes se crê, está sensivelmente na média das cargas fiscais dos países da União Europeia. De acordo com o Eurostat, em Portugal a carga fiscal foi, em 2022, de 38% (um recorde histórico) enquanto na União foi, em média, de 41,2%. No entanto, o esforço fiscal que pondera a carga fiscal de um país pelo nível de vida dos seus cidadãos indicando, desse modo, o esforço dos contribuintes na satisfação das obrigações fiscais é, entre nós, o quarto mais elevado da União Europeia. Dado que o valor do nosso PIB per capita é dos mais baixos da União, a conjugação destes valores é mais que suficiente para explicar a preocupação dos portugueses com os impostos e a atenção generalizada dos partidos com o assunto.

Dito isto, há duas maneiras de abordar este assunto para tentar corrigir a disfunção evidente. Uma é diminuir os impostos sobre os rendimentos, outra é manter o nível de impostos e promover o crescimento dos ordenados médios. É claro que os valores dos ordenados são consequência da capacidade da economia em geral, não sendo definidos administrativamente. Daí quase todos os partidos prometerem baixa de impostos em época eleitoral, já que melhorar a economia exige muita capacidade e competência, para além de outra abordagem do problema, com verdade e capacidade política.

Por outro lado, ao ir ver para onde vão os impostos entregues pelos contribuintes ao Estado, verifica-se uma situação alarmante que é escondida aos portugueses. Apesar das parangonas dos jornais, o investimento público tem sido nos últimos anos extremamente baixo. De tal forma, que é quase difícil de acreditar, se não se for verificar os números concretos. Em 2021 o investimento público foi de 2,6% do PIB, quando há 50 anos, isto é, em 1974, era de 3,63%. Por curiosidade, o valor máximo desde então foi de 6,4% em 1981 e o mínimo de 1,74% em 2019. Observando estes números, é fácil perceber a razão pela qual as administrações públicas têm sofrido, em geral, uma degradação que se reflecte na qualidade dos serviços prestados pelo Estado. E entender as razões das queixas que todos os dias observamos de profissionais de saúde, educação segurança, etc. Queixas que, para serem resolvidas, precisam de dinheiro dos impostos, muito dinheiro! O que não se gastou em investimento público necessário vai ter de ser gasto, mais cedo ou mais tarde. Por alguém que vier a seguir.


O povo diz que quando o pano é curto, puxa-se o lençol de um lado e destapa-se do outro. Andar a prometer descidas acentuadas de impostos significa diminuir a receita fiscal do Estado, quando o nível de investimento público já é claramente insuficiente face às necessidades. Em parte, esta situação anda a ser tapada pelo chamado PRR que, em vez de funcionar para o que era suposto, isto é recuperar a economia depois do tratamento a que foi sujeita pelo Estado durante a pandemia, é usado quase em exclusivo para cobrir as insuficiências do investimento público. Esta situação insustentável é, evidentemente, consequência da governação dos últimos anos e os seus autores devem ser politicamente responsabilizados pelo que fizeram e pelo que não fizeram praticando uma austeridade escondida.

Mais valia que os partidos explicassem isto ao povo, com verdade e honestidade, em vez de prometerem “sol na eira e chuva no nabal”. Mostrar só parte da realidade dá sempre mau resultado, porque ela acaba sempre por surgir na sua totalidade.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 12 Fevereiro 2024
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RECORDAR É VIVER - Quelques chansons


 Há poucos dias um estimado amigo partilhou num grupo de WhatsApp uma canção francesa dos anos 60 chamando ao post “recordar é viver”. Foi o gatilho que me levou a escrever mesmo uma crónica que já andava a bailar na cabeça há alguns meses.

Vivemos hoje num mundo diferente que evoluiu muito rapidamente em que, se por um lado há uma grande liberdade para escolhas individuais nas mais diversas áreas, outras há em que vivemos mergulhados naquilo que alguém nos impõe. Na realidade torna-se difícil fugir hoje a um “mainstream” informativo e, em sentido mais lato, comunicacional.

É assim que, entre outros tipos de música, a francesa desapareceu completamente das ondas hertezianas, acompanhando de resto toda uma cultura exilada do espaço público para as catacumbas académicas. E é pena, porque sempre teve muito mais qualidade do que tantas musiquinhas dos dias de hoje, com títulos que não duram mais do que umas semanas antes de serem substituídos por outros praticamente iguais.

E a música ligeira francesa merece ser ouvida, se merece!, muito para além daquela que ficou conhecida como “chanson”. Recordarei aqui alguns trechos eternos, que aliam a música a verdadeiros poemas que nos agradam e nos fazem pensar.

Relembro aqui Charles Trenet quando cantava a chegada da primavera a Paris em “EN AVRIL à PARIS”: Quand Paris s´éveille au mois d’avril / Quand l’air plus doux berce une jeune romance / Au coeur du Luxembourg, les oiseaux chantent l’amour / Sur un banc, Jeanne et Pierre sont de retour…

Tal como Jean Gabin garantia que sabia em “MAINTENAN JE SAIS”: Vers 25 ans, j’savais tout / L’ amour, les roses, la vie, lessous / Tiens oui l’amour, j’en avais fait tout le tour.

Ouvia-se Édith Piaf, a pequena mu
lher que, daquele corpo minúsculo, soltava uma tempestade de música e sentimentos que fazia vir abaixo as maiores salas de espectáculos quando cantava “MILORD”: Allez, venez, Milord! / Vous asseoir à ma table / Il fait si froid, dehors / Ici c’est confortable…./   Je vous connais, Milord /  Vous n’ m’ avez jamais vue/ Je ne suis qu’ une fille du port…

Ou a mesma Piaf quando garantia nada lamentar em “JE NE REGRETTE RIEN”: Non, rien de rien / Non, j ene regrette de rien / Ni le bien, qu’on m’a fait / Ni le mal, tout ça m’est bien égal / Non, rien de rien / Non, j ene regrette de rien.

Yves Montand cantava em “LA VIE EN ROSE”: Quand je la prends dans mes bras / Elle me parle tout bas / Je vois la vie en rose.

E Jacques Brel cantava que quando não se tem senão o amor se tem o mundo inteiro nas mãos:  Quand on n’a que l’amour / À offrir à ceux-là / Dont l’unique combat / Est de chercher le jour / Quand on n’a que l’amour / Pour tracer un chemin.

E nos levava a dançar uma valsa louca: Au premier temps de la valse / Toute seule tu souris déjà / …Au troisième temps de la valse / Il y a toi y a l’amour et y et a moi / Et Paris qui bat la mesure.

Na revista “Salut les copains” não podia deixar de aparecer Sylvie Vartan que cantava assim: Ce soir, je serai la plus belle pour aller danser, danser / Ce soir je serai la plus tendre quando tu me diras, diras / Tous les mots que je véus entendre murmurer par toi, par toi.

Já Françoise Hardy lamentava-se: Tous les garçons et les filles de mon âge / Se promènent dans la rue deus par deux / Tous les garçons et les filles de mon âge / Savent bien ce que c’est qu’ être heureux.

E Jane Birkin e Serge Gainsbourg escandalizavam meio mundo e deliciavam outro meio: Je t’aime, je t’aime, oh, oui je t’aime / Moi non plus / Oh mon amour / Comme la vague irrésolue Je vais et je viens / Entre tes reins.

Léo Ferré ensinava-nos a passagem do tempo: Avec le temps, va tout s’en va / On oublie le visage et l’on oublie la voix, le coeur.

Gilbert Becaud recordava Nathalie: La place rouge était vide / Devant moi marchait Nathalie / Il avait un joli nom, mon guide

Mas há muitos mais intérpretes com um sem número de canções a ouvir e apreciar. Recordo Jean Ferrat, Georges Moustaqui, Serge Reggiani, Alain Barriére, Dalida, Serge Lama, Mireille Mathieu, mas também Christophe, Hervé Vilard, Claude François, Johnny Halliday, Charles Aznavour, Julien Clerc, Michel Sardou ou Joe Dassin. E, claro, Adamo cuja “Tombe la neige” recordada pelo camarada Carlos deu origem a esta crónica. Espero que, para além de ter suscitado alguma nostalgia nos leitores mais velhos, sobretudo nos mais novos tenha feito nascer alguma curiosidade pela rica música francesa.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em  5 de Fevereiro de 2024
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segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Idade para ter juízo

 


Se há algo que me irrita é ver políticos a visitar lares de terceira idade e tratar os utentes como se fossem crianças. Ainda mais do que manipular crianças nas escolas, que as crianças terão futuro ou não, mas os velhos tiveram mesmo passado e ainda têm presente.

Os velhos já viveram muitos anos e a passagem dos anos tem obrigatoriamente implicações na visão que se tem do mundo, permitindo uma experiência que se deve aproveitar e não tratar com condescendência. Grande parte do que se observa na actualidade é repetição aproximada de experiências que já se viram no passado. Isto na vida do dia-a-dia pessoal, mas também na vida da sociedade e da política. Na realidade, muito pouco daquilo que acontece é absoluta novidade. A excepção mais evidente será a evolução da tecnologia de informática que permite uma utilização generalizada de ferramentas que ainda há pouco ou não existiam ou estavam à disposição de muito poucos.

Quase a completar sete décadas de vida, tive a oportunidade de observar como o fax, que veio substituir o telex, veio revolucionar a vida empresarial e também pessoal permitindo pela primeira vez enviar documentos de forma não física. O imediato surgimento da internet trouxe o mail e mesmo a possibilidade de partilha de edição de documentos por vários intervenientes que até podem estar em continentes diferentes. Mudança radical que foi apenas o início de uma evolução abismal de que ainda estaremos ainda no princípio, com o desenvolvimento da inteligência artificial.

A guerra colonial portuguesa durou 13 anos e foi a causa imediata de um regime que na minha juventude parecia eterno. Na manhã do dia 24 de Abril de 1974 fui às inspeções militares e à noite informei os meus saudosos pais que nunca iria para África combater numa guerra que já aparecia a todos como sem saída e injusta para ambos os lados. No dia seguinte foram os próprios militares que, fartos da guerra, acabaram mesmo com o regime que só se mantinha por inércia, como ficou provado nos meses seguintes. Depois foi o PREC e a desgraça das nacionalizações que ainda hoje têm implicações na nossa economia já que mesmo depois das privatizações ficou descapitalizada, tendo hoje a maior parte das grandes empresas maioria de capital estrangeiro, incluindo a banca. O equilíbrio político entre esquerda e direita foi conseguido em 1979 por Sá Carneiro e Amaro da Costa com a AD, o que permitiu ultrapassar complexos de esquerda e direita vindos do antes e do a seguir ao 25 de Abril, assim se estabelecendo uma Democracia estabilizada. Desde então assistimos a pântanos e maiorias absolutas que acabam por se autodestruir em frente dos nossos olhos atónitos.


Olhando para o passado, parece mentira como estas décadas passaram tão depressa e todos observámos, ou mesmo participámos no quotidiano colectivo, como se a vida fosse eterna, sem consciência de que tudo acaba um dia. O olhar da juventude, claro está. O que nos parecia urgente e absolutamente necessário aparece-nos agora com uma importância relativa e toma-se consciência de que, em cada momento, o que verdadeiramente interessa são as pessoas e as suas vidas.

Hoje olhamos, com espanto, como uma classe política se encontra paralisada perante uma judicialização do regime que a todos tolhe, assim se promovendo o crescimento dos extremismos mais assustadores. Chegámos a uma data em que o momento fundador do regime democrático completa cinquenta anos. Idade em que, como se costuma dizer, já deveríamos ter juízo algo que, contudo, parece andar completamente arredado da nossa vida colectiva com dissoluções generalizadas dos diversos parlamentos, nacional e regionais, e completo desnorte dos líderes partidários, e não só.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 29 Janeiro 2024

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Populismos à solta, à esquerda e à direita

 


Com os partidos em pré-campanha eleitoral não deixa de ser interessante verificar como determinados temas surgem de forma aparentemente contraditória com a respectiva colocação ideológica.

Perante a questão colocada de como encontrar financiamento para as numerosas propostas que provocariam uma elevada despesa pública, o Chega não esteve com meias medidas e avançou com uma taxa especial sobre os lucros dos bancos que automaticamente permitiria diminuir as prestações bancárias relativas a empréstimos imobiliários e assegurar aumentos de pensões. Algo que, estamos bem recordados, é muito semelhante a uma proposta avançada há pouco tempo pelo Bloco de Esquerda. Neste caso, tratando-se de um partido marxista, até se compreende a proposta, facilmente enquadrável na velha teoria da “luta de classes”. Já com o Chega, que navega nas águas de uma direita dita radical, como compreender ideologicamente tal proposta? Dificilmente, vendo-se apenas o populismo puro e duro como justificação. O que, como se costuma dizer, leva a considerar que os extremos se tocam, até mais frequentemente do que seria de imaginar.

Na realidade é hoje claramente perceptível que a teoria da luta de classes teve uma difusão pela política portuguesa que não seria de esperar no sec. XXI, certamente resultado da geringonça, cuja oposição ao privado levou ao fim dos contratos de associação e das PPP na Saúde com os resultados que se conhecem. Fazendo o caminho inverso ao de Mário Soares que há muito tinha “metido o socialismo na gaveta” abraçando em definitivo a social-democracia europeia antes da entrada na CEE. Hoje, faz-se uma confusão propositada entre socialismo e social-democracia. Mas enquanto aquele, sem adjectivo ou mesmo juntando-lhe o democrático, parte do princípio da colectivização da economia (e não só) como base, já a social-democracia, tal como o modelo nórdico pós-guerra mostrou, prevê a redistribuição dos resultados da economia para obter justiça social, mas com um sistema capitalista. A diferença resulta clara no episódio da ida de Otelo Saraiva de Carvalho nos tempos do PREC à Suécia, quando disse a Olof Palme que ia acabar com os ricos em Portugal tendo o primeiro-ministro sueco respondido que lá, tentavam acabar com os pobres…

E, por falar em pobres, está na moda os políticos populistas prometerem aumentar o ordenado mínimo nacional para 1.000€ em pouco tempo. De facto, Portugal é dos poucos países europeus em que o OMN é inferior a esse montante, o que é uma vergonha para todos nós, já que o custo de vida esse, é por cá muito parecido com o dos restantes países europeus. Mas prometer isso é fácil, tratando-se de um valor administrativo que se estabelece por decreto. Desde 2015, o OMN subiu cerca de 50% o que parece bom. Só que o ordenado médio subiu, no mesmo período, apenas 25%, pelo que os dois valores se aproximaram muito. E o salário médio é o que verdadeiramente reflecte a nossa economia, que não consegue melhor do que cerca de 1400€ brutos quando uma relação saudável entre os dois valores, dado que o ordenado mínimo é hoje de 820€, implicaria que o salário médio deveria ser de cerca de 1.900€. Há cada vez mais pessoas a ganhar o ordenado mínimo e o médio é tão baixo que, em consequência, muitos jovens licenciados escolhem emigrar a viver na nossa miséria franciscana. Os ordenados, ao contrário do que os populistas de esquerda e de direita tentam dar a entender, são um ponto de chegada da economia e não de partida. Quando continuamos a usar os dinheiros brutais que a União Europeia nos envia a substituir o que deveria ser função do Orçamento de Estado e não para capitalizar e desenvolver a nossa economia, o que estamos a fazer é mais uma vez a gastar o “ouro do Brasil” como fizemos no sec. XVIII. Devíamos olhar para a História e ver as consequências disso que desaguaram na tragédia económica de todo o sec. XIX e boa parte do sec. XX.


Mas reconheço que, perante os populismos a que assistimos, conhecer minimamente as lições da História seria pedir demais aos políticos de hoje tantos deles formados nas juventudes partidárias e em obsoletos manuais marxistas. O crescimento e desenvolvimento do país exigem, contudo, uma alteração profunda do caminho seguido até aqui que tem levado a uma divergência com a Europa durante os últimos vinte e tais anos. Será que os portugueses têm coragem para exigir isso de quem nos governa?

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 22 de Janeiro de 2024

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segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

O poder, como direito natural

 


Como se sabe, um regime democrático não se resume à existência de partidos e à realização de eleições livres. É necessário, para que uma Democracia funcione, que se verifique uma verdadeira alternância democrática e que o sistema preveja uma série de contrapesos que equilibrem as relações entre a maioria que governa e os partidos minoritários que constituem a chamada oposição. E, no nosso sistema constitucional, é absolutamente fundamental que o poder legislativo/governativo a Justiça e a presidência da República sejam completamente independentes e com possibilidade real de exercer as suas funções. Quando se verifica a existência de vários partidos, mas com um deles permanentemente maioritário, como aconteceu no México durante muitos anos, o regime deixa de respirar por desaparecerem os contrapesos e, mais tarde ou mais cedo, deixa de ser democrático. Foi o que, de certa forma, aconteceu entre nós durante a Primeira República em que o partido Republicano dominava de tal forma a governação do país que em poucos anos se abriu o caminho para uma ditadura militar a que se seguiu a ditadura do Estado Novo que só terminou com o 25 de Abril de 1974.

Tendo em conta o que acima fica dito, verifica-se que Portugal está a passar por uma situação cuja delicadeza fundamental não pode ser escamoteada e que se situa para além da luta política partidária pré-eleitoral.

O partido Socialista teve a responsabilidade governativa do país, como resultado da livre escolha do Povo, durante 21 anos dos últimos 28 anos, sendo que em quatro dos outros 7 anos estivemos sem verdadeira soberania, entregue a uma troika. Se ganhar as próximas eleições, poderá ser poder durante mais quatro ou mesmo oito anos, o que é possível atendendo à chuva de dinheiro europeu dos próximos anos, que se cifra actualmente em um milhão de euros por hora, vinte e quatro horas por dia, 365 dias por ano.

Vamos ter eleições em Março porque o Primeiro-Ministro se demitiu por problemas com a Justiça relacionados, sabe-se agora, com a suspeita judicial de ter praticado o crime de prevaricação ao ser aprovada em Conselho de Ministros o que alguém já chamou de “lei malandra” que poderia favorecer determinada entidade privada, só parada pela acção do Presidente da República. Para apimentar a questão, não se deve esquecer que no dia seguinte à demissão do Primeiro-Ministro, o país assistiu atónito à descoberta, pelas autoridades judiciais, de mais de 75.000 euros em dinheiro vivo escondido em diversos envelopes e caixas no gabinete do Chefe de Gabinete do Primeiro-Ministro.

Há poucos dias o PS realizou o seu Congresso que se seguiu à eleição do novo Líder, situação absolutamente normal em Democracia. O que já não o será tanto foram os ataques que lá foram notórios à Justiça e ao Presidente da República. António Costa e alguns congressistas acenaram mesmo com uma teoria da cabala segundo a qual estariam a ser vítimas de conspiração por parte daquelas duas Entidades. Claro que têm toda a liberdade de o fazer, não podem é pensar que estão isentos de crítica ao fazê-lo. E essa crítica, que também é livre, não pode deixar de sublinhar que esta situação se verifica após tantos anos de governação com maioria absoluta ou com apoio parlamentar que proporcionou um domínio praticamente completo do aparelho de Estado com todas as consequências que isso acarreta.


Os socialistas não pararam um momento para reflectir por que raio de razão o Presidente Marcelo, que os apajou durante tantos anos, e a PGR Lucília, por eles escolhida, se haveriam de aliar para os combater. Nem se lembraram de como, em 2009 note-se, reelegeram Sócrates como líder com quase 100% dos votos dos congressistas. Só se encontraram perante a evidência clara e cristalina de que os outros poderes institucionais se uniram em conluio para lhes roubar o poder, certamente seu por direito natural.

Mas não é coincidência que um partido que está há tantos anos no poder resolva achar que é objecto de ataque conspiratório por parte dos dois únicos Órgãos Constitucionais de Soberania que não domina: Tribunais e Presidente da República. Lamento que esta constatação seja feita precisamente num período pré-eleitoral, podendo facilmente ser confundida com posição partidária. Não o é, em absoluto, mas a meu ver trata-se de matéria suficientemente séria para não se calada, precisamente neste momento.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 15 de Janeiro de 2024

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segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Democracia em crise?

 


Depois de um período atípico em que duas segundas-feiras, dia de publicação dos “Visto de Dentro”, coincidiram com feriados em que não se publicou o Diário de Coimbra, estamos de regresso à normalidade.

Entrámos no ano em que se comemoram 50 anos sobre o 25 de Abril o que, para quem o viveu, parece mentira. Cinquenta anos já! Grande parte da população portuguesa, senão mesmo a maior parte, já nasceu depois daquela data e a esmagadora maioria não tem consciência de viver noutro regime que não o democrático.

Talvez por essa razão seja hoje possível assistir a tantas posições que desconsideram a Democracia, por não haver consciência das implicações de existência de polícia política, censura e, acima de tudo, de a soberania não residir no povo e na sua escolha livre de quem o deve governar em cada momento. Aqui reside a essência da Democracia que, se não significa que as escolhas do povo sejam sempre certas, é o único regime que garante a substituição de governos e partidos sem necessidade de revolução, apenas pelo exercício de eleições.

É certo que as Democracias passam de novo por um período difícil um pouco por todo o mundo fazendo lembrar, talvez, o que se passou há cem anos quando ideologias então nascentes deram origem a tremendas ditaduras como o fascismo, o nazismo e o comunismo que tiveram como consequência o sofrimento e morte de muitos milhões de pessoas.

Mesmo as democracias que se julgariam mais estabilizadas pela sua duração apresentam fracturas que deixam passar as mensagens populistas que abrem caminho à aceitação de soluções não democráticas. Na semana passada soube-se de uma sondagem nos EUA segundo a qual “50% dos inquiridos com idade entre os 18 e os 45 anos não acreditam que a democracia seja o melhor sistema”. Já entre os maiores de 65 anos 90% têm opinião contrária. O que significa que as camadas mais jovens não acreditam nas virtudes da democracia, certamente consequência das opções dos dois partidos americanos mais importantes, o Republicano e o Democrata. Olhando para a gerontocracia que actualmente está à frente dos dois partidos talvez se perceba melhor o que está a suceder, que é extremamente perigoso para os próprios EUA e, consequentemente, para o resto do mundo. Escuso de lembrar o que se passou no Reino Unido aquando do Brexit quando a classe política deixou à solta o populismo mais radical e até incompreensível numa democracia com centenas de anos.


Leva esta crónica no título uma pergunta a que se deve dar resposta. Na realidade, se a Democracia parece estar em crise, isso deve-se à sua própria essência. Porque, sem confronto de ideias e de práticas governativas aos diversos níveis, sem conflito, não há Democracia. Como é através dos partidos que as escolhas se fazem em Democracia, é da responsabilidade destes explicar ao que vêm sem ambiguidades e marcando claramente as diferenças entre uns e outros. A elevadíssima taxa de abstenção que tem vindo a verificar-se de eleição para eleição é indício seguro de que a confiança nas diversas forças partidárias anda muito por baixo, sendo esta a melhor altura para lembrar a quem não participa nas eleições que essa é a melhor maneira de entregar o poder a quem não o merece. Este é, pois, o período em que se espera que os partidos façam o que lhes compete antes de eleições, para que não seja a própria Democracia a ampliar o número daqueles que já não reveem nela ficando disponíveis para aceitar outra solução qualquer.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 8 de Janeiro de 2024

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