domingo, 15 de maio de 2011

RESGATE DE SOBERANIA

Há muitos séculos um general romano ter-se-à referido "àquela gente que vive nos confins da Ibéria e que nem se governa nem se deixa governar". Aludiria aos Lusitanos que tanta resistência ofereceram ao avanço dos exércitos romanos.
Triste herança esta, tantas vezes confirmada no nosso passado.
Chegámos de novo à situação de termos que nos deixar governar por gente de fora. Quem nos vai emprestar dinheiro a juros demasiado elevados preparou um "Memorando de Entendimento" que o Governo e os partidos que eventualmente virão a ter responsabilidades governativas se viram obrigados a assinar.
O "Memorando de Entendimento" define, como não podia deixar de ser, medidas claras e objectivas com prazos bem definidos para pôr em ordem as contas do Estado. Afinal, o Estado já não teria dinheiro para pagar as suas contas em Junho, os juros que tínhamos que pagar a quem habitualmente nos empresta dinheiro (os famosos mercados) haviam atingido valores absolutamente insustentáveis porque já ninguém acreditava em nós e os bancos portugueses deixaram de se conseguir financiar até mesmo pelo BCE. Uma tragédia portanto, e a prova de que nos últimos anos não nos conseguimos governar, como dizia o general romano.
Mas este "Memorando" vai muito mais longe. Obriga o futuro governo a adoptar medidas e opções políticas com vista à recuperação económica de Portugal. E obriga-nos em diversas áreas da governação que à partida estariam reservadas à nossa soberania e às escolhas políticas feitas em eleições.
Recordo algumas dessas áreas. Na reforma da Administração Pública, para além dos habituais cortes no nº de funcionários e congelamento de vencimentos, Portugal obrigou-se a fusões de serviços, encerramento de repartições de finanças e, imagine-se, a reduzir o nº de freguesias e câmaras, até 2013. Na saúde, teremos que aumentar as taxas moderadoras e reduzir nas suas isenções, para além de cortes substanciais na ADSE e outros subsistemas de saúde. Quanto às empresas públicas, o Estado vai ter que vender as participações que ainda detém na EDP, na REN, talvez da TAP e ainda mexer na ANA, CTT, CGD e outras; as famosas "golden shares" na EDP, GALP e PT deverão ser largadas até ao próximo mês de Julho. Em termos fiscais, vamos ter que mexer no IVA, no IMI, no IMT e no IRS. No que respeita ao Trabalho, vamos mudar os despedimentos individuais, as indemnizações e muito mais. Nos investimentos públicos foi acesa uma luz vermelha às parcerias público-privadas, ao novo aeroporto e ao TGV Lisboa-Porto. Até na Justiça nos obrigámos a mexer, reestruturando o mapa judiciário e, entre outras medidas, adoptando um prazo limite para a resolução de acções de execução, insolvência, dívidas fiscais e processos laborais. O Estado vai ter que vender o BPN até Julho sem preço mínimo definido e a CGD vai ter que vender os negócios de seguros e participações em empresas que não têm a ver com a banca.
Como se vê, quem agora nos empresta dinheiro resolveu mostrar-nos claramente que não tem confiança rigorosamente nenhuma na nossa capacidade para nos regenerarmos e recolocarmos na senda do desenvolvimento económico e social. E foi assim que resolveram meter claramente a mão na nossa governação.
Relembrando com alguma tristeza o general romano, desta vez temos mesmo que nos deixar governar, pelo menos até certo ponto. De facto, o Memorando deixa alguma liberdade ao futuro governo sobre os métodos a aplicar, desde que os objectivos sejam alcançados. Trata-se evidentemente de um período de "soberania vigiada e controlada". Como é óbvio, ninguém nos obrigou a chegar ao ponto em que estamos. Como vivemos em Democracia, foram as escolhas eleitorais que fizemos no passado que nos trouxeram até aqui. E se a Democracia tem uma vantagem, é a de responsabilizar as escolhas feitas e dar aos cidadãos a possibilidade de abrir novos caminhos sem revoluções. Assim se tenha consciência completa da situação e tenhamos uma relação não clubística com os partidos políticos, isto é, basicamente que não hipotequemos a nossa própria liberdade.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 16 de Maio de 2011

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