Em todos os momentos históricos há normalmente uma grande dificuldade em
perceber os sinais das grandes alterações históricas. No nosso tempo isso é
ainda mais acentuado, porque os olhos dos observadores que nos transmitem o que
se passa têm normalmente óculos ideológicos que lhes impedem de ver o que se
passa na realidade. O conhecimento da História é igualmente, ou ignorado, ou
utilizado para instrumento para moldar o que aconteceu às narrativas próprias
que servem para “explicar” o presente. E, no entanto, esse conhecimento é
crucial para perceber os movimentos da História e mesmo compreender o que se
passa hoje.
Há quase mil e quatrocentos anos, mais precisamente em 632, morreu o
Profeta Maomé. Começou aí uma dissensão entre os seus seguidores que se manteve
ao longo dos séculos e que nos dias de hoje se manifesta da forma mais violenta
e incompreensível aos olhos da maioria das pessoas. Enquanto uns muçulmanos
defendiam que a sua liderança se deveria encontrar por consenso na sua
comunidade, outros preferiram que essa liderança fosse encontrada dentro da
família do profeta, mais concretamente o seu genro Ali. Aqueles eram os Sunitas
e os últimos os Shiitas (à letra, Shiat Ali - seguidores de Ali). Ali acabou
por vir a ser o quarto líder muçulmano ou califa, mas o seu assassinato
ocorrido em 661 veio a separar para sempre as famílias muçulmanas desavindas,
que se tornaram em inimigas até hoje. No início do século XVI, naquela zona que
hoje é o Irão, os Shiitas tornaram-se preponderantes através do Império Persa e
ainda hoje governam o país em regime teocrático puro. No entanto, os Sunitas
são hoje a comunidade muçulmana maioritária, representando mais de 90% dos
muçulmanos de todo o planeta.
Era Sunita o poder de Saddam Hussein e a guerra entre o Irão e o Iraque nos anos 80 foi basicamente entre Sunitas e Shiitas, tendo morrido mais de um milhão de pessoas. Uma das consequências da desastrada invasão do Iraque pelos americanos em 2003 foi a colocação no poder do shiita al-Maliki. Foi só uma questão de tempo até o conflito da Síria, em que o presidente Assad é apoiado pelos Shiitas do Irão e do Hezbolahh alastrar para o interior do próprio Iraque. Uma das forças rebeldes da Síria chama-se ISIS e é considerada a sucessora terrorista da al-Qaeda, mas para muito pior, o que para nós seria difícil de imaginar que fosse possível. Trata-se uma força radical Sunita que retoma a velha bandeira do califado islâmico e que no curto prazo pretende instaurar o “Estado Islâmico do Iraque e Síria Maior” (ISIS). Isso significaria a destruição das fronteiras traçadas a esquadro há quase cem anos quando Inglaterra e França se uniram para dividir o Império Otomano, aproveitando-se das divisões tribais para construir nações que foram sobrevivendo com as mais diversas ditaduras.
Era Sunita o poder de Saddam Hussein e a guerra entre o Irão e o Iraque nos anos 80 foi basicamente entre Sunitas e Shiitas, tendo morrido mais de um milhão de pessoas. Uma das consequências da desastrada invasão do Iraque pelos americanos em 2003 foi a colocação no poder do shiita al-Maliki. Foi só uma questão de tempo até o conflito da Síria, em que o presidente Assad é apoiado pelos Shiitas do Irão e do Hezbolahh alastrar para o interior do próprio Iraque. Uma das forças rebeldes da Síria chama-se ISIS e é considerada a sucessora terrorista da al-Qaeda, mas para muito pior, o que para nós seria difícil de imaginar que fosse possível. Trata-se uma força radical Sunita que retoma a velha bandeira do califado islâmico e que no curto prazo pretende instaurar o “Estado Islâmico do Iraque e Síria Maior” (ISIS). Isso significaria a destruição das fronteiras traçadas a esquadro há quase cem anos quando Inglaterra e França se uniram para dividir o Império Otomano, aproveitando-se das divisões tribais para construir nações que foram sobrevivendo com as mais diversas ditaduras.
Ao entrar no Iraque de forma brutal, tomando cidades entre as quais Mosul,
a segunda cidade do país, e Tikrit a cidade natal de Saddam Hussein a apenas
140 Km de Bagdad, o ISIS alterou toda a geopolítica do médio oriente e não só.
A Arábia Saudita assusta-se, porque embora apoiando os movimentos sunitas,
receia o extremismo do ISIS que gostaria de substituir a família real que a
governa, acedendo ao controle das cidades santas Meca e Medina. A própria
Turquia passou a encarar com seriedade a hipótese de aceitar finalmente um
estado Curdo. Como cereja em cima do bolo, a situação provocada pelo ISIS
conseguiu colocar os EUA e o Irão a colaborar de alguma forma, para evitar o
ascendente do ISIS no Iraque.
Todos nós aprendemos que a nossa civilização teve origem na Mesopotâmia,
onde hoje é o Iraque, tendo sido aqui que surgiram as primeiras cidades como
Ur, Kish e Lagash. Por mais longe que pareça, o que lá se passa tem a ver
connosco.
Vivemos hoje numa Europa desenvolvida em que os problemas do dia-a-dia são
quase todos económicos, sugerindo que a Europa é um castelo murado e fechado ao
resto do mundo, particularmente o médio-oriente. Mas não nos iludamos. A
História tem um lastro grande e quando forças ideológicas poderosas se mexem,
por mais estranhas que pareçam, as consequências vão muito para além do que de
início se pode supor. Não nos esqueçamos de como todo o mundo sofreu ainda não
há cem anos em consequência da tomada de poder por grupos fanáticos reduzidos,
mesmo aqui na Europa dita civilizada.
Mapa retirado de http://www.economist.com/
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 30 de Junho de 2014
Mapa retirado de http://www.economist.com/
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 30 de Junho de 2014
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