“Vemos,
ouvimos e lemos, não podemos ignorar”, escreveu Sofia.
É por isso que aquilo que se tem passado debaixo dos
nossos olhos no Grupo Espírito Santo nas últimas semanas só pode ter deixado
preocupados todos os portugueses. Depois das experiências anteriores com o BPP
e o BPN, todos temos razões para desconfiar que, se as autoridades competentes
não cumprirem devidamente as suas funções, mais tarde ou mais cedo poderão ser
os portugueses que, não tendo nenhuma responsabilidade no caso, terão que
suportar com os seus impostos mais um sarilho banqueiro.
Pessoalmente, confio que haja engenho e arte para que tal
não suceda. A semelhança terá mais a ver com o que se passou no BCP do que com
aqueles casos referidos.
Trata-se do fecho de um ciclo iniciado em 11 de Março de
1975, com a nacionalização da banca portuguesa, a que se seguiu aliás quase
toda a actividade produtiva, essencialmente a industrial. Não cabendo aqui
explanar as razões do sucedido nessa altura, que podem aliás ser todas lidas
nas obras de Lenine, a verdade é que só perto do fim dos anos 80 voltou a ser
possível haver banca privada.
A partir dessa altura, dois bancos privados
cresceram de uma forma notável em Portugal: o BCP criado de raiz por
investidores nacionais com uma gestão inteiramente profissional independente
dos accionistas liderada por Jardim Gonçalves e o BES, recuperado totalmente
pela família Espírito Santo em 1990/91 e presidido desde essa altura por
Ricardo Salgado, após a morte de Manuel Ricardo Espírito Santo Silva que era o
presidente à data da nacionalização.
O modelo do BCP foi um sucesso extraordinário até ao
momento da passagem do testemunho na presidência. Após a entrada de Paulo
Teixeira Pinto em 2005 e a sua fracassada tentativa de aquisição do BPI, o BCP
ficou fragilizado e exposto, não tendo sido preciso esperar muito tempo até ser
alvo do ataque coordenado de políticos, especuladores e até mesmo de alguns dos
seus mais antigos accionistas. O BCP continua, mas com uma imagem completamente
diferente e o reduzido valor das suas acções, hoje em dia, diz bem das
consequências de tudo o que se passou.
O BES seguiu um modelo completamente diferente. Tendo
como determinante na sua estrutura accionista a família descendente do fundador
no fim do século XIX, o banco foi até agora gerido pelos próprios accionistas
que são banqueiros porque já assim nasceram, como o foram os seus pais e avós.
Banqueiros
do regime antes do 25 de Abril, banqueiros por inteiro do novo regime o foram após
a privatização, de forma muito evidente sem grandes estados de alma sobre o
partido que estivesse no governo. Foi assim que o BES esteve presente em todas
as grandes iniciativas empresariais, desde as telecomunicações, à energia, às
parcerias público privadas rodoviárias ou da saúde. O BES surge sempre que se
fala em “rendas elevadas”, porque aproveitou ao máximo as hipóteses de entrada
em investimentos “voluntariosos” de governos, que nos ajudaram muito a trazer,
aliás, à situação em que nos encontramos. Na sequência da crise de 2008 e
posteriormente, da chamada da Troika a Portugal, o BES foi o único banco
privado que rejeitou a linha de empréstimo destinada especificamente à banca,
optando por um aumento de capital para atingir os rácios que passaram a ser
exigidos aos bancos.
O BES está agora a sofrer, não tanto pela actividade
bancária, mas pela situação difícil do Grupo Espírito Santo, seu accionista de
referência. O GES tem uma holding cimeira chamada Grupo Espírito Santo
Internacional, que é detida pelos cincos ramos da família Espírito Santo. Essa
holding está a ser vítima das suas próprias acções e decisões de investimento,
surgindo à luz do dia algumas situações absolutamente lamentáveis como as
relações de promiscuidade com a administração da PT ou do desaparecimento de
milhares de milhões de euros do banco do grupo em Angola.
Não ajuda nada o
comportamento pessoal de Ricardo Salgado que se terá esquecido de declarar ao
fisco uma prenda que recebeu de mais de dez milhões de euros, até porque quem
recebe prendas dessas também as dá, com toda a certeza, vá lá saber-se a quem.
Desta vez, e ao contrário do que aconteceu anteriormente, o Banco de
Portugal agiu de forma determinada e coerente para defender o sistema bancário
nacional e o próprio país, obrigando o BES a cumprir as regras de solvabilidade
e exigindo uma nova equipa de gestão independente dos accionistas o que se
traduz na queda de Ricardo Salgado. Os problemas do Grupo Espírito Santo devem
ser resolvidos pelo grupo e a banca comercial separada da de investimento, de
forma clara. O Banco Espírito Santo deve ser resguardado desses problemas,
continuando a ser um grande banco, essencial para a vida económica e financeira
portuguesa.
Em conjunto com o sucedido no BCP, é toda uma era de euforia financeira que
se encerra, trazendo a actividade bancária para o terreno da realidade
económica.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 14 Julho 2014
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