Quase não há semana sem que, um pouco por todo o
país, surjam notícias sobre mulheres mortas de forma violenta pelo marido, pelo
namorado ou amante ou por algum ex-qualquer coisa. Por vezes, junta-se-lhe
ainda no infortúnio alguma filha, irmã ou sogra. E damos por nós a pensar sobre
se há alguma pandemia a alastrar pela sociedade nos dias de hoje e se será
sinal dos nossos tempos.
Só no ano de 2015 foram registados 26.141 casos de
violência doméstica em Portugal, o que corresponde a 3 casos por mil
habitantes, deixando de fora muitos outros que não chegaram às estatísticas,
por desconhecimento. Há realmente quem tenha a ideia de que, por qualquer
motivo, a violência doméstica é um problema dos dias de hoje e que está a
aumentar. Ideia que surge integrada naquele mito do país de brandos costumes
que na verdade não tem nem nunca teve nada a ver com a realidade, servindo
apenas para camuflar uma realidade violenta com um manto diáfano de fantasia
que serve bem os interesses de criminosos.
Mas a violência doméstica sempre existiu. Foi
escondida durante muito tempo dentro das paredes das casas. Era um problema a resolver
debaixo de telhas entre os próprios intervenientes e a sociedade entendia que
não devia interferir, abandonando as vítimas à sua sorte e continuando a
conviver com os agressores como se nada se passasse. Só começou a ser debatida
publicamente nos últimos trinta anos do século XX, com a libertação da mulher e
o desenvolvimento dos direitos cívicos. A consciencialização social e política
do problema apenas começou a encontrar respostas concretas na década de
setenta, altura em que surgiram as primeiras casas de abrigo em Inglaterra e
nos Estados Unidos. Em Portugal as casas de abrigo surgem a partir de 1999 com
o I Plano Nacional contra a Violência Doméstica, havendo hoje 39 instituições
que lidam com este problema e passou a ser um crime de natureza pública em
2007: qualquer pessoa que tenha conhecimento de algum caso pode hoje apresentar
queixa.
Também contrariamente ao que se possa pensar, é um
problema que atravessa toda a sociedade São muitos milhares de mulheres
espancadas e mutiladas, sujeitas aos mais bárbaros tratamentos nas mais
variadas classes sociais, daquelas com maiores dificuldades financeiras às mais
abastadas. Nem sequer a formação a nível superior é garantia de que esse
problema esteja ausente, como se fosse necessária mais uma prova de que
formação não equivale a educação. E também entre adolescentes e jovens adultos
se verifica este problema de forma preocupante: estima-se que 25% da população
jovem tenha tido comportamento violento pelo menos uma vez e 22,5% admite mesmo
já ter sido vítima de agressão por parte do namorado ou da namorada. A
esmagadora maioria das vítimas, numa percentagem de 85%, é do sexo feminino,
mas também vão surgindo casos ainda mais escondidos em que as vítimas são
homens, havendo já em Portugal uma casa de abrigo específica para eles.
Os estudos dizem que a duração média das situações
de violência conjugal é de treze anos e que a idade média das mulheres das
mulheres que pedem ajuda é de 50 anos. Como será fácil de imaginar, as
consequências a nível psiquiátrico para as vítimas de violência conjugal em
períodos tão prolongados, são graves. Por vezes, tão ou mais graves que as
feridas físicas e de difícil e prolongado tratamento. Estas consequências estão
hoje bem documentadas e estudadas, por exemplo em Coimbra, no Serviço de
Violência Familiar no Hospital Sobral Cid que trabalha em colaboração com
escolas, polícias e Tribunais. Há ainda outras vítimas directas da violência
conjugal que são as crianças. Por mais resistentes que sejam e que pareçam
conseguir ultrapassar aquilo de que são testemunhas directas, não será possível
fugirem a que, mais cedo ou mais tarde, o seu comportamento se venha a
ressentir de forma mais ou menos grave.
Felizmente há hoje uma série de instituições
dedicadas a lidar especificamente com a violência doméstica e as forças
policiais e os tribunais estão técnica e humanamente apetrechados. Mas, além de
tratar os casos que surgem, há necessidade urgente de os prevenir, acabando com
esta chaga social. E tal só pode ser conseguido com uma consciência social
generalizada do mal, para além de uma cultura de cidadania que faça sentir a
todos os homens e mulheres que são iguais em direitos e deveres e que ninguém,
seja de que forma for, pode sentir-se como sendo dono de alguém.
Republicação de crónica de Maio de 2017
Republicação de crónica de Maio de 2017
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