terça-feira, 15 de maio de 2018

HAWKING E BEETHOVEN



Como acontece sempre que uma grande personalidade nos deixa, o recente desaparecimento de Stephen Hawking aos 76 anos não deixou de trazer associada alguma controvérsia que aliás, nunca o abandonou em vida. Não há seres humanos a preto e branco e o próprio gosto pessoal muitas vezes atrai a discussão que tantas vezes se diz trazer a luz. Stephen Hawking foi um dos cientistas mais consagrados dos nossos dias, mas cujos interesses extravasaram em muito os campos da física teórica e da cosmologia a que se dedicou. Nascido em Oxford em 8 de Janeiro de 1942, exactamente 300 anos depois da morte de Galileu, veio em 1979 a ocupar a Cátedra de Matemática da Universidade de Cambridge dita Lucasiana do nome de quem deu os fundos para a fundar (Henry Lucas) e que em 1699 fora de Isaac Newton. Para além dos estudos sobre o Espaço/Tempo e sobre os Buracos Negros que o tornaram conhecido, Stephen Hawking foi um grande divulgador de ciência, tendo o seu livro “Uma Breve História do Tempo” conhecido um enorme êxito em todo o mundo. Pouco depois de completar 21 anos, foi-lhe diagnosticada esclerose lateral amiotrófica, uma doença degenerativa ainda sem cura que, ao longo dos anos, lhe foi paralisando os músculos do corpo sem atingir as funções cerebrais. Durante grande parte da vida, a sua deslocação fez-se em cadeira de rodas e a comunicação através de sintetizadores de voz, tendo a certa altura perdido mesmo todo e qualquer movimento do corpo, incluindo segurar a cabeça. O seu cérebro brilhante continuou a trabalhar confinado a um corpo que se tornou na sua prisão, embora Stephen Hawking tivesse, num esforço admirável, feito todos os possíveis para continuar a transmitir ao exterior os resultados da laboração da sua actividade puramente cerebral.

Também o cérebro de Beethoven, um dos maiores músicos de todos os tempos, se viu a certa altura impedido de comunicar com o exterior através precisamente daquilo que o distinguia de todos, a capacidade de juntar os sons de uma forma única e revolucionária para a sua época. Nascido em 1770, a partir dos 26 anos de idade, Beethoven foi progressivamente perdendo a capacidade auditiva. Aquele que já então era considerado um génio, que aos dez anos já dominaria todo o repertório da Bach e que iniciara a sua carreira de compositor aos 11 anos, passaria grande parte da sua vida sem conseguir ouvir devidamente a interpretação das suas composições. Nos últimos anos dez anos da sua vida ficou mesmo completamente surdo. Felizmente, como a surdez só se manifestou enquanto adulto, a sua memória auditiva era suficiente para compor mentalmente, passando ao papel aquilo que para ele já era apenas pura construção cerebral, sem a poder ouvir. Espantosamente algumas das suas obras mais marcantes, pelo carácter inovador e visionário, são precisamente da fase final da sua vida como os Quartetos para Cordas. Desta fase final é a célebre 9ª Sinfonia apresentada pela primeira vez em 1824 sob a regência do compositor já com surdez total que nem o permitiu ouvir a grande salva de aplausos final. A obra de Beethoven é de tal forma avassaladora na História da Música, que durante muito tempo depois da sua morte os compositores se abstiveram de compor mais do que nove sinfonias, em manifestação de respeito e homenagem.
Beethoven e Hawking, personalidades históricas tão diferentes entre si e que dedicaram os seus génios a áreas tão diferentes da criação humana, mas unidos pela prisão dos seus cérebros nos corpos e conseguindo, com enorme esforço, encontrar meios de comunicar o seu labor intelectual com o exterior, constituindo-se assim em símbolos de liberdade. Através da superação de dificuldades extremas, tanto Beethoven como Hawking conseguiram deixar a Humanidade mais rica. Na realidade, a pior prisão que pode haver é a do espírito, como muitos prisioneiros dos mais diversos campos de concentração e escravaturas as mais diferentes descobriram por si, nunca se sujeitando aos carcereiros.
Quando um dia perguntaram a um juiz, após o julgamento de um caso particularmente grave, se ainda acreditava na Humanidade depois daquilo acontecer, a sua resposta foi que sim, porque tinha lido o “Diário de Ann Frank”. Tinha toda a razão. Àquela jovem heroína podemos acrescentar muitas outras personalidades que nos mostram como é possível ao espírito humano ultrapassar as barreiras mais adversas e escrever as mais belas páginas da Arte e da Ciência, provando sempre que a Humanidade vale a pena. 
NOTA: Republicação de artigo de 2 de Abril de 2018

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