segunda-feira, 1 de julho de 2019

JUDITE E HOLOFERNES


Um quadro representativo da cena bíblica da decapitação de Holofernes por Judite recentemente descoberto e atribuído a Caravaggio iria ser levado a leilão na semana passada por uma quantia de muitas dezenas de milhões de euros, mas acabou por ser comprado antes mesmo de ir à praça. Sendo realmente da autoria do genial pintor italiano do início do séc. XVII, será a sua segunda tela conhecida sobre o mesmo tema. Neste novo quadro, que terá sido pintado em 1600, Judite surge à direita, vestida de negro, com a velha criada ao centro claramente a incitá-la ao acto. No quadro que já era conhecido e que se encontra exposto em Roma no Palazzo Barberini da Galeria Nacional de Arte, Judite surge ao centro vestida de branco, embora análises ao quadro tenham permitido verificar que, originalmente Caravaggio a teria representado com os seios nus, e a velha criada expectante segurando nas mãos o saco que haveria de recolher a cabeça do general.
Se ainda hoje, para além da excepcionalíssima técnica pictórica que utiliza uma fonte de luz lateral permitindo um claro-escuro notável, o realismo da cena e as expressões das três personagens causam um forte impacto nos espectadores, poderemos imaginar o efeito que teve à época.
O episódio a que se referem estes quadros de Caravaggio foi também representado por outros pintores, de que merecem destaque Sandro Botticelli ou Goya mas, em especial, Artemisia Gentileschi. Faz parte do Livro de Judite do Antigo Testamento sobre o cerco da Betúlia pelos Assírios do rei Nabucodonosor que enviou o general Holofernes, particularmente violento na sua acção guerreira. Durante o cerco, uma bela viúva judia chamada Judite conseguiu infiltrar-se nas linhas de Holofernes, tendo seduzido o general após o que o adormeceu com vinho, aproveitando para o decapitar com a ajuda de uma velha criada, levando a sua cabeça para a Betúlia. O facto transtornou de tal modo os assírios que os judeus lhes infligiram pesada derrota.
Fazendo o Livro de Judite parte da tradição judaica, é natural que o Bem esteja colocado do seu lado e o Mal do lado dos invasores assírios. E aqui residirá o significado mais profundo desta história algo macabra para os dias de hoje, mas perfeitamente normal ao tempo, 600 anos antes de Cristo.
Para derrotar o Mal o Bem tem, por vezes, que utilizar meios extremos, como fez Judite, o que aliás ainda acontece nos dias de hoje. Lembremo-nos dos sacrifícios enormes que foram necessários para eliminar o “mal absoluto” que foi o nazismo e seus aliados, do número inimaginável de vítimas inocentes e dos meios últimos utilizados para acabar com aquela guerra levada a quase todos os povos do mundo.
Judite é a prova de que, em situações limite, até uma beleza aparentemente frágil consegue encontrar forças e meios para derrotar a força bruta. Claro que o Mal nunca é eliminado para sempre, pelo que imaginar que isso possa acontecer não passa de um exercício de ingenuidade perigosa. O Mal existe porque o Bem existe e sem aquele, este último não teria significado.
É por isso que os quadros representativos de Judite e Holofernes, de que os de Caravaggio são indubitavelmente a expressão máxima, para além de nos atraírem pela sua superioridade artística enquanto criam repulsa pela crua realidade do acto praticado, continuam a ter uma actualidade penetrante e a constituir um simbolismo poderoso da luta entre o Bem e o Mal.

Publicado originalmente na edição do Diário de Coimbra de 1 de Julho de 2019

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